Mais de um ano nos separa do início desta entrevista, concedida por José Gomes da Silva à Teoria & Debate. Das primeiras gravações, colhidas no escritório de sua empresa no Centro Empresarial do Carmo, em Campinas, até a conclusão de seu depoimento, na Fazenda Santana do Baguaçu, em Pirassununga, construiu-se- uma expectativa pelas reminiscências deste paladino das lutas pela terra no Brasil.
Ver-se-á, pela entrevista, que o parto foi bem-sucedido e Teoria & Debate pode apresentar a seus leitores uma visão panorâmica de trinta anos de militância pela democratização da propriedade da terra no Brasil, em que a figura de José Gomes se soma a tantos intelectuais, trabalhadores(as) rurais, sindicalistas, religiosos(as) e militantes políticos que compuseram uma poesia à Terra-Mãe e um libelo contra o latifúndio.
Nada mais oportuno, em tempos de luta contra o projeto neoliberal, de revisão constitucional e de preparação para as eleições presidenciais de 1994, do que retomar, pela presença de Zé Gomes nestas páginas, o debate sobre este que será, sem dúvida, um dos principais eixos do movimento democrático-popular que fará Lula presidente do Brasil: a reforma agrária.
Uma coisa que instiga a curiosidade é a incompatibilidade teórica advinda do fato de um empresário bem-sucedido na agricultura, como o senhor, ser um dos grandes bastiões da luta pela reforma agrária.
Essa questão não chega a me preocupar, mas é uma coisa que eu levo na devida conta. As pessoas se admiram e a explicação que eu mesmo dou, fazendo um retrospecto de como isso aconteceu, é de que sou, basicamente, um profissional da terra, um engenheiro agrônomo, que viu na questão fundiária um eixo fundamental do desenvolvimento do país, e está convencido disso. Tudo que tenho “escarafunchado”, aqui e no exterior, leva a solidificar essa posição. Eu diria que isso é convicção profissional. Quanto ao fato de eu ter quatro fazendas boas, muito boas por sinal, eu não tenho culpa.
A família do senhor já era proprietária de terras?
Meu pai imigrou para o Brasil iludido com a história de que encontraria patacas de ouro assim que descesse do navio, em Santos. A família tinha uma pequena propriedade em Portugal. Ele era basicamente um operário especializado, um artista que fazia peças de vidro numa cidade vidreira de Portugal. E veio para cá com 18 anos, recém-casado com minha mãe, recolher as patacas de ouro.
E foram para onde?
Meu pai, além de ser um operário especializado, era músico na banda da fábrica. Ele tinha dois salários e um bom nível de vida. Eu cheguei a conhecer a casa de meu pai em Portugal, e diria que era de uma família de classe média baixa européia. Quando chegou ao Brasil, foi trabalhar como colono numa fazenda de café. Pior, foi trabalhar como colono de um cafezal abandonado, numa paisagem das mais tristes, mais ásperas. Um dos trabalhos mais duros é carpir café. Por sua conformação, logo que é abandonado, ele fica coberto de cipó, que é o lugar ideal para marimbondo fazer casa. A pessoa tem de carpir em volta, arrancar o cipó com a mão, depois tem de confiar e enfiar a mão ali e, geralmente, encontra a caixa de marimbondo. Meu pai contava que ele vivia com a cabeça inchada não só do arrependimento, mas também por causa dos marimbondos. Ele teve uma vida muito difícil. Primeiro como colono, depois como torneiro e, finalmente, como arrendatário.
Sua vocação para a terra vem daí?
É. Meu pai, depois de ter sido colono, empreiteiro, arrendatário, foi para a cidade, forçado pela história dos nove filhos que precisavam estudar, e se tornou um comerciante, mas sempre com aquele feitio de agricultor.
Qual era a cidade?
Ribeirão Preto. Até depois de velho, retirado, ele fez mais uma tentativa na agricultura, se tornando meeiro de algodão. E, apesar de todo esse esforço, nunca chegou a ter um pedaço de terra. Essa dificuldade me marcou muito.
O senhor cresceu em Ribeirão Preto?
Sim, mas sempre com essas lembranças, e ouvindo essas histórias. Ribeirão era uma cidade pequena e tinha um ambiente um pouco rural. Essa foi a primeira grande influência. A segunda veio de alguns colegas, algumas pessoas que estudaram agronomia e que eu via como bem-sucedidas. Quando me formei no ginásio, meu pai queria que eu fizesse concurso para o correio e eu queria ir para Piracicaba. Era uma coisa muito definida, e acabei indo estudar com muita dificuldade, à noite. Eu tinha uma ligação, qualquer coisa intrínseca com a terra, tanto que mesmo morando na cidade eu freqüentava muito, em Ribeirão Preto, um bosque que tinha um orquidário, naquela ocasião um dos melhores do Brasil. E eu procurava ir estudando coisas desse tipo. Era uma ligação vocacionada para a agricultura.
O senhor teve algum tipo de participação na política estudantil durante o tempo em que esteve na Escola Superior de Agronomia Luiz de Queirós?
Esta é uma das contradições que eu alinho na minha vida. Todas as pessoas com quem me encontro perguntam como é que vai a política e digo que nunca fui político. Nunca disputei um cargo, nem no centro acadêmico. E as pessoas me vêem como um político. Fui um tecnocrata, hoje sou um agricultor.
O seu contato com a família de sua esposa vem dessa época em Piracicaba?
Sim. Minha mulher é de Araras e tinha um irmão que estudava em Piracicaba. Numa dessas idas para visitar o irmão, eu a conheci.
Quando o senhor se casou, foi trabalhar nas terras do seu sogro?
Meu sogro não tinha propriedade que desse para alguém trabalhar. Tinha uma “fazendola” e, inclusive, ele não vivia na fazenda, que tinha uns 60, 50 alqueires. Não tinha condições de ter um agrônomo.
O que o senhor foi fazer depois de casado?
Entrei para o Instituto Agronômico, mas com a condição de trabalhar com soja. Havia um poeta, chefe de gabinete do secretário de Agricultura, que achava que a soja ia ser a grande fonte de óleo, de proteína, no Brasil, e estava procurando um cara estudioso, “caxias”, que pudesse cuidar disso. Eles me deram o emprego, nesse tempo não havia concurso.
Em que ano foi?
Foi em 1947. Antes eu trabalhei alguns meses num serviço de levantamento de safras do consulado americano. O consulado tinha uma seção de agricultura, e eu, apesar de ser agrônomo, fazia estimativa de safra.
Foi nessa época que o senhor ficou conhecido como o Zé Sojinha?
Exatamente. Ganhei uma bolsa, fui para os Estados Unidos, estudar na Universidade de Illinois, cuja região era a maior produtora de soja do mundo na ocasião. Lá nasceu meu filho Graziano. Quando voltei, havia no Brasil uma crise tremenda do óleo, porque a cultura do algodão entrou em parafuso e o amendoim não conseguia substituí-lo. Todos os estudos apontavam para a soja. Houve, então, um episódio muito engraçado. O governador [de São Paulo] era o Jânio Quadros. Alguém tinha assoprado para ele essa história da soja, mas com a intenção de montar uma indústria, para fazer um alimento à base de soja aqui no Brasil. E o Jânio, com aquele sistema dele, chamava o pessoal do interior pela Rádio Patrulha, já que não tinha telex. Um dia apareceu a Rádio Patrulha na minha casa, para me entregar um telegrama do Jânio, me convocando para encontrá-lo. Uma das propostas que eu fiz a ele foi de criação de um serviço autônomo, chamado Serviço de Expansão da Soja, e ele, numa daquelas loucuras, tacou no Diário Oficial. Esse serviço reunia pesquisa, industrialização e fomento. Quando a indústria viu aquilo, percebeu que o negócio era pra valer. A indústria procurou o governo e se ofereceu para ajudar. Foi assim que o trabalho deslanchou.
