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A ditadura no Brasil coincidiu com uma etapa muito acelerada da revolução tecnológica no resto do mundo. A transição lenta, gradual, interminável, impossibilitou aos velhos protagonistas e aos novos figurantes uma solução honrosa para a distância entre os projetos abortados em 68 e as transformações imprescindíveis para que o país não perdesse em definitivo o trem da história.
O teatro brasileiro, dividido entre retomar processos interrompidos pelo regime de exceção e identificar novas estéticas (e, principalmente, novos públicos), acabou por repetir erros de avaliação e inaugurar novos desvios. É necessário identificar os fios perdidos dos projetos que se escondiam sob os nomes TBC - Arena - Oficina para distinguir o que é o novo indispensável do que é apenas o velho inevitável.
As saídas já são visíveis para qualquer observador da cena nacional: o aprofundamento das relações com o exterior e o interior do país. Para fora do eixo Rio-São Paulo, os caminhos do teatro nacional passam por Nova Iorque e Barbacena (MG), por Manizales (Colômbia) e Londrina (PR).
Franco Zampari fundou, em 1948, o TBC - Teatro Brasileiro de Comédia - e com ele a primeira companhia profissional brasileira a viabilizar, a longo prazo, temporadas com aquele repertório e aquela estética pelas quais toda uma geração de paulistas e cariocas vinha lutando através de projetos como "Os comediantes" .
Último alento hegemônico de uma aristocracia falida, ou ao contrário, gesto de afirmação de uma cultura imigrada (Zampari é um pouco o Egisto Guirotto de Jorge de Andrade), a verdade é que o TBC estabeleceu critérios estéticos que não só se reproduziram à exaustão - e ainda estão presentes na produção mais comercial - como foi a base sólida para que projetos tão díspares como os de Boal, Guarnieri, Zé Celso Martinez ou Amir Haddad pudessem se concretizar, ainda que por oposição.
Dessa experiência surgiu um teatro que, ainda hoje, 45 anos depois, predomina no gosto do público médio. Trair e coçar é só começar de Marcos Caruso, Porca miséria, do mesmo autor em parceria com Jandira Martini, Procura-se um tenor, dirigida por Bibi Ferreira e protagonizada por Juca de Oliveira, Fulvio Stefanini e Débora Duarte e, principalmente, O céu tem que esperar, produzida por Paulo Autran são montagens que repetem, hoje, no palco - e na platéia - a estética do TBC.
O interessante é que desta mesma matriz surgiu o que nosso teatro tem de mais "experimental" e pessoal: a trajetória de Antunes Filho. Assistente dos italianos do TBC, Antunes foi nosso melhor sucedido encenador "comercial", antes de se lançar na aventura que desembocaria em Macunaíma (1977), obra-prima que nos colocou no mapa do circuito internacional. Misturando influências que vão de Bob Wilson a Suzuki a um discurso quase new age, Antunes criou com o CPT (Centro de Pesquisa Teatral) um núcleo de fazer teatral de Primeiro Mundo. Da cenografia à interpretação ele chegou a um método sempre anunciado, mas nunca publicamente exposto - que se traduz em uma postura e não em uma estética estratificada. O centro de sua reflexão é o homem brasileiro, presente em obras que partem de Guimarães Rosa, Shakespeare ou mesmo de texto "próprio" (Nova velha estória). Mas o nó da produção nacional, Antunes ainda não venceu: ele não conseguiu encontrar ou produzir uma dramaturgia específica para sua estética. Aliás, sua experiência com um autor de primeiro time e vivo (Luiz Alberto de Abreu - Xica da Silva) resultou no espetáculo mais fraco dessa fase.
Sua interpretação para o fato coincide com a de seu contrário no espectro ético-ideológico: Gerald Thomas. Com palavras diferentes os dois confessam o que vários encenadores da nova geração repetem: o novo teatro ainda não encontrou uma nova dramaturgia. Os autores escrevem nos anos 90 "liderando atores intelectualmente limitados". Como se estivessem nos 40 - à espera de diretores decepa, fiéis ao "autor".
