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A divulgação de vídeo norte-americano e a reação muçulmana levantam questões importantes sobre democracia e relações pacíficas entre povos e nações

Desde o início do mês de setembro começou a ser divulgado um vídeo no YouTube chamado Inocência dos Muçulmanos, produzido nos Estados Unidos, aparentemente, por um grupo de cristãos evangélicos e coptas. Nesse filme, o fundador do islamismo, o profeta Maomé, é caricaturado como um assassino pedófilo e mulherengo cercado de seguidores valentões e idiotas. O objetivo dos produtores, provavelmente, era acirrar o sectarismo religioso e provocar os fiéis muçulmanos a adotar atitudes que constrangessem a opinião pública do Ocidente e justificar a continuidade da interferência militar e política dos EUA e da União Europeia no norte da África e no Oriente Médio.

O vídeo deu o gancho a partir do dia 11 de setembro – marca dos onze anos dos atentados às Torres Gêmeas em Nova York – para manifestações em todos os países com população majoritariamente muçulmana e até naqueles onde essa comunidade é minoritária, como a França e outros países europeus. A maioria delas tinha caráter pacífico, mas, nos países onde os fundamentalistas, como os salafitas e grupos inspirados ou ligados a Al Qaeda, têm maior presença, foram violentas. Várias embaixadas ocidentais foram atacadas no Sudão, no Egito e também na Líbia, onde quatro diplomatas americanos foram mortos na cidade de Benghazi. Em outros países, como Iêmen e Tunísia, houve morte de manifestantes pela polícia.

O ocorrido levanta pelo menos três questões importantes e interligadas pelo seu vínculo com democracia e relações pacíficas entre povos e nações: a responsabilidade da liberdade de expressão, as intervenções imperialistas no norte da África e no Oriente Médio e a preservação dos espaços diplomáticos.

Embora a Suprema Corte dos Estados Unidos ao longo do século 20, coerente com o liberalismo das instituições americanas, tenha julgado favoravelmente à liberdade de expressão em vários casos polêmicos, como a publicação de revistas sensacionalistas e até o direito de a Ku Klux Klan expressar publicamente suas posições racistas e violentas, isso não representa necessariamente um modelo ideal e tampouco um padrão a ser seguido pelo resto do mundo. O princípio da liberdade de expressão não pode ser aceito como instrumento de promoção de violência e de preconceitos, pois nesse caso a liberdade não só um interfere na liberdade de outro ser humano como ofende sua dignidade e, no limite, ameaça a própria existência dele.

Diversas autoridades americanas e de outros países classificaram o vídeo em questão como “asqueroso”, mas essas condenações foram bastante comedidas em comparação com outros momentos, como quando grupos de extrema direita e neonazistas ofenderam a comunidade judaica ou quando há negações do holocausto judeu. Práticas antissemitas em alguns países podem inclusive levar a processos e prisões, o que, no entanto, não ocorre no caso de atitudes antimuçulmanas, embora os árabes que professam essa religião também sejam semitas.

Essa gradação de tratamento em que os muçulmanos são prejudicados também se relaciona à política imperialista de intervenção nos países árabes para atender a interesses econômicos e políticos, iniciada pelos europeus no século 19 e seguida pelos americanos após a Segunda Guerra Mundial, principalmente para assegurar o fornecimento de petróleo. E, afinal de contas, ninguém coloniza ou tenta exportar valores políticos e culturais para povos e nações que considera mais poderosos e desenvolvidos.

No caso particular do Oriente Médio, essa política foi levada adiante por meio de governos títeres como o de Reza Pahlevi no Irã, Mubarak no Egito, a monarquia saudita e as do Golfo Pérsico, além do papel beligerante exercido por Israel, o principal aliado dos EUA na região. Quando o governo americano julgou necessário, não vacilou em intervir diretamente, como a invasão do Iraque, o bombardeio da Líbia e as atuais ameaças à Síria e ao Irã.

Diante desse processo de décadas, seria difícil não haver grandes ressentimentos, que agora vêm à tona no bojo da chamada Primavera Árabe. Ironicamente, os grupos fundamentalistas que promoveram os atos mais violentos têm sido apoiados ou pelos americanos e europeus, como a Al Qaeda na Líbia e na Síria, ou pelo Qatar e pela Arábia Saudita, no caso dos salafitas tunisianos e egípcios.

Não há justificativas para a invasão de embaixadas e assassinatos e, aliás, neste momento a melhor aposta que deveríamos fazer é na atuação da diplomacia. Mas, para que esta possa funcionar, é necessário finalizar a interferência estrangeira no norte da África e no Oriente Médio e respeitar as crenças e culturas de seus povos. Também é necessário que as grandes potências sejam coerentes, pois não adianta exigir a proteção de suas instalações diplomáticas nos países árabes e ameaçar invadir a embaixada equatoriana em Londres, como ocorreu após a concessão de asilo a Julian Assange.

Kjeld Jakobsen é consultor de Relações Internacionais