A importância da soja cresceu.
Houve dois fatos históricos, que foram mais importantes que nosso trabalho. Um foi que a proteína de alto valor, no mundo inteiro, na época, era a farinha obtida a partir de um peixe do Peru, cuja pesca se fazia numa corrente quente. Essa corrente, não sei por que, mudou e não conseguiram mais pescá-lo. Precisavam urgentemente de uma outra proteína. E a proteína que tinha as características da farinha de peixe era a soja. O preço da soja foi lá para cima e a cultura se tornou economicamente importante em São Paulo e no Brasil. O outro fato foi as duas grandes geadas, de 1953 e 1955, no Paraná. Precisaram colocar uma cultura no meio das linhas do café. Nós tínhamos sementes de soja, mandamos vagões cheios delas para o Paraná. Acabaram criando uma produção que permitiu a instalação de uma indústria.
O que aconteceu depois?
Bem, por força desse “brilhareco”, eu fui sendo convocado para postos administrativos, passei a ser diretor da antiga Divisão de Fomento Agrícola. Enquanto acontecia isso na minha carreira de funcionário, de agrônomo, no Instituto Agronômico e depois na Secretaria da Agricultura, comecei a ir ao Paraná. Simplesmente visitar, ia acompanhando meu sogro. Eu me empolguei com aquilo, com a visão da realidade, terra roxa, aquela euforia da abertura do norte do Paraná. E acabei comprando um pedaço de terra lá, muito longe, não onde meu sogro estava, que era perto de Londrina, mas em Camburão, no atual município de Quintas do Sol. Para isso também tive ajuda de um mentor, uma pessoa que talvez tenha tido a maior influência na minha vida profissional, um agrônomo chamado Irineu Souza Dias, que era também um romântico. Ele foi assessor de uma porção de ministros, de secretários, e foi ele que me obrigou a estudar a soja. Ele também era proprietário no Paraná. O sogro dele queria fazer o que ele chamava de República Agronômica, de diversos companheiros, principalmente pessoas estudiosas, da liderança dos agrônomos daqui de São Paulo. Todos junto dele, cada um tendo uma área de terra. Naquele tempo, a terra era muito barata e eu consegui comprar. Como eu tinha passado dois anos nos Estados Unidos fazendo mestrado, podia trazer coisas, bagulhos, e eu trouxe um automóvel zero quilômetro, que era o único carro importado de Campinas. Vendi o carro e comprei a área. Plantei um pouco de café com muita dificuldade e com a ajuda do Irineu. Aí houve uma valorização cambial tremenda do café. Eu revendi 40 alqueires das minhas terras e com o dinheiro pude começar a plantar e plantei 107 mil pés de café.
O senhor conseguia conciliar as duas atividades, fazendeiro e funcionário público?
Sim. Mesmo a distância, com todas as dificuldades, eu conseguia levar as duas coisas. Até que não deu mais para conciliar, porque a região de Camburão é fria e a estrada ficava um fio de gelo, era muito perigosa e eu já tinha capotado duas vezes. A terceira vez foi com a minha mulher e aí ela me deu um ultimato, que eu não podia mais continuar daquele jeito. Então meu sogro e eu trocamos as duas fazendas, a dele e a minha, por outra em Pirassununga. Era uma fazenda totalmente abandonada, cheia de erosão, que ninguém queria comprar, ao lado de uma usina que vivia em greve. A usina desvalorizava a área. Isso aconteceu em 1959.
Como foi seu trabalho na “revisão agrária” que houve no governo de Carvalho Pinto?
De alguma maneira foi bom. O governo Carvalho Pinto foi uma continuação do meu trabalho com a soja. A partir de 1955, eu fiquei como diretor da Divisão de Fomento Agrícola. Quando o Carvalho Pinto foi eleito, um dos seus assessores era o Plínio de Arruda Sampaio, e ele incluiu no Plano de Ação uma proposta de tocar a questão fundiária em São Paulo. A idéia era que São Paulo tinha de dar o exemplo, como já havia feito na questão do desenvolvimento industrial, na questão universitária, e em diversas outras áreas. Ao lado do Ceagesp, da rede de silos e armazéns, da reestruturação do serviço de assistência à agricultura, havia uma rubrica chamada “revisão agrária”.
Quer dizer que a idéia da revisão agrária partiu do Plínio?
O governo Carvalho Pinto tinha três pessoas, não digo de esquerda, mas de pensamento avançado, que eram o Plínio, com a formação que todos nós conhecemos, o Diogo Gaspar, que tinha trabalhado no Banco do Nordeste, e o Sebastião Advíncola Cunha. A idéia da revisão agrária saiu deste conjunto, mas sobretudo da cabeça do Plínio.
Essa terminologia, “revisão agrária”, era, de alguma forma, uma fuga da questão da reforma agrária?
Era uma saída tática, ou uma solução semântica, porque o documento que inspirou a revisão agrária se chama “Progressos em reforma agrária” e é publicado a cada três anos pela Nações Unidas, dizendo o que está acontecendo na questão da reforma agrária no mundo inteiro. O Diogo Gaspar trouxe um exemplar de Nova York, o José Bonifácio leu e ficou fascinado. Eu tive que o datilografar porque não tinha xerox naquele tempo e só havia um exemplar aqui no Brasil. Mas, para o Carvalho Pinto, para a figura dele, para a estrutura política da época, a reforma agrária era uma palavra um pouco forte, como bandeira de esquerda.
Em que consistiu a “revisão agrária”?
Um dia eu entrei para despachar com José Bonifácio e ele estava com a mão na cabeça, deprimido por causa da tal “revisão agrária”. Havia um projeto de lei sobre reforma agrária, um projeto bom, chamado Lei da Revisão Agrária. O Carvalho Pinto convocou uma reunião no Palácio Campos Elíseos onde foi distribuído o texto do anteprojeto de Lei da Revisão Agrária. No dia seguinte, na abertura da sessão da Assembléia Legislativa, a deputada Conceição Santamaria fez um discurso violento, dizendo que aquilo era comunismo, subversão. A partir dali foi uma pauleira. Houve uma oposição cerrada contra o programa. Nesse momento, quando o secretário estava deprimido, eu argumentei que a idéia era boa, eu a tinha lido. Conhecia alguma coisa. Disse a ele que nós tínhamos acabado de montar no Instituto um serviço de comunicação moderno e podíamos colocá-lo para funcionar, para defender o programa. Ele topou e eu montei um esqueminha. Basicamente era pegar o pessoal que tinha alguma habilidade para expor — e nós tínhamos treinado pessoal para isso. Chegamos a contratar professor de oratória. Pegamos alguns rapazes bons, que acreditavam na idéia, e começamos a promover debates, em que o opositor era sempre um fazendeiro.
Vocês conseguiram reverter a situação?
Não digo que o quadro tenha sido revertido, mas começaram a surgir aliados, principalmente na área da Igreja. Havia uma tal de Federação dos Círculos Operários, nós íamos lá. Os recursos audiovisuais eram novidade, aquilo convencia mais do que nossos números. O fato é que deu para defender. O projeto passou e a partir daí foram realizados cinco assentamentos. E tentada a regularização fundiária do Vale do Ribeira, que era uma das idéias do Plínio. Como eu era diretor desse pessoal, tinha forçado muito, principalmente o pessoal de comunicação, a estudar. Acabei me envolvendo demais. No final de contas, eu era a pessoa com quem o secretário lidava, cobrava, e mandava grandes pepinos. Inventaram, numa ocasião, no auge do debate, um trem para a revisão agrária. Arranjaram um trem que saiu de São Paulo para ir a Presidente Prudente, parando em diversas cidades para discutir o projeto. E, na hora de lotar o trem, só apareceram dois agrônomos: eu e o falecido professor Silvério, que ensinava na faculdade de direito. Era uma pessoa que não estava ligada à questão da terra e se tornou um mestre fundador do direito agrário no Brasil. Nós dois, nesse trem, só com latifundiários, pessoal contra, feroz, hostil. A viagem terminou em Presidente Prudente, numa grande reunião. E o secretário, mais uma vez, não foi. Mandou uma gravação para explicar. Um fazendeiro de Pontal do Paranapanema, que era presidente da Associação Rural — não havia sindicato naquela ocasião —, disse que não aceitava gravações, que se tocasse aquilo quebrava. Olha o clima que esse projeto despertou.