A verdade é que Antunes encontrou, sim, sua solução. E ela é macunaímica. Ele reescreve Nelson Rodrigues, Guimarães e Shakespeare sob a justificativa da direção e sem o ônus de uma adaptação. E agora anuncia um retorno ao início mesmo de toda a sua trajetória de pensador do palco. Vai remontar Pedreira das almas, de Jorge Andrade, texto com o qual encerrou as atividades do TBC em 1964.
Um estudo atento do texto de Andrade, da história daquela montagem e da trajetória posterior de Antunes levam a uma conclusão curiosa: nosso mais ambicioso artista do palco não existiria sem a herança "retrógrada" da Cia. da Rua Major Diogo e, em seu primeiro espetáculo de autor, ele fechou as portas de seu berço com um retrato profético do processo de depauperização da população sob o jugo do regime que então se inaugurava. Que ele retorne agora a esse texto é sinal de que um ciclo se conclui - ou se reinicia. E, com ele, o país também volta a enfrentar velhas quimeras.
Arena
O Arena terminou porque a ditadura prendeu, torturou, matou e forçou ao exílio seus integrantes. A mesma afirmativa é verdadeira no caso do grupo Oficina. Mas tanto um como o outro teria suas atividades encerradas mesmo se a ditadura não eclodisse. Esse final já se encontrava claramente anunciado em sua própria história.
O projeto de Guarnieri e de Vianinha era, em sua base, muito diferente do projeto de Augusto Boal. Hegemônico no grupo, Boal desenvolvia um trabalho que inevitavelmente teria que fazer a opção entre o político e o estético. Sua experiência de teatro-jornal e mesmo a sistematização rígida do Sistema Coringa já apontavam para uma opção clara pela ação política direta em detrimento da militância restrita ao universo tradicional da encenação.
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Teatro na Câmara
Hoje, o trabalho dos dois centros de "teatro do oprimido" - um na França e outro no Canadá - é um indício de que o Arena, enquanto grupo, iria necessariamente se desmembrar. Isso é ainda mais claro na adesão de Boal à política tradicional. Como vereador do Rio de Janeiro pelo PT ele está exercendo mandato com uma plataforma revolucionária na forma. Segundo ele "nos anos 60 nós desvendamos o que há de político no teatro, agora vamos desvendar o que há de teatral na atividade política". Seu método: um grupo de atores vai usar suas técnicas de teatro do oprimido para levar as discussões de projetos da Câmara às ruas, captar lá as posições populares sobre esses assuntos e levá-las para o plenário.
Nesse caminho do teatro para a política ficaram órfãos exatamente aqueles que haviam feito o caminho contrário. Vianinha e Guarnieri fundaram o TPE (Teatro Paulista do Estudante) como tarefa para o PCB. Fizeram um teatro que só se distinguia do realismo socialista por ter bom gosto e uma ginga própria. A ditadura fez com que ambos encontrassem terreno apropriado para amadurecer a sua dramaturgia. Guarnieri conseguiu ser mais afinado do que nunca com seu tempo em peças como Um grito parado no ar e Ponto de partida e Vianinha alcançou a maestria em Rasga coração - exatamente um texto sobre as opções possíveis para um coração de esquerda numa sociedade vocacionada para a direita.
Mas a redemocratização vai deixar essa ala sem projeto. Vianinha, prematuramente falecido, talvez pudesse achar novos caminhos com sua proverbial capacidade de trabalho e de autocrítica. O mesmo não aconteceu com Guarnieri.
