Este artigo se propõe a compartilhar reflexões individuais e outras produzidas pela Marcha Mundial das Mulheres como espaço de ação política e instrumento da luta das mulheres. Pretendo identificar as dinâmicas da relação entre o conservadorismo e a crise considerando três eixos de articulação entre o capitalismo e o patriarcado: o trabalho, o território e o corpo.
Há algum tempo nós feministas temos falado que há uma onda conservadora em nosso país. O Congresso hoje se debruça sobre propostas de lei que atacam liberdades e direitos individuais, como são o Estatuto do Nascituro, que atribui direitos ao conjunto de células em formação em detrimento da mulher, e o Projeto de Lei nº 5.069/13, de autoria do atual presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, que restringe o atendimento a mulheres vítimas de violência sexual e seu acesso a medicamentos como a pílula do dia seguinte e o coquetel anti-DSTs. O Estatuto da Família, que compreende como família apenas a união entre homem e mulher, ignora os outros arranjos formados por casais homoafetivos e tantas outras relações familiares possíveis em um contexto de pouca responsabilização masculina pelo cuidado com seus filhos.
Esses projetos se coordenam com outras iniciativas de retirada de direitos coletivos, como o PL 4.330/04, conhecido como PL da terceirização; a redução da maioridade penal; o PL 3.722/12, que pretende revogar o Estatuto do Desarmamento; a PEC 215, que transfere para o Congresso a autoridade sob o processo de demarcação de terras indígenas e quilombolas; e o Código da Mineração, entre outros.
Essa avalanche se dá de forma coordenada entre a política, a economia, a cultura e a sociedade. Isso significa que mais do que uma lista de projetos de lei e emendas constitucionais de caráter retrógrado tramitando no Congresso, há uma movimentação comum desses setores conservadores, cujos posicionamentos gradativamente ocupam espaço na sociedade e na economia.
A crescente onda de conservadorismo se manifesta nos espancamentos públicos de jovens negros como forma de fazer “justiça com as próprias mãos”, no crescimento da militarização da vida cotidiana e da ordem pública; ou na opinião de 48% dos jovens entrevistados pelo Ipea, os quais “acham errado que as mulheres saiam sozinhas com os amigos, sem a companhia de seu parceiro”.
Ao compreender que o patriarcado também é um sistema que estrutura o capitalismo, vemos que o avanço do conservadorismo é funcional e essencial à reorganização da vida demandada pela crise econômica. Em outras palavras, a engrenagem do capitalismo e do patriarcado precisa se reajustar a partir da crise que se instala no país, e o conservadorismo azeita essa dinâmica.
David Harvey nos oferece um instrumento útil para entender esse processo ao explicar que o capital se reorganiza ampliando suas fronteiras e capacidade de acumulação. Essa dinâmica ele nomeia como “acumulação por despossessão”. A acumulação por despossessão é fruto da expropriação de direitos do outro, sejam individuais, coletivos e/ou da natureza, através da qual o capitalismo expande suas margens e passa a mediar pelo mercado aquilo que antes não pertencia a essa esfera. Por exemplo, bens comuns da natureza como a água, que antes era de acesso livre, passam a ser quantificados e precificados pelo mercado.
A partir de uma leitura feminista desse contexto, podemos identificar que o conservadorismo, ao “sacralizar” a desigualdade entre mulheres e homens, é funcional à aliança entre o patriarcado e o capitalismo. Se de um lado a crise encontra mulheres e homens em pontos de partida muito distintos e desiguais, de outro trabalha para refuncionalizar papéis tradicionais e estabelecer novas dinâmicas de apropriação do trabalho, dos corpos e dos territórios.