Mas a Igreja, naquela época, aprovou um documento que dizia que era melhor fazer a reforma agrária antes que os comunistas a fizessem.
É, o argumento era esse. Tinha de modernizar o capitalismo. Alguma coisa precisava ser feita e era melhor que fosse feita por nós. Era isso, eu não tinha dúvida nenhuma.
Nessa época, o senhor teve algum tipo de vinculação partidária?
Não. Eu nunca tive vinculação partidária. Na campanha do Jânio, chegamos a fundar um pequeno comitê agrícola. O Jânio era professor, não tinha ligação nenhuma com a agricultura, e nós notamos que fazia falta, sim, marcar posição sobre a questão. Eu era um assessor independente, que acreditava nessas coisas. Só me filiei uma vez, com grande arrependimento, ao PMDB, quando fui secretário do governo Montoro.
Quais as grandes linhas do projeto?
O projeto tinha duas linhas. Uma era a desapropriação por interesse social. A outra diretriz era a tributação fortemente progressiva. Era muito mais barato se adaptar à lei do que pagar impostos. Por exemplo, a minha era uma fazenda tradicional, que pertencera a uma família ilustre que chegou a construir um prédio na cidade de São Paulo às custas da renda dessa fazenda. Nela há um corredor com 34 casas, que não eram servidas de água. Na ocasião nós fizemos a conta e era mais barato adaptar essas casas aos padrões de conforto que a Lei de Revisão Agrária exigia do que pagar o imposto. Então, não foi altruísmo, patriotismo, nada disso. Foi simplesmente uma lógica capitalista. Era mais barato botar piso na casa, água encanada. E a lei permitia que se deduzisse do imposto territorial esse tipo de investimento.
Qual sua posição na época do governo João Goulart, quando a questão da terra começou a tomar uma dimensão nacional muito aguda?
Eu torcia. Por exemplo, estava em discussão um projeto de reforma agrária na Câmara, do qual o Plínio era relator. A gente torcia, mas existia algum temor, pela figura do Jango, de que a idéia estivesse certa mas a pessoa não fosse confiável. Esse era o clima no meio em que eu vivia. Até que o Carvalho Pinto se tornou ministro da Fazenda desse homem em quem nós não confiávamos — e ele era o nosso padrão de decência, de coerência etc. De certa maneira avalizou o governo Jango. Não só na nossa opinião, mas para muita gente conservadora.
Qual foi a participação do grupo brasileiro no curso internacional de reforma agrária, feito em 1963 em Campinas, e quais foram seus desdobramentos no processo de articulação de um grupo interessado na questão agrária no Brasil? Quais as principais discussões nesse curso e por que foi importante?
Bom, os principais tópicos foram exatamente as experiências de reforma agrária de uma série de países, inclusive exposições ministradas por pessoas, técnicos, que participaram das reformas de países como Japão, Coréia, e um embasamento econômico bastante detalhado para que os participantes pudessem entender a influência da terra num processo de desenvolvimento econômico. Participaram 12 países latino-americanos. O Brasil tinha um grupo mais numeroso, composto por técnicos da Superintendência de Política de Reforma Agrária (Supra), que era o órgão encarregado da reforma agrária na época da Secretaria da Agricultura de São Paulo, principalmente da Assessoria de Revisão Agrária, do instituto gaúcho de reforma agrária, de alguns governos de estado como Goiás, que por meio da iniciativa dos kibutz de Mauro Borges tentava fazer alguma coisa na questão agrária e assim por diante. Os desdobramentos mais importantes foram, primeiro, a participação dos ex-alunos desse curso na elaboração do Estatuto da Terra. E, segundo, a semente da fundação da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária). Sem se falar na realização do próprio curso, que, de alguma forma, legitimava, ou tecnificava, as idéias de revisão agrária que estavam no bojo das reformas de base do governo João Goulart.
O contato in loco com ocupações de terras, no Rio Grande do Sul e no Recife, também fez parte da realização do curso?
Exato. Foi um curso muito sofisticado e muito caro, porque, além das aulas teóricas, por pessoas que vieram do mundo inteiro, dos 60 dias em Campinas, nós fomos ver as ocupações que aconteciam no Rio Grande do Sul, dirigidas pelo antigo Master, no governo Brizola. No Rio Grande do Sul aconteceu uma coisa muito interessante do ponto de vista do tratamento político da reforma agrária. Depois que nós vimos as ocupações e tivemos todo esse embasamento teórico em Campinas, antes de irmos ao Nordeste ver as Ligas Camponesas, houve uma avaliação do curso. O grupo foi dividido em quatro equipes. Cada equipe tinha de apresentar um projeto concreto de reforma agrária para a antiga fazenda Sarandi. Era uma área muito grande, de um uruguaio cujo título de domínio era questionável e que tinha sido ocupada pelo primeiro Movimento Sem-Terra do Rio Grande do Sul. Cada grupo propôs uma solução. Um propôs uma solução coletiva para a área, para os 50 e poucos mil hectares. Outro grupo, do qual eu fiz parte, propôs a utilização segundo unidades familiares, que era a idéia mais romântica, mais próxima do código de reforma agrária da época. O terceiro grupo fez um projeto para exploração cooperativa, e o quarto, uma fazenda mista. O coletivo, eu não preciso dizer, era formado por um pessoal bem bravo. E nós tivemos de fazer a apresentação pública desse projeto, em Porto Alegre. Houve, naturalmente, um embate com o grupo da coletivização, que era o grupo mais à esquerda do governo Goulart, da antiga Supra. Posteriormente, nós mandamos esse projeto para o próprio Movimento Sem-Terra. Aquela área, que até hoje está em litígio, tinha sido objeto de estudo de um grupo muito preparado, talvez os únicos especialistas que existiam no Brasil. Era um grupo multiprofissional, com advogados que fizeram a parte jurídica, pessoal de campo que fez a parte de solos, sociólogos, economistas, extremamente detalhado.
Qual foi a importância do curso para a formação do grupo?
Esse curso marcou muito os participantes, deu uma preparação teórica no caso da reforma agrária que eu nunca tive. Ele formou outro especialista que teve muito êxito, o Fernando Pereira Sodero. Fernando era consultor jurídico da secretaria, não tinha nenhuma ligação maior com as questões da terra a não ser trabalhar num órgão de governo ligado à agricultura. Mas, ao fazer o curso, teve uma espécie de estalo. Ele passou a usar todo o conhecimento que tinha como advogado da Secretaria da Agricultura na formulação do que é hoje o direito agrário brasileiro, do qual é considerado pai. Eu acho que, intelectualmente, o maior subproduto do curso foi esse estalo do Sodero, que era um burocrata e se transformou num mestre com uma dezena de livros publicados. Depois se transformou em consultor da FAO (Organização de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas), e andou pregando pelo mundo inteiro. Ele também participou do Estatuto da Terra. Os dois advogados que deram um cheiro de terra para o Estatuto foram o Sodero e um outro advogado paulista do Patrimônio Imobiliário, um grande especialista em desapropriações. Foi ele quem fez, no governo Fernando Costa, as grandes desapropriações para instalar as escolas práticas de agricultura em São Paulo, a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, a USP de Pirassununga, o presídio de Bauru, o presídio de Itapetininga.
Como o senhor viu e participou do momento da destituição do presidente João Goulart e ascensão do grupo do Castelo [Branco] à presidência da República?