O autor que colocou o operariado no centro da cena (Eles não usam black tie, 1958) não evoluiu com o tempo. Partiu para uma dramaturgia auto-indulgente (Pegando fogo lá fora, 1988) e para um projeto auto-referente: a re-ocupação do teatro de Arena. Esse vinha sendo utilizado por períodos de dois anos por grupos fixos. O primeiro projeto capitaneado por Fauzi Arap - Tarô: Rosa dos ventos - rearticulou um Seminário de Dramaturgia que desde então (88) mantém-se em atividade permanente sob a direção de Chico de Assis e conseguiu realizar pelo menos uma reflexão poética sobre a impossibilidade de se retomar o projeto dos anos 60 de forma mecânica na obra-prima Às margens do lpiranga, texto e direção do próprio Fauzi Arap. Os dois anos seguintes, 1990-91, foram utilizados por Francisco Medeiros e seu Maioridade de 68 que reuniu, durante um ano, depoimentos públicos de personagens como José Dirceu, Fernando Gabeira, Fernanda Montenegro e Zuenir Ventura.
Mais uma vez a chave lírica foi acionada para se trabalhar esse material em espetáculos como Homeless, com texto de Noemi Marinho, e Antares, de Alcides Nogueira. Em 1992, depois de duas experiências vitoriosas, o espaço foi cedido a Guarnieri. Não se pode falar em decepção. A verdade é que nada ou quase nada aconteceu no espaço da Teodoro Baima. É como se a paralisação do artista – que, aliás, ficou doze anos sem mostrar textos novos antes do fracassado Pegando fogo... - se refletisse no homem público e político (lembre-se que Guarnieri foi secretário municipal da Cultura). Praticamente fechado, a não ser por uma curta temporada de Meu nome é Pablo Neruda, texto escrito às pressas para preencher um buraco criado por problemas de direito autoral, o Arena permanece fechado como um símbolo da perplexidade em que se encontra toda uma geração que fez uma opção preferencial pelo compromisso ideológico e que não consegue reagir à aparente derrocada de seu universo de referências ideológicas.
Teatro Político
O trabalho que mais se apropria das questões e procedimentos do teatro político como foi entendido pela geração de Guarnieri, sintonizando-o com a realidade mais imediata é o de Aderbal Freire Filho e seu Centro de Construção e Demolição do Espetáculo. Em dois espetáculos, O tiro que mudou a história e Tiradentes, ele inaugurou um Núcleo de Teatro Político e redimensionou a questão do viés ideológico em qualquer análise histórica.
O tiro... reviveu durante dois anos de temporada a última noite de Getúlio Vargas no próprio Palácio do Catete, hoje Museu da República. A equação "épico versus dramático" encontrou aí um equilíbrio delicado, reproduzindo em outra chave os procedimentos erigidos pelo Arena na fase dos musicais. Já Tiradentes levava o público em ônibus pelo Rio parando em cinco estações da via-sacra do personagem título (não por acaso presente no repertório do Arena - Arena conta Tiradentes).
Aderbal encara a questão de frente, nomeando-a. Aceitando o rótulo de teatro político, ele tenta desmitificar a categoria e a aproxima da questão puramente teatral - como se fosse possível dissociá-las.
Mas o trabalho do Centro não se resume a seu Núcleo de Teatro Político. Aderbal enfrentou a questão da transposição da linguagem literária para o palco em A mulher carioca aos 22 anos, de João de Minas. O romance desse predecessor de Nelson Rodrigues ganhou montagem radical do Centro: o uso de uma derivação do Sistema Coringa aplicada ao texto amoral e debochado espalhou-se num primeiro momento por mais de cinco horas numa opção por transpô-lo na íntegra. A falta de concentração de um público desacostumado a montagens longas (comuns na Europa) obrigou a realização de cortes drásticos, que não descaracterizaram a proposta.
Está pois a tradição do Arena muito bem representada. Paradoxalmente por alguém que fez opções opostas às dos pressupostos daquele grupo. Senão vejamos: para Aderbal a questão inicial é a da ética e não a ideológica, ao contrário da própria história da formação do Arena. Em segundo lugar, Aderbal não adere à ilusão da inevitabilidade da vitória do socialismo ou da superioridade natural das formas populares - suas opções estéticas são sofisticadíssimas. E, melhor, não cai na falácia da morte das ideologias. Ele não teme a dúvida, mas se orgulha de suas certezas.
