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Meu luxo é andar nas ruas, a qualquer hora da noite ou do dia, sozinha ou acompanhada, a pé, de ônibus ou de metrô e não sentir medo de nada

Vou direto ao ponto: estive em Paris. Está dito e precisava ser dito, logo verão por quê. Mas é difícil escapar à impressão de pedantismo ou de exibicionismo, ao dizer isso. Culpa da nossa velha francofilia (já um tanto fora de moda). Ou do complexo de eternos colonizados diante dos países de Primeiro Mundo. Alguns significantes, como Nova York ou Paris, produzem fascínio instantâneo. Se eu disser “fui a Paris”, o interlocutor responderá sempre: “Que luxo!” E se contar “fui assaltada em Paris”, ou “fui atropelada em Paris”, é bem provável que escute: “Mas que luxo, ser assaltada (atropelada) em Paris!”

O pior é que é verdade. É um verdadeiro luxo, Paris. Não por causa do Louvre, da Place Vendôme ou dos Champs Élysées. Nem pelas mercadorias todas, lindas, chiques, caras, que nem penso em trazer para casa. Meu luxo é andar nas ruas, a qualquer hora da noite ou do dia, sozinha ou acompanhada, a pé, de ônibus ou de metrô (nunca de táxi) e não sentir medo de nada. Melhor: de ninguém. Meu luxo é enfrentar sem medo o corpo-a-corpo com a cidade, com a multidão.

O artigo de luxo que eu traria de Paris para a vida no Brasil, se eu pudesse – artigo que não se globalizou, ao contrário, a cada dia fica mais raro e caro –, seria este. O luxo de viver sem medo. Sem medo de quê? De doenças? Da velhice? Da morte, da solidão? Não, esses medos fazem parte da condição humana. Pertencemos a esta espécie desnaturada, a única que sabe de antemão que o coroamento da vida consiste na decadência física, na perda progressiva dos companheiros de geração e, para arrematar tudo, na morte. Do medo desse previsível grand finale não se escapa.

O luxo de viver sem medo a que me refiro é bem outro. O de circular na cidade sem temer o semelhante, sem que o fantasma de um encontro violento esteja sempre presente. Não escrevi “viver numa sociedade sem violência”, já que a violência é parte integrante da vida social. Basta que a expectativa da violência não predomine sobre todas as outras. Que a preocupação com a “segurança” (que no Brasil de hoje se traduz nas mais variadas formas de isolamento) não seja o critério principal para definir a qualidade da vida urbana.

Não vale dizer que fora do socialismo esse problema não tem solução. Há mais conformismo do que parece em apostar todas as fichas da política na utopia. Enquanto a sociedade ideal não vem, estaremos condenados a viver tão mal como vivemos todos por aqui? Temos de nos conformar com a sociabilidade do medo?

Mas eu conheço, eu vivi numa cidade diferente desta em que vivo hoje. Esta cidade era São Paulo. Já fiz longas caminhadas a pé pelo Centro, de madrugada. Namorando, conversando com amigos, pelo prazer despreocupado da flânerie. A passagem do ano de 1981 para 1982 está viva na minha lembrança. Uma amiga pernambucana quis conhecer a “esquina de Sampa”. Fomos, num grupo de quatro pessoas, até a Ipiranga com a São João. Dali nos empolgamos e seguimos pelo centro velho. Mendigos na rua não causavam medo. Do Paissandu (o Ponto Chic estava aberto, claro!) seguimos pelo Arouche, República, São Luís, Municipal, Patriarca, Sé; o dia 1° nasceu no Largo São Bento.

Não escrevo movida pelo saudosismo, mas pela esperança. Isso faz tão pouco tempo! Sei lá como os franceses conseguiram preservar seu raro luxo urbano. Talvez o valor do espaço público, entre eles, não tenha sido superado pelo dos privilégios privados. Talvez a lei se proponha, de fato, a valer para todos. Pode ser que a Justiça funcione melhor. E que a sociedade não abra mão da aposta nos direitos. Pode ser que a violência necessária se exerça, prioritariamente, no campo da política, e não da criminalidade.

Se for assim, acabo de mudar de ideia. Viver sem medo não é, não pode ser um luxo. É básico; é o grau zero da vida em sociedade. Viver com medo é que é uma grande humilhação.

Maria Rita Kehl é psicanalista