Nós, que tínhamos feito aquele curso, estávamos atentos porque, das reformas de base, a mais badalada era a reforma agrária. Havia o projeto do João Goulart na Câmara, cujo relator era o Plínio de Arruda Sampaio, mas se conhecia pouco sobre sua formulação técnica. Existia um projeto de lei que não chegou a ser explicitado porque dependia da mudança da Constituição para permitir o pagamento das desapropriações em títulos, já que a Constituição da época exigia o pagamento em dinheiro. Mas nós estávamos acompanhando. No dia 31 de março eu vi, me lembro muito bem, minha sala era na avenida Brasil, no prédio mais alto, os tanques descerem. Alguma coisa estava acontecendo. Então, houve um movimento militar no dia 1º, e no dia 9 saiu o primeiro comunicado da Junta, dizendo que a revolução tinha sido feita para acabar com a subversão e realizar as reformas democráticas. O Congresso continuou a funcionar, colocou em tramitação um projeto de reforma agrária chamado Projeto Badra, que era um horror, superconservador. Foi a nossa primeira reação. Nos juntamos para examiná-lo e mandar um telegrama aos generais, dizendo que era um absurdo, um retrocesso. Motivados por essa análise do projeto Badra nós começamos a nos reunir. Surgiu a idéia de preparar um projeto de reforma agrária e mandar para os generais de maneira a provocar ou testar, qualquer coisa. A partir de todo aquele ensinamento que nós tínhamos tido no curso e da experiência que nós tínhamos recolhido começamos a elaborar o projeto. Do grupo, eu era o único a conhecer a experiência de outros países. Viajei para Israel, Espanha, França e Itália; neste último, fiquei muito impressionado com os resultados concretos e políticos alcançados pela reforma agrária.
Vocês tinham expectativa de que o governo tivesse algum tipo de vontade política real em relação à reforma agrária?
Não, não tínhamos expectativa nenhuma. A começar pelo fato de ele ter apoiado o projeto Badra. Mas nós sentíamos alguma necessidade de sermos úteis. Havíamos feito um curso que custara um dinheirão, déramos a volta ao mundo. O que fazer com tudo isso? E toda noite trabalhávamos nisso. O Sodero, outro rapaz de Piracicaba, vinha de São Paulo, às vezes participava o pessoal da Federação dos Trabalhadores. Eu sei que fizemos um texto, um esboço de projeto de reforma agrária. Um rapaz muito brilhante, que tinha sido orador do Centro Acadêmico lá em Piracicaba, o José Drummond Gonçalves, rapaz católico, ligado a esse movimento de Igreja, se incorporou ao grupo. Ele era muito ligado ao pessoal da Consultec, a firma de consultoria do Roberto Campos. Uma tarde tocou o telefone e ele foi atender. Voltou e disse que era o Roberto Campos e que ele queria falar comigo. Ele me disse que estava encarregado de coordenar as reformas, inclusive a reforma agrária, e tinha tomado conhecimento de que nós estávamos com um anteprojeto. Convidou o grupo para se juntar ao grupo dele no Rio. Ninguém queria ir. Eu sugeri que escolhêssemos uma pessoa para ir e ficar como elemento de ligação. Eu fui o escolhido. O Ministério do Planejamento era no predião do Ministério da Fazenda. A primeira reunião aconteceu num domingo. Roberto Campos chegou de boné de marinheiro. Ele estava dando uma volta de iate na baía de Guanabara, parou ali na Praça XV, desceu e foi abrir a reunião do grupo de reforma agrária. Um mau começo.
Descendo do iate...
É. O grupo do Rio era um grupo de altíssimo nível. Tinha Garrido Torres, que foi presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), e o Paulo de Assis Ribeiro, uma figura muito polêmica, mas de grande capacidade de trabalho, um gênio. Era o pé-de-boi da Consultec. O secretário era um sobrinho do Castelo, Julio Vianna, que tinha acesso ao tio, ia na casa dele a qualquer hora, ia ao Palácio. O fato é que apresentaram o primeiro projeto de lei no Congresso, uma bomba. No dia em que foi apresentado, o presidente da Sociedade Rural Brasileira declarou, em São Paulo, que tinham traído a revolução.
Qual era o conteúdo desse projeto?
Desapropriar com o pagamento de títulos. Foi muito engraçado, porque a gente não sabe — isso precisa ser mais bem analisado — como é que o pessoal encampou essa idéia. Como o governo bancou, firmemente, o pagamento das desapropriações em títulos. E isso com o envolvimento direto do presidente Castelo Branco.
Qual a imagem que o senhor guarda do Castelo Branco?
A imagem é de um homem com pretensões intelectuais. Ele gostava de conversar com artistas, notáveis, mulheres bonitas e homens inteligentes. E tinha alguma independência. Era um rebelde dentro do grupo. E depois de ter sido eleito, eu acho que ele quis escrever a própria história. No caso da reforma agrária, ele buscou inspiração em algumas coisas. Primeiro, nos desmandos do Nordeste. Ele era nordestino, foi comandante do IV Exército, e deve ter visto as maiores barbaridades. E na Itália, por meio dos contatos que manteve mesmo depois de ter voltado da FEB (Força Expedicionária Brasileira). Ele continuou a manter correspondência e deve ter sentido os resultados da reforma agrária na Itália. Além disso, eu tenho a impressão de que o Golbery [do Couto e Silva] tinha relações de parentesco com gente de usina de açúcar, também. A agricultura devia pesar tão pouco para eles, era uma coisa tão distante, que não alteraria nada. Eu acho que eles não fariam uma mudança dessas no sistema bancário, no sistema financeiro.
Como esse projeto foi usado pelo governo militar?
O governo sofreu muito, houve brigas terríveis. Eu nunca me esqueço de quando De Gaulle veio visitar o Brasil. A residência oficial do presidente da República no Rio era o Palácio das Laranjeiras. Quando De Gaulle chegou, Castelo cedeu o palácio para ele. Tiveram de fazer uma cama especial. O presidente foi para o Copacabana Palace. Foi a primeira vez que dormi naquele hotel. Ele disse que o grupo não se dissolveria, e que continuaríamos a trabalhar. “Peguem um apartamento do meu lado, qualquer coisa estou ali.” Diversas vezes ele saiu do apartamento dele e foi ao nosso discutir um caso qualquer. Um dia ele disse: “Está bem, vamos desapropriar os latifúndios, mas e o meu compadre do Ceará?” “Mas, presidente, que história é essa de compadre do Ceará?”, perguntamos. O compadre do Ceará era uma figura que ele imaginou, uma pessoa que tem um latifúndio mas quer transformá-lo em empresa. No Estatuto da Terra havia quatro tipos de módulos: o latifúndio por dimensão, latifúndio por exploração, a empresa e o minifúndio. A empresa, que resultou, hoje, na figura da propriedade produtiva, está fora da desapropriação. O compadre queria recuperar o latifúndio dele, o que ele poderia fazer? Era um problema novo. O cara quer ser bonzinho, quer se converter, o jeito é dar um pedaço, uma parte. No Estatuto da Terra tem um artigo para o cara que quer fazer isso.
De onde surgiu a idéia de transformar o senhor em chefe da Supra?
Eu estava no Rio, trabalhando no Ministério do Planejamento, um ato do governo me colocara à disposição. O ministro escolhido pelo Castelo era Oscar Thompson Filho, secretário da Agricultura do Adhemar de Barros. Os militares, dentro de sua visão limitada das coisas, estabeleceram que o ministro de Agricultura deveria ser o secretário de Agricultura do melhor estado agricultor do Brasil, que era São Paulo. Não importava quem fosse. A única credencial dele, me desculpe, era ter cedido o campo de aviação da usina em que era gerente para o Adhemar fugir para a Bolívia.
Quando o Adhemar voltou ele foi recompensado?