Museu Proletário
Já a tradição do CPC (Centro Popular de Cultura), derivada da face mais engajada da odisséia do Arena, também mantém seus desdobramentos. Amir Haddad e César Vieira tratam de manter a chama acesa.
César Vieira, nome artístico do corajoso advogado de presos políticos Idibal Piveta, mantém há décadas seu União e Olho Vivo como uma espécie de museu vivo do teatro proletário e revolucionário, resultado de uma tradição que começa no teatro político de Piscator, passa pelos grupos anarquistas em São Paulo e desemboca nesse grupo que desde 1972, permanece fiel a seus objetivos e procedimentos. Nele os conceitos de popular e nacional são já definidos, não cabendo dúvida ou dissensão.
Amir Haddad e seu grupo Tá na Rua é seu oposto. Sem nenhuma certeza apriorística, ele procura realizar um trabalho popular e voltado para as questões nacionais. Haddad abdicou até do consagrado espaço do palco, preferindo a rua. Seu teatro não é "teatro na rua", é "teatro da rua", pensado e realizado na via pública, no espaço aberto. Ele procura cooptar o público para a ação, alterando-a pelo processo - sem se preocupar com a clareza da mesma mensagem ou a pureza dos meios. É um verdadeiro revolucionário que tem espalhado sua inquietação - e não suas certezas - por grupos de rua de Porto Alegre, do Nordeste e, principalmente, do Rio de Janeiro, onde reside e atua mais seguidamente. Haddad realiza o sonho do CPC, ainda que não seja à primeira vista politicamente correto. Seu teatro é popular, de adesão imediata pela massa e é revolucionário, na medida em que consegue transformar em reflexão orgânica o que encontra como manifestação ideológica nas praças das grandes cidades. Não é por acaso que o grupo resiste com dificuldade, sem nenhuma ajuda substancial dos órgãos públicos. No que aliás é assemelhado ao grupo de Aderbal Freire Filho.
Pós-moderno
A esquerda, portanto, está presente em nossa produção teatral, apesar dela mesma, enquanto categoria, ter sua existência cotidianamente negada. Estaria a direita representada apenas pelo chamado teatro comercial que reproduz e referenda a ideologia burguesa? Ledo engano.
Como expôs brilhantemente Eugênio Bucci no último Festival de Teatro de Curitiba, "hoje mais do que nunca existe uma diferença clara entre esquerda e direita e esta diferença é imprescindível. Está mais à esquerda quem prioriza o direito à vida, inerente ao ser humano, em detrimento ao direito à propriedade. A posição contrária a essa é a direita".
E Bucci expande essa reflexão para os palcos: "Existe uma desonestidade da esquerda, sempre que subjuga os interesses estéticos à defesa de uma tese - e isso geralmente resulta em mau teatro. Mas existe seu equivalente à direita, é a chamada pós-modernidade, no momento em que vende a febre da razão, a impossibilidade de se definir um padrão de valores, como se fosse uma certeza irrefutável. Quando vejo esse engodo embrulhado em luz e fumaça, tenho vontade de sair do teatro".
À primeira vista essa colocação pode parecer um ataque direto ao trabalho de Gerald Thomas. No entanto, me parece que essa reflexão é mais pertinente se dirigida aos filhotes de Gerald Thomas espalhados pelo território nacional.
Thomas
Thomas é encenador de primeiro time, grande artista plástico que realiza, na verdade, instalações às avessas, onde o público é que fica imobilizado - por tédio, deslumbramento ou compromisso com a "modernidade". Anos-luz na frente da maior parte de nossos profissionais, ele determinou um grau de exigência técnica que alterou radicalmente nosso panorama teatral em poucos anos. Seu calcanhar de Aquiles é justamente o mesmo de Antunes: não encontra material dramatúrgico à altura de suas aspirações estéticas. Mas é menos esperto que Antunes. Esse conhece suas limitações e usa os clássicos como rede de segurança. Gerald se arrisca como dramaturgo e aí os resultados são risíveis - principalmente se comparados com sua performance como encenador. Mas se descontarmos seu marketing pessoal e a irresponsabilidade de sua relação com a cultura nacional, trata-se de um artista maior à procura de um meio de expressão. O problema é que o que nele é orgânico, copiado vira pastiche de pós-modernidade. Paródia de paródia nem paródia é.