O trabalho
A divisão sexual do trabalho se expressa de forma sistêmica na esfera da produção, da reprodução e na articulação entre ambas. A partir da divisão e hierarquia entre o que é trabalho de homem e o que é trabalho de mulher e da invisibilidade e marginalidade da tarefa de sustentabilidade da vida humana, exercida quase exclusivamente pelas mulheres, o sistema econômico apropria-se do trabalho gratuito das mulheres e o sistema político organiza a subordinação e exclusão das mulheres de modo a sustentar essa divisão (Paradis; Roure, 2015, p. 177).
Na esfera da produção, a reorganização passa pelo aumento da precariedade e do desemprego. A taxa de desemprego nacional levantada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, já beira os 9% (terceiro trimestre de 2015). Ao olhar de perto, veremos que esse número revela também desigualdades de raça e sexo. Na cidade de São Paulo, a taxa de desemprego entre as mulheres negras chega a 15,5%, enquanto a dos homens brancos é de 10,3%. As mulheres são as primeiras a serem despedidas em um contexto de recessão econômica, e a maioria delas está empregada nas atividades mais precárias. A terceirização nas atividades fim está intimamente ligada à precarização do trabalho, e é parte das estratégias de reduzir o custo das mercadorias e o oferecimento de serviços, criando arranjos para a externalização de etapas do processo produtivo a outras empresas (Pires; Silva, 2015).
A demanda do mercado e de seus representantes por “alterações radicais” na atual política econômica passa por desvincular as receitas de direitos sociais – originários da Constituição de 1988 – e fim da política de valorização do salário mínimo (Dieese, nov. 2015). Isso afeta diretamente as mulheres, já que são maioria entre os mais pobres e, consequentemente, entre os mais dependentes das políticas públicas colocadas em questão pelos planos de ajuste. Exemplo disso é que do total de famílias inscritas no Cadastro Único, exigido para se acessar políticas de assistência, 88% são chefiadas por mulheres.
Mas se há cortes nas políticas de saúde e educação, quem será responsável por cuidar dos enfermos e das crianças que não irão à escola? Com a diminuição da renda familiar, é preciso incorporar ao trabalho doméstico atividades que antes estavam terceirizadas para o mercado. De quem se espera essa contribuição? O tempo das mulheres aparece como uma variável de ajuste, como um recurso disponível, ou mesmo como um colchão para amortecer os impactos da reorganização econômica.
Em suma, a transferência de custos da produção capitalista às mulheres e ao trabalho reprodutivo de cuidados que realizam acaba sendo parte do ajuste: são elas as gestoras, dentro do espaço doméstico, da precariedade. A exploração do tempo e do trabalho das mulheres, combinado com a desresponsabilização do Estado e dos homens com esse trabalho, explicita uma crise também no campo dos cuidados.
A crítica feminista ao modo de produção e reprodução da vida no sistema capitalista afirma que, mais do que a inclusão de contingentes de mulheres no sistema, é necessário desmontar o caráter racista e patriarcal do Estado, calcado na divisão sexual do trabalho.
O território
Legitimado por um modelo de desenvolvimento predatório, está em curso um processo de cercamento dos territórios e de controle privado sobre bens comuns. Na expansão das fronteiras do capitalismo, recursos que antes estavam disponíveis para todos de igual forma passam a ser expropriados por empresas transnacionais e grandes corporações. A ação desses grupos privados se coordena com a tramitação, no Congresso Nacional, do Código da Mineração e da PEC 215.
Os impactos de grandes projetos de infraestrutura e de exploração de recursos hídricos e minerais deixam marcas indeléveis sobre a natureza e a vida das comunidades que ali vivem. Os efeitos da falta d’água e de terra para plantar são sentidos diretamente pelas mulheres, que seguem sendo as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidados, por tomar conta das hortas e dos animais e pelo manejo de conhecimentos tradicionais.