Foi nomeado secretário da Agricultura. Ele não demorou um mês com o Castelo, porque era contra a reforma agrária. Esse é um exemplo, muito forte, da determinação do Castelo em fazer a reforma agrária, em fazer a lei. Depois, ele queria outra figura de São Paulo. Queria um professor e pegou o professor Hugo de Almeida Leme, que era meu amigo, tinha sido meu professor, estava no Rio. A reforma corria pelo Ministério do Planejamento, mas é claro que eu tinha de dar alguma atenção ao Hugo Leme. E um dia eu estava falando com ele e o Castelo ligou dizendo que demitiria o interventor da Supra, e queria que ele indicasse um civil. Eu estava ali do lado e ele disse: vai você.
Por quanto tempo o senhor trabalhou na Supra?
Eu entrei em julho de 1964. O Estatuto da Terra é de 30 de novembro. As nomeações começaram a sair no começo do ano. Devo ter saído em janeiro ou fevereiro de 1965.
Na sua opinião, o Estatuto da Terra correspondeu a uma visão da época da reforma agrária ou ele continua válido como instrumento nos dias de hoje?
Na época ele era considerado válido para fazer uma reforma capitalista nos padrões convencionais, com forte inspiração da reforma agrária italiana. Como, depois de 1964, a reforma agrária sofreu diluições sucessivas, ele continua válido até hoje. Posso dizer que a lei que foi aprovada agora é dez vezes pior do que o Estatuto da Terra.
A que o senhor credita o fato de que o Estatuto da Terra não foi implementado depois da constituição do Ibra e de sua aprovação legal?
O Estatuto da Terra criou dois organismos, um para fazer a reforma agrária, o Ibra (Instituto Brasileiro de Reforma Agrária), e outro chamado Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda), para cuidar da agricultura em geral, da área não reformada. Por que esse Inda? Porque os conservadores, chefiados pelo Bilac Pinto, que tinha uma grande influência sobre o Castelo, passaram a usar o seguinte argumento. Por que criar novas unidades agrícolas se já existem 3 milhões sem atendimento? Uma vez o Castelo usou a frase reforma agrária quimicamente pura. Para se fazer reforma tem-se de criar um órgão específico que só cuide da reforma. Ou ele faz ou ele não faz. Não tem desculpa. E o Ibra era um órgão muito forte. O primeiro presidente foi o Paulo Assis Ribeiro, que era um especialista em tributação e organizou diversos cadastros de tributação em municípios, no Brasil, desviando o eixo da coisa, do programa camponês, para o programa do tributo. Ele tinha uma ascendência intelectual tremenda sobre Castelo, que estava fascinado com ele. Esse foi o primeiro desvirtuamento da reforma.
Quanto tempo ele ficou como presidente?
Uns dois anos. Depois veio um sócio dele, com a mesma orientação fiscalista. Nessa época eu já tinha voltado para São Paulo.
Quando o senhor voltou a colaborar de novo com o governo federal, nessa área da questão agrária?
Depois da Supra, nós nos articulamos em torno da Abra. O grupo que tinha feito o curso, mais alguns companheiros como o Guedes, o pessoal da Contag, decidiu fundar uma associação para manter a chama acesa, esse era o lema. Surgiu a Abra e nosso principal trabalho foi fustigar o Ibra e depois o Incra.
Do ponto de vista político, qual a postura da Abra em relação ao governo federal depois da frustração das expectativas em relação ao cumprimento do Estatuto?
Sempre foi de uma crítica contundente. Acho que as críticas mais ácidas à política fundiária do governo federal partiram da Abra.
O senhor foi o primeiro presidente da Abra?
Não. Eu fui o segundo presidente e cumpri três mandatos.
Durante esse período, várias pessoas que haviam trabalhado com o senhor no Ministério do Planejamento, como o [Mário] Simonsen e o Nascimento e Silva, foram ministros. Eles nunca procuraram sua colaboração?
Não, nunca, porque, a partir da segunda administração do Ibra, as águas se separaram, definitivamente. Quer dizer, eram duas religiões distintas. Eles já tinham adotado a linha da tributação e nós continuávamos na linha da desapropriação. São duas correntes que até hoje se digladiam.
Como o senhor avalia essas pessoas que, como o Simonsen, por exemplo, passaram a praticar uma política altamente concentradora da terra? Este grupo só desenvolveu os estudos relativos ao Estatuto da Terra por vontade do presidente da República?
Não tinham nenhum compromisso além de estarem prestando um serviço direto, quase que pessoal, ao presidente. Era um trabalho especializado. Não implicava uma postura ideológica, um apoio à tese da democratização da terra ou da redistribuição fundiária. O trabalho do Simonsen foi calcular o impacto no orçamento da emissão dos títulos para pagar desapropriação. O Nascimento e Silva fez a revisão jurídica como consultor pessoal do presidente.
Esse compromisso do Castelo com a questão da reforma pode explicar o golpe dentro do golpe, o esvaziamento do poder do grupo dele no interior das Forças Armadas e a posterior mudança de rumo?
Eu não acredito que a reforma explique esse fato, muito embora ele tivesse tido atritos muito sérios devido à reforma com os principais articuladores do golpe, Carlos Lacerda, Bilac Pinto. Ele também teve problemas de família. O Castelo era um apaixonado pela mulher. São famosas as cartas que ele escrevia para a mulher, da Itália. Era dona Argentina Vianna, de Belo Horizonte. Os Vianna, na ocasião, eram os maiores industriais de adubo, em São Paulo, proprietários da firma Arthur Vianna. Toda grande firma de adubo tem uma grande clientela de fazendeiros. Por intermédio da família de dona Argentina esse pessoal pressionava muito o Castelo contra a reforma agrária. A ponto de terem obtido um compromisso de que o Estatuto não seria mandado para o Congresso antes de haver uma reunião em Minas Gerais, para discuti-lo. A reunião foi em Viçosa, que, naquele tempo, era uma cidade inacessível, sem telefone, estrada, nada. Foi uma arapuca. Nos botaram lá, cercados por latifundiários furiosos por todos os lados, para discutir uma coisa que já estava discutida. Ele resistiu, mas depois falhou na parte de execução.
Durante seus mandatos na Abra, essa relação tensa com o governo federal levou a uma aproximação com a oposição. Como é que começaram os contatos desse grupo, que defendia a tese da reforma agrária, com os setores de oposição ao governo militar?
Isso acontecia informalmente. Claro que, às vezes, nós preparávamos discursos de gente da oposição. Eu depus em mais de uma CPI que investigou o Ibra. Éramos vistos por deputados e setores de oposição como uma espécie de consultoria. Nesse período, de alguma maneira, nós atingimos um pouco a intelectualidade, as universidades e alguns jornais.
Quando aconteceram as primeiras eleições para governo do estado, em 1982, pensou-se que os eleitos pela oposição em estados mais fortes, como São Paulo, por exemplo, teriam peso político para avançar, senão numa política de reforma agrária, pelo menos na democratização da propriedade da terra em menor escala. E o senhor foi secretário do governo Montoro. Que expectativas vocês tinham quando incursionaram pela segunda vez para fazer experiências de reforma agrária no Executivo?
Havia uma esperança muito grande baseada na experiência do governo Carvalho Pinto. Não que os estados tivessem o instrumental, mas São Paulo poderia dar o exemplo. E o [Franco] Montoro compartilhava essa idéia. Ele acreditava. Tanto que me escolheu.
Houve algum contato anterior à eleição entre ele e a Abra?