A reflexão de Bucci é ainda pertinente se aplicada ao grande contingente de encenadores que transitam numa faixa estreita entre as inovações das artes cênicas (onde as fronteiras entre dança, ópera e teatro são tênues) e a reflexão pseudofilosófica. São encenadores por vezes talentosos, mas que parecem paralisados pela quantidade de informação mal digerida. Jovens que têm opinião formada sobre Nietzsche, mas não se pronunciam sobre as próximas eleições. Grupos com uma azeitada máquina de produção, mas sem projeto estético. Citar nomes para esses casos seria apenas fazer uma provocação desnecessária. Inclusive porque sua confusão ideológica é involuntária. Eles recriam o espaço da "arte pela arte", do artista burguês cujo direito à expressão lírica está acima de seus compromissos com a realidade social onde sua produção se coloca. São românticos avant la lettre posando de racionalistas, para quem crítica é adesão ou ataque pessoal. Juventude é um mal que passa. Burrice não.
Oficina
O Oficina foi o ápice de um tempo em que o teatro brasileiro era vanguarda no mundo e dialogava com a comunidade e os outros componentes da cultura oficial, liderando-os. Seu protagonista foi José Celso Martinez Corrêa, gênio comprovado, que teve a capacidade de, numa trajetória de pouco menos que quinze anos, ingerir e deglutir, recriando antropofagicamente a trajetória teatral do Ocidente de Stanislavsky - na melhor montagem realista brasileira segundo vários críticos, Os pequenos burgueses de Máximo Gorki (1963) - , até a subversão das relações palco-platéia em Gracias Señor, espetáculo que sintetizava as suas vivências da contracultura em sua convivência com o Living Theatre no Brasil.
O Oficina, extinto pela ação da ditadura, iria terminar se transformando em outra coisa, de qualquer maneira - mas à moda do Arena. Sua vocação era para a teatralização da vida. Explodido o espaço convencional do palco, Zé buscava explodir o tempo. Teatro não é apenas das 9 às 11 da noite, mas por toda a vida.
Sua trajetória no exílio e depois de sua volta é uma ilustração dessa intenção. De 79, quando voltou, a 91, quando estreou seu primeiro espetáculo a fazer temporada regular desde As três irmãs (1973), Zé transformou sua atuação pelo tombamento do Oficina e depois por sua demolição e reconstrução em Uzina Uzona, terreiro multimídia, num longo espetáculo teatral. Invadiu os gabinetes dos burocratas com procissões dionisíacas (e registradas em vídeo), promoveu bacanais em espaços universitários, subverteu a lógica dos programas de televisão em que participou numa espécie de continuação do trabalho de Glauber Rocha. Seu palco é o mundo.
Em parte isso se deu porque as condições objetivas de produção se mostraram sempre inóspitas para ele. Por outro lado se formou uma espécie de rede de preconceitos, que culminou com o epíteto de "decano do ócio". Mas talvez o principal seja que o não atuar no espaço tradicional emoldura exatamente sua atuação na esfera pública, seu verdadeiro papel de poeta do palco, seja nos happennings ou leituras públicas que sempre terminavam por ser "montagens que poderiam entrar em cartaz", ou em sua atuação. Na mídia e diante de platéias espontâneas nas ante-salas dos gabinetes ou na praça pública.
Sua reestréia com As boas - leitura personalíssima das Criadas de Jean Genêt - transformou o texto numa metáfora para sua condição no teatro brasileiro, criada que mata por opção existencial a madame (na montagem Raul Cortez) e é por esta excluída das benesses da vida burguesa (ou da cidadania plena).