Nos últimos anos, diversos processos de luta social têm denunciado e resistido ao controle privado e predatório do capital sobre os territórios e dos bens comuns. É o caso da Chapada de Apodi, no Rio Grande do Norte, ameaçada pelo projeto do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) de construir o Perímetro Irrigado de Santa Cruz. Para isso, o DNOCS pretende desapropriar mais de 800 famílias da agricultura familiar da região para entregar as terras a cinco empresas do agronegócio. Esse caso é emblemático da luta das mulheres, que têm protagonizado a resistência e liderado mobilizações públicas como as realizadas durante a 4ª Ação Internacional da Marcha Mundial das Mulheres na região.
Outros exemplos que tomaram conta do debate nacional são a transposição do rio São Francisco, as hidrelétricas de Belo Monte, Santo Antônio e Jirau, a pressão das empresas de extrativismo sobre territórios tradicionais e até o recente desastre em Minas Gerais, que explicita o absurdo do projeto de mineração e sua inerente contradição com vida.
Nas regiões em que há essa atividade, a demanda predatória do mineroduto para transportar os minérios para o porto mais próximo escasseia a água para as pessoas que ali moram. Mesmo que o empreendimento não cruze uma área específica onde vive uma comunidade, a vida se torna inviável, já que a água deixa de estar disponível em nome do transporte de minérios.
A acumulação gerada pela exploração dos territórios e bens comuns mostra o conflito capital/vida reorganizando antigas dinâmicas de exploração dos recursos naturais. A crítica feminista tem se colocado na defesa de um modelo de produção e consumo organizado a partir da vida e não do lucro.
O corpo
O modo de produção e consumo capitalista demanda a regulação permanente dos corpos para que estejam aptos e disponíveis para longas jornadas de trabalho, uma vida hipersexualizada que alimenta o consumo, o mercado da prostituição ou mesmo para alienação do desejo.
O conservadorismo, ancorado na ordem patriarcal, tramita projetos de lei no Congresso, utiliza púlpitos e palanques, para controlar os corpos, em especial os das mulheres, limitando as decisões sobre a sexualidade e a vida.
As mulheres padecem na clandestinidade por não terem garantido o direito a decidir sobre seus corpos. Estima-se que 7,4 milhões de mulheres no Brasil já abortaram. Por trás do debate do aborto há uma tutela constante das mulheres, retirando delas toda e qualquer autoridade moral sobre seus próprios corpos. O projeto de lei do deputado Eduardo Cunha, o PL 5.069 já citado, ao exigir boletim de ocorrência e exame de corpo de delito não reconhece na voz das mulheres a única “prova” necessária para dar início ao atendimento médico.
O último Mapa da Violência Contra as Mulheres (2015), publicado pela Flacso, revelou que, durante 2013, 4.762 mulheres foram assassinadas (treze por dia), e as negras foram alvo prioritário desses homicídios. Segue sendo natural estuprar, maltratar, insultar e ofender, tanto por parte dos que perpetram tais atitudes, como por parte de nós mulheres, que não estamos acostumadas a identificar as manifestações de violência como tal.
O número de assassinatos chama muito a atenção e gera profunda indignação, entretanto é preciso dizer que as mulheres querem estar vivas para uma vida que valha a pena ser vivida, com dignidade, liberdade e direito a ter seus projetos.
Algumas considerações para terminar
A luta das mulheres por transformações não é algo linear, que avança de maneira uniforme até a igualdade completa. A história nos mostra que há momentos de mais liberdade e igualdade e outros de retrocessos, pois as dinâmicas do capitalismo e do patriarcado se atualizam.
Isso coloca o desafio de conectar a maior presença nos debates públicos dos temas históricos do movimento de mulheres, como a violência, com um processo mais amplo de transformações.
As liberdades individuais não podem ser desassociadas da ideia radical de justiça social, sob pena de se fazerem funcionais ao modelo. Ou, como nos ensina Naila Kabeer, só há reconhecimento com redistribuição, e só há redistribuição efetiva ao reconhecer as desigualdades estruturantes do atual modelo de produção e consumo.
Sarah de Roure é mestre em Desenvolvimento e Cooperação internacional pela Universidade do País Basco e militante da Marcha Mundial das Mulheres em São Paulo