Havia uma relação estabelecida em diversos níveis. No nível pessoal eu, às vezes, ajudei em alguns projetos, dos quais ele era o relator no Senado. Lembro-me bem de um projeto sobre a pequena produção de trigo no Rio Grande do Sul, dos moinhos coloniais. Havia uma lei que acabava com os moinhos e ele apresentou uma emenda para mantê-los. Eu ajudei nisso. Depois, ajudei na elaboração do programa do PMDB. Houve um grande simpósio para elaborar, discutir e aprovar o programa do PMDB para a agricultura. E lá estava todo o pessoal do Montoro. O relator desse grupo era o Horácio Martinez Carvalho, diretor de economia da Secretaria [de Agricultura] do Paraná. O Montoro tinha criado, em São Paulo, quando senador, o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento e eu coordenava a parte de agricultura. De lá sairia o futuro secretariado do Montoro.
E o senhor não sabia disso?
É, eu estava lá sem saber, mas desconfiava. Ele era senador e vice-presidente do Ipeac, Instituto de Pesquisas e Assessoramento do Congresso, que, apesar de não ser um órgão muito conhecido, tem muita força e dinheiro. Eles é que contratam essas consultorias para alguns projetos especializados. Por exemplo, quando o Pró-Álcool saiu mediante um decreto do [presidente Ernesto] Geisel, do Poder Executivo, o Congresso não foi ouvido e ficou muito enciumado. Então, o Montoro conseguiu um dinheiro do Ipeac e contratou a USP para fazer uma avaliação da questão energética no Brasil. O coordenador foi o [José] Goldenberg, que precisou de um cara de agricultura e me chamou dizendo que precisava de alguém que falasse, por exemplo, que mandioca não dá em árvore, essas coisas, para não cometerem erros muito crassos. Fui na primeira reunião e fiquei fascinado porque era um grupo de altíssimo nível. Era o José Israel Vargas, que hoje é o ministro de Ciência e Tecnologia, o Goldenberg. Tinha um cara da Petrobrás que controlava a matriz energética, um segredo militar. Nós íamos trabalhar a partir dali, um bruta time. Eu queria ir e ficar para pelo menos aprender alguma coisa. Nós nos reuníamos toda segunda-feira na USP, na sala do Goldenberg, porque o Montoro ficava em São Paulo neste dia. O resultado foi um belo estudo. Tinha um capítulo sobre petróleo, outro sobre carvão, madeira, sobre o Pró-Álcool. O Montoro conseguiu dinheiro e publicou um livro com o nome dele e do presidente do Ipeac, que era o [Jarbas] Passarinho. Ele era o vice, mas tinha conseguido a verba, coordenara as reuniões. Era, realmente, uma ciumeira danada, porque era a primeira avaliação séria do Pró-Álcool. Foi nessa época que eu me aproximei do Montoro.
Que expectativa o senhor tinha: atuar na área do fomento agrícola ou praticar a reforma agrária?
Os instrumentos eram muito modestos, não daria para fazer grandes coisas. Mas dava para pressionar o governo federal e fazer algumas coisas que servissem de exemplo em São Paulo. Umas coisas pequenas, bem feitas. Acertar o problema do Vale do Ribeira. Saímos na frente e, na ocasião, se falou muito na experiência fundiária de São Paulo.
Quando foi criado o Instituto de Assuntos Fundiários? Foi uma ação tranqüila dentro do governo ou houve resistências?
Foi criado logo no início do governo e foi uma ação tranqüila. Depois o trabalho do Instituto foi muito difícil, mas a implantação não. Engraçado, a agricultura exerce um fascínio sobre as pessoas da cidade. Minha experiência indica que é muito mais fácil trabalhar com o Montoro, o Castelo, que são seres urbanos, do que com um cara como Renato Costa Lima, que é metido a fazendeiro. Esses caras em geral são auto-suficientes. Montoro assinava tudo, tinha um entusiasmo quase juvenil pela agricultura. Dava muita força.
Nessa época aumentou o número de ocupações de terra em São Paulo. Como o senhor avalia a relação entre a Secretaria e os sem-terra durante esses primeiros conflitos de ocupação?
Não acredito que tenha havido relação direta. Foi mais um amadurecimento do Movimento Sem-Terra.
Mas houve algum conflito? O governo Montoro, na relação com o Movimento Sem-Terra, teve uma atitude aberta de negociação?
Eu acho que foi bem aberto, principalmente devido à presença do José Carlos Dias, secretário da Justiça. E do secretário da Segurança, que era um cavalheiro, um professor da faculdade. Era um governo com características mais humanas.
Quanto tempo o senhor ficou no cargo?
Fiquei pouco tempo, uns sete meses.
Foi nesse período que o senhor teve o problema cardíaco?
É, tive um infarto.
Para o senhor, em nível estadual, naquele momento, poder-se-ia ter avançado mais?
O saldo foi bastante positivo, mas não era possível avançar mais por causa da falta de instrumento. Como a legislação joga tudo isso na área do governo federal, é muito difícil um estado executar um programa de envergadura.
Quando o senhor teve o infarto, o senhor se afastou do governo?
Eu me afastei provisoriamente e o Guedes ficou no meu lugar. Depois, no começo do ano, em fevereiro, eu tive de me afastar definitivamente. Me recuperei, sofri uma cirurgia, mas não tinha condições de continuar.
Mas o senhor resolveu assumir um novo cargo público, não foi?
Quando você põe uma ponte de safena, você põe mais um canal, e fica com dois. Então dá uma euforia de viver, ficar mocinho, começar a namorar de novo. Você vira uma fera! Comecei a me sentir muito bem depois da cirurgia. Estava pronto para trabalhar.
E voltou para o governo federal.
Quando eu saí da Secretaria da Agricultura acabei sendo nomeado vice-presidente do Conselho Estadual de Energia. Na crise do petróleo dos anos 1980, houve pânico no mundo inteiro com a questão de energia. O governo federal resolveu criar o Conselho Nacional de Energia, que era presidido pelo vice-presidente da República, o Aureliano Chaves. Ele reformou completamente as políticas de produção, conservação de energia. E os governos estaduais também criaram organismos semelhantes. Em São Paulo foi criado um, cujo presidente era o [Orestes] Quércia, que era vice-governador. O secretário-executivo era o Goldenberg, e eu era o vice-presidente. Enquanto o Goldenberg cuidava, principalmente, da parte de energia industrial, de uso industrial, eu me encarregava do Pró-Álcool, porque todos os projetos de destilaria que estavam começando a ser ampliados ou iniciados em São Paulo tinham de obter a aprovação desse Conselho. Entrava muito na questão fundiária. A nossa política era de restringir as megausinas e evitar que a produção de cana afetasse a produção de alimentos. Claro que não tínhamos força nem condições para impedir o crescimento, mas procurávamos estabelecer uma harmonização regional, não deixar que uma usina dominasse quatro, cinco municípios. Foi um trabalho muito difícil, comprei muita briga, porque nós tínhamos poder de veto. Nesse trabalho eu estava metido na questão fundiária e continuava próximo do poder. Em 1985, houve a eleição do Tancredo [Neves], e ascensão do [José] Sarney. Meu nome tinha sido apresentado para o Incra, que, na ocasião, estava entre os 14 cargos mais importantes da República. Já havia uma hierarquia. Eu estava na famosa lista da dona Antonia, a secretária do Tancredo Neves. Fui para o Incra com grande expectativa. Como a lei exigia que todo programa de reforma agrária, para ser desencadeado, tivesse um plano aprovado previamente, nós lançamos a preparação do Plano Nacional de Reforma Agrária. Houve uma mobilização da direita, do conservadorismo no campo, criaram a UDR (União Democrática Ruralista) para fazer oposição a essa proposta. Daí em diante os fatos são mais ou menos públicos. Eu acabei caindo, e voltei lá para a luta na Abra.
O Montoro impulsionou sua ida para o governo federal?