Louco do Tarôt, outsider que paga berrando, como bom bode, o preço de sua lucidez, Zé Celso é imprescindível para o equilíbrio da ecologia de nosso claustrofóbico mundo artístico e intelectual. Com a possível estréia de seu Hamlet reinaugurando o espaço da rua Jaceguai, ele voltará a ocupar também o tempo e lugar burocraticamente delimitados para o teatro. Sem abandonar a vida.
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Novos expoentes
A novíssima geração já escolheu seus expoentes. Em São Paulo é Gabriel Vilela. No Rio, Moacyr Góes.
Vilela colecionou em quatro anos de carreira mais de setenta prêmios para seus espetáculos. Trabalhou com grupos de forte identidade como o Boi Voador, o Circo Graffiti e o Galpão (de Belo Horizonte) e também com estrelas como Regina Duarte, Xuxa Lopes, Lucinha Lins e Beatriz Segall.
Partindo de Shakespeare, C. A. Sofredinni, Heiner Muller ou Raymond Queneau o resultado é sempre autoral: o universo de Vilela é reconhecível já ao se abrir o pano. Cenógrafo estupendo, em seu trabalho é impossível dissociar o aspecto visual da encenação propriamente dita.
Ele procura o essencialmente brasileiro através de referências pessoais - chega a usar objetos e roupas de sua cidade natal, Carmo do Rio Claro com lugares comuns, o circo, teatro, o melodrama, o clown.
Sua última encenação, A Guerra Santa de Luiz Alberto de Abreu, estreou em Londres, no Lift-London International Festival of Theather e talvez seja o seu espetáculo mais equilibrado até aqui. Nele, as referencias locais e universais se mesclam até formarem um terceiro elemento, onde a marca do diretor é indelével. É trabalho de maturidade.
Moacyr Góes também amadurece a olhos vistos. Do quase preciosismo de seu primeiro espetáculo de impacto "Escola de bufões" - ele alcançou uma depurada síntese entre informação e viés lírico em Epifanias, uma versão muito pessoal e muito brasileira do Sonho de Strindberg.
Ainda que esteticamente distantes, algo une Vilela a Góes: no centro de seu teatro está a questão ética. Ambos buscam compreender (ou forjar miticamente) um sistema de valores que os sintonize com um projeto de país que aparentemente os exclui. Não há lugar para o artesanal na Nova Ordem Mundial. Que não se veja aí uma ojeriza à tecnologia e sim um resgate da dimensão humana na questão da produção.
Os descamisados substituem os simplesmente humanos na peça de Strinberg revisitada por Góes. Vilela faz de Dante um ser enlouquecido pelo convívio cotidiano com a miséria da população e a impotência diante da violência organizada. Entre a violência (Dante) e a poesia (Virgílio), uma patética Beatriz simboliza a natureza tentando salvar ao menos a cara de uma humanidade que convive pacificamente com a barbárie, sem compreender que pode (e vai) ser dragada por ela.
Vilela e Góes, sistematicamente acusados de maneiristas, são os dois diretores da nova geração que têm atacado essa questão central de forma mais direta e inteligente.
Outros centros
Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife, Curitiba, Salvador, Belém - para ficarmos apenas nas capitais - têm uma tradição de produção e de consumo de espetáculos teatrais. Nessas cidades a divisão entre amadores e profissionais é tão tênue quanto no eixo Rio-São Paulo. Quantos profissionais, dentre os envolvidos nas mais de quatrocentas estréias do ano de 92 em São Paulo vivem realmente de seu trabalho? O que sustenta o ator brasileiro é - parodiando um bem sucedido produtor de São Paulo - a propaganda, a família e a telenovela. As exceções são, é claro, exceções.
A recessão, é óbvio, piorou essa realidade. Mas talvez a tenha depurado para melhor. O Grupo Ponto de Partida, de Barbacena, por exemplo, organizou uma estrutura de produção que, baseada na inter-relação com a comunidade, mostrou-se extremamente eficaz. O resultado é esteticamente sintonizado com essa comunidade - e com outras, como atesta o estrondoso sucesso em Montevidéu do espetáculo Beco - a ópera do lixo.