Foi o principal incentivador, primeiro por meio da relação com Tancredo e depois pelo prestígio de São Paulo no governo Sarney. Quando aconteceu o debate público sobre a reforma agrária e começou a guerra mesmo, houve grande apoio do governo de São Paulo, a não ser no desenlace, quando houve uma tendência para a gente ceder um pouco. Mas aí não dava porque a coisa já estava definida. Depois a história veio mostrar características até de traição, de deslealdade. Enquanto o ministro e eu estávamos preparando dia e noite esse Plano, o Sarney tinha chamado um advogado de grileiros para preparar um outro projeto, dentro do palácio. Esse cara estava trabalhando dentro do palácio, convidado pelo governo, para fazer outro decreto, que foi aprovado. Posteriormente, esse mesmo advogado confessou isso e a coisa veio a público. Ele ficou não sei quantos dias no palácio, na sala do gabinete militar, trabalhando para fazer aquilo que o ministro e eu estávamos fazendo.
Essa característica do governo Sarney foi muito forte, do ponto de vista da desestabilização dos setores mais progressistas?
Foi. E a “copa e cozinha” tem um poder fantástico. Vou citar um caso dos mais contundentes. A minha história de agrônomo foi marcada pelo trabalho que eu coordenei de implantação da soja no sul do Brasil. Foi um trabalho muito bem-sucedido porque houve, também, uma série de coincidências econômicas que deram à soja um lugar definitivo como grande cultura no Brasil. A minha marca de agrônomo é a soja. O rei da soja chama-se Olacir de Moraes. O gerente, diretor agrícola do grupo Itamarati, é meu vizinho. Ele me convidou diversas vezes para ir ver o império da soja do Olacir e eu nunca pude atender ao honroso convite. Quando estava no Incra, na semana anterior à assinatura do decreto, do Plano Nacional de Reforma Agrária, o Sarney foi visitar a fazenda Itamarati do Olacir, ver a soja. Todo mundo dentro do governo sabia que eu mexia com soja e mesmo assim não fui convidado para ir. E foi durante esta viagem, na fazenda do Olacir, que se tramou, em parte, a derrubada do projeto.
Que imagem o senhor tem do Sarney como presidente nesse período?
O José Sarney é o tipo do bom moço, um cara afável, um cavalheiro, um poeta, um escritor, mas incapaz de tomar decisões que possam contrariar qualquer interesse do establishment. É um cavalheiro e isso amortece muitas das críticas.
A quem poderia ser creditado, no governo, o maior empenho na queda dessa postura progressista do Incra?
Foi indiscutivelmente o Gabinete Militar, que hoje está de volta, é o comandante do I Exército [sic]. Não por ideologia, mas pelo medo do impacto do próprio programa, de criar uma outra força, qualquer coisa de força revolucionária. Um campesinato forte ou coisa desse tipo. Ranços da doutrina de Segurança Nacional.
Qual foi a relação que o senhor manteve com a base parlamentar na tramitação do Plano pelo Congresso?
O Plano não tramitou, ele apenas foi mostrado ao Congresso, porque tudo corria como decreto do Executivo. Foi levado ao Congresso como uma deferência.
Mas o senhor sentiu sustentação parlamentar para a política que defendia?
Havia uma minoria aguerrida, composta pelo Plínio, Fernando Santana, Roberto Freire, o grupo de esquerda. Mas a maioria era indiferente ou contra. Isso se revelou na Constituinte, quando nós perdemos fragorosamente.
Durante bom tempo a presença tanto do ministro como do senhor no governo foi creditada à indicação e suporte da Igreja, da CNBB, que teria feito gestões para que fosse mantida uma política progressista na área agrária. Nesse período, como era a relação do governo Sarney com os setores organizados mais de esquerda na sociedade, como os sem-terra?
O Movimento Sem-Terra, que era dos mais rebeldes, chegou a participar, porque para elaborar o Plano Nacional de Reforma Agrária nós montamos, se não me engano, 20 e tantos grupos; da questão jurídica, da questão indígena, um outro das desapropriações, outro do tipo de assentamento. Nós trouxemos praticamente todas as pessoas do ramo, do país inteiro. O Incra é um órgão muito poderoso, tem muita flexibilidade administrativa, orçamentária e tudo. Isso provocou um rebu. O próprio pessoal dos sem-terra foi convidado e chegou a indicar representantes para um desses grupos. Foi o único momento em que eles cederam a uma aproximação com o governo. Quanto à Igreja, ela tinha uma influência muito forte.
De suas três passagens pelo Executivo, no governo Castelo, no Montoro e no Sarney, que elementos o senhor tira para inferir a possibilidade de se fazer reforma agrária, partindo do Executivo?
Eu acho que ela pode vir da maneira que ela já aconteceu anteriormente, por via lotérica, devido a um acontecimento inesperado, ou de ordem pessoal ou fruto da conjuntura. Tem de ser alguém da cidade. E, na base lotérica, que tenha apoio, que tenha trânsito dentro do governo e não encontre um bom moço como José Sarney.
O que o levou a aceitar participar do Governo Paralelo, coordenando a área de agricultura e reforma agrária?
Essa é outra coincidência. Eu participei ativamente da Constituinte, tanto que acabei escrevendo um livro sobre o desastre da Constituinte. Fiquei fascinado com a figura do Lula. Em várias ocasiões, me aproximei pessoalmente dele. Eu ficara muito impressionado com uma frase do Tancredo. Ele disse uma vez que não adiantava esse negócio de eleição porque a situação dos grotões é diferente. Ele lançou o negócio dos grotões e os jornais deram muito destaque. Eu resolvi trabalhar essas questões dos grotões em relação à candidatura do Lula. Escrevi uma carta para ele e me ofereci para coordenar uma reunião nacional para discutir a candidatura dele nos grotões. Veio um cara do Rio, outro da Amazônia, outro do Nordeste, o pessoal do Rio Grande do Sul, Paraná e São Paulo para discutir uma pauta bem rígida e específica: qual a receptividade da candidatura Lula nas comunidades rurais, do lado do grotão, por estado? Qual a situação na Baixada, no Rio, no Vale do Jequitinhonha, em Minas? Fizemos um balanço e elaboramos um relatório que entreguei ao Lula. Quando vi estava envolvido.
Fez também campanha de ir atrás de voto no grotão?
Ah, fizemos... Fiz algumas viagens para Guarapuava, no Paraná, Viçosa, em Minas. Algumas das viagens eu fiz com o próprio Lula.
O senhor tem boas recordações da campanha?
Tenho, inclusive em relação à reforma agrária. Viçosa é um reduto conservador, terrivelmente conservador. Eu nunca consegui entrar na cidade como doutor em agronomia, na faculdade de agronomia. Nunca consegui auditório. E o Lula foi lá e deu uma aula sobre reforma agrária para 3.000 pessoas. Essas coisas acabaram me mostrando que a solução da reforma é política mesmo. Muito mais importante que todas as conferências, que os livros, que tudo isso é o Lula numa “tacada” resolver muito mais do que o trabalho técnico. Essa é a verdade. Então, vamos ajudar a pessoa que acredita, que tem essa possibilidade de resolver o problema político da reforma. E não há outra figura entre os candidatos. O Brizola é altamente contraditório.
No Governo Paralelo, seu trabalho foi desenvolvido a contento?
Sim, tanto que as duas cartilhas editadas eram da nossa área, da área de agricultura e reforma agrária. Editamos a cartilha da reforma agrária e a cartilha da segurança alimentar. E, de todas as propostas do Governo Paralelo, a que virou proposta de governo foi a de segurança alimentar. Esse foi um processo muito interessante, que mostra a grande visão política do Lula, e sua grande habilidade. Ele é realmente uma pessoa dotada de condições excepcionais para governar. E é isso que diferencia realmente o governante. Quando se instalou o Governo Paralelo, houve uma série de reuniões com toda aquela alta intelectualidade do PT. Depois o Lula escolheu por áreas. Escolheu o Antonio Candido para a Cultura, o Luiz Carlos Menezes para a Energia, eu para a Agricultura, o Walter Barelli para o Trabalho; para a Justiça, o Márcio Thomaz Bastos. Enfim, um timão. E começaram as discussões políticas. Um dia o Lula deu o clássico soco na mesa: “Vamos parar com isso, isso aqui não é academia, vocês vão pra casa e na próxima semana cada um traz os cinco principais problemas na área da Educação, da Saúde, da Justiça...”
Todos foram fazer seu dever de casa...
Eu não sei como é que os outros fizeram. Eu fiz uma carta circular para um grupo de pessoas e pedi que enumerassem os cinco principais problemas. Todos me responderam. Eu tabulei e deu, em primeiro lugar, a pequena produção, segundo, a questão alimentar, terceiro, a questão ecológica, quarto, Pró-Álcool, e quinto, reforma agrária. Apresentei o resultado da tabulação e cada área teve que preparar cinco propostas daquilo que foi selecionado. Eu tinha de preparar cinco. Dessas cinco, energia era uma questão multidisciplinar, tinha de ser trabalhada junto com meio ambiente, que era a área do Aziz Abb’Saber, com energia, que era do Menezes. A questão de segurança alimentar, que não tinha sido batizada de segurança alimentar, era alimentação de modo geral, também tinha aspectos de saúde. Então eu coordenei um grupo que tratou de política agrícola e preparou a reforma agrária. Depois coordenei o grupo multidisciplinar que fez a proposta de alimentação, que nós batizamos de segurança alimentar.
De onde surgiu esse conceito?
Nesse período eu fui a um congresso de Direito Agrário na Itália, visitei a FAO, conversei com as pessoas e fiquei impressionado com as propostas de segurança alimentar, que já era um conceito universal, menos no Brasil, onde havia uns tabus em relação à questão da fome, da desnutrição, da carência. E achei que esse conceito de segurança alimentar tinha, politicamente, um sabor muito forte para se contrapor à segurança nacional, que era a bandeira militar no período da ditadura. Com a grande vantagem de ter o aval, o respaldo, das Nações Unidas e de não ter sido o Governo Paralelo ou a esquerda quem inventou o conceito. Preparamos essa proposta, bem trabalhada, acho que popularmente foi a que teve melhor apresentação, foi exposta numa reunião na Câmara Municipal. A Erundina tinha feito um congresso de alimentação muito bom, com gente de fora. Nós aproveitamos o clima. Até que o Lula resolveu transformar isso numa bandeira política e fazer a tal viagem, apresentar isso como uma proposta e posteriormente levá-la ao governo.
Por que levar ao governo?
Esse negócio de levar ao governo precisa ser explicado. Era parte da nossa rotina. O primeiro projeto que saiu foi de Educação, preparado pelo Cristóvam Buarque. Quando ficou pronto, o Buarque foi humildemente pedir uma audiência com o [Carlos] Chiarelli, que era o ministro da Educação, e entregou a proposta. Você sabe que eles jogam no cesto, mas era nossa rotina. Quando apresentamos a de pequena produção, eu fui ao [Antônio] Cabrera, com os deputados do PT e o Suplicy. Entregamos numa audiência formal, com fotógrafo. Mas jogaram no cesto. De qualquer maneira, o Lula resolveu apresentar a proposta de segurança alimentar ao Itamar e ele abraçou o plano. Neste caso, o Lula teve mais uma tremenda habilidade, uma grande visão política. O projeto tinha um cheiro muito forte de São Paulo, a maior parte da equipe era daqui. O fato de colocar o Betinho e D. Mauro Morelli à frente dele, deu uma outra força, incluiu uma outra área e um outro contingente. O Betinho também tem sido muito feliz em sensibilizar o governo com sua figura mística. Só isso basta. Não pelo fato de a gente ter coordenado, mas por ter sido encampado como prioridade número um do governo. Foi a única proposta que não sofreu corte nenhum de verba, até hoje. Neste episódio eu me redimo um pouco do artigo da Maria da Conceição Tavares, cuja posição, embora injusta, totalmente improcedente, serviu para alertar o partido a respeito da diferença entre uma proposta do partido e uma proposta para um governo que, necessariamente, tem de ser de coalizão. E ao tentar fazer um governo de coalizão você tem de apresentar uma proposta que seja aceita por outras correntes. A proposta de reforma agrária do Governo Paralelo saiu de um encontro do PT, é claro, mas poderia ser endossada por outros partidos. E a Conceição não entendeu isso. Achou que tinha havido uma traição ao ideário do PT. O fato é que ela teve seu artigo publicado na revista Teoria&Debate nº 17 e houve depois um rebate de pessoas credenciadas como o secretário agrário do PT, Hamilton Pereira, e o João Pedro Stédile, da direção do Movimento Sem-Terra. Além do grande debate na reunião da Abra, onde ela foi se defender desse caso.
O projeto é consistente a ponto de fazê-lo voltar a um terceiro governo federal para enfrentar a reforma agrária?
Não. Aí entra uma questão da curva biológica. É preciso energia, trabalhar 14 horas por dia e estar zero quilômetro. Quem já passou por tudo isso fica um pouco descrente. E a descrença é negativa, a pessoa precisa ter entusiasmo. Mas eu já não acredito tanto nas pessoas. Acredito nas causas mas, não acreditando nas pessoas, você demora na decisão, fica com medo de errar. E, no governo, a pessoa ou tem um feeling como o Lula, ou então corre um sério risco de errar. É por isso que toda pessoa idosa é lenta.
O senhor acha que a questão da reforma agrária vai continuar sendo um elemento determinante na conjuntura brasileira?
Acredito firmemente que ela voltará ao cenário político com a mesma força. Porque, se ela pode ser um programa superado em outros países, em outro tipo de economia e de sociedade, o Brasil está cada vez mais dependente de soluções na área da agricultura. Não só por seu valor estratégico, mas como forma de vida, como local de habitação de uma grande parcela da população que não pode mais ir para a cidade. E há, também, a questão da distribuição de renda, porque a maneira mais prática, de maior impacto para concretizá-la é a reforma agrária. São ativos vultosos e de fácil redistribuição. Isto vai ocorrer no Brasil, mais cedo ou mais tarde.
Seus planos, hoje, estão aqui na fazenda Santana do Baguaçu?
É, realmente. Eu quero terminar aqui. Uma coisa da minha vida que eu tenha começado e consiga terminar. Muitas das coisas que comecei não consegui terminar. Para terminar essa só falta plantar 14 mil pés de laranja numa outra fazenda que nós temos e que já está pronta, já encomendamos as mudas e em fevereiro nós plantaremos. Também falta construir uma usina de borracha, porque apesar de termos 35 mil pés de seringueira vendemos a borracha in natura. Este ano nós construímos uma usina de café, que é dez vezes mais cara e dez vezes mais complexa que a de borracha. Terminando isso, eu só quero me dedicar à pescaria e deixar o lugar para os moços. Tem uma pergunta, Renato, que você não fez e eu me admirei. Vou fazer por conta própria. É a velha história da fazenda. São 1.260 hectares e nós ainda temos mais três fazendas. A pergunta é: por que você não faz a reforma agrária em suas terras? Não adiantaria nada se eu pegasse e dividisse isto aqui. Nem teria o efeito de demonstração, porque, primeiro, toda a economia regional não permitiria uma experiência dessas. O que eu tenho feito, além dos benefícios sociais, é tentar fazer, no círculo da família, alguma coisa em termos de redistribuição. Dessas quatro fazendas, uma eu já passei totalmente para o meu filho e genros. de duas delas eu tenho apenas uma parte. E essa, que é o carro chefe, onde nós temos todas as máquinas, toda a estrutura, temos os computadores, o escritório, o controle todo, eu já doei para os netos. Esse patrimônio já está totalmente dividido, em vida, entre dezessete pessoas. Acho que nessa parte também, eu não terei dificuldade para entrar no céu. é a primeira vez que falo disso. é um detalhe quase pessoal, mas que pode ajudar a explicar, não justificar.
Renato Simões é membro do conselho de redação de T&D.