Exemplo semelhante encontramos em Salvador, onde a indústria cultural escreveu um capítulo à parte através do trabalho soteropolitano que produz e consome cultura autóctone, mas não xenófoba.
O melhor exemplo da viabilidade da produção em centros urbanos menores é a trajetória do Festival de Teatro de Curitiba. Em duas edições, o Festival passou desventura corajosa a empreendimento com repercussões internacionais.
Ele é, hoje, a vitrine do teatro brasileiro para o circuito internacional. De suas edições resultaram, por exemplo, a estréia de Gabriel Vilela em Londres e o convite a Bia Lessa para se apresentar em Montreal com Orlando - sendo ali aclamada como a grande promessa do teatro latino-americano, o que lhe abriu as portas para o circuito de distribuição europeu.
Mas o mais importante é que Curitiba se firmou como um espaço de reflexão dos profissionais da área brasileira em debates que invariavelmente tiveram lotação esgotada.
Isso só é possível porque Curitiba cultivou um público que se habituou a comparecer a espetáculos e manteve uma produção ininterrupta desde os anos 60, formando uma geração de diretores e atores sintonizada com a cena mundial. Diretores como Raul Cruz (prematuramente falecido), Marcelo Marchioro e Edson Bueno têm dado contribuições significativas à cena brasileira.
O surgimento da Rede Brasil de Produtores, conectada à Rede Latino-americana de Produtores Independentes de Arte Contemporânea, em funcionamento há três anos, tornou possível, agora, um aspecto imprescindível para a viabilização de um mercado nacional para artes cênicas: a circulação de informações. Se as produções do Rio e de São Paulo se desconhecem imaginem o que se passa entre Canela (RS) e Campina Grande (PB) apenas para citar duas cidades cujos festivais têm sido focos de resistência à impermeabilidade da mídia a formas "artesanais" e "não modernas" de arte.
A existência dessas redes e o fortalecimento do Festival de Curitiba como vitrine da melhor produção dita profissional e dos festivais de Londrina e Campinas como porta para o teatro vinculado à Universidade ou à reflexão mais geral são a saída visível para a falta de informações que torna nossos profissionais tão vulneráveis à repetição de erros e a uma visão distorcida de suas possibilidades.
Estado
O teatro brasileiro - como toda a cultura - não pode depender do Estado. Governos que não conseguem nem criar uma política agrícola, num país como o Brasil, com certeza não sabem nem o que significa "política cultural". Ficamos assim à mercê de ações criminosas como as da quadrilha Fernando Collor/Ipojuca Pontes ou das limitações de competência de gestões politicamente corretas, mas inoperantes como a de Marilena Chaui.
Mas a rigor só saímos formalmente dos tempos de exceções a pouco mais de dois anos - com a posse do primeiro presidente eleito. E o processo democrático levará, no mínimo, uma geração para novamente funcionar sem as febres da primeira infância.
Na mão de outsiders como Fauzi Arap, Denise Stocklos, Antonio Nóbrega, Naum Alves de Souza, C. A. Sofredini, Hamilton Vaz Pereira, pessoas cujos projetos transcendem suas raízes históricas, é que talvez esteja a chave de uma estética mais afinada com o futuro do país. O cidadão-contribuinte, na perfeita definição de Plínio Marcos, começa a enxergar possibilidades na cena oficial. No momento em que a grande massa marginalizada do processo econômico tiver acesso às possibilidades do jogo teatral, talvez não se solucione a questão econômica, mas a questão política terá com certeza amadurecido.
O teatro protagonizou nosso único surto de identidade cultural (1950 a 1968) e sobreviveu a todos os ataques econômicos, físicos e políticos da ditadura explícita (1964 a 1984) ou implícita (1985 a 1990). Tem tudo para ser novamente deflagrador de um processo de construção (ou identificação) de uma identidade nacional. Ainda que de maneira involuntária.
Aimar Labaki é jornalista e dramaturgo.
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