Nacional

A partir do presente é possível construir diferentes vias de acesso ao passado, não como a verdade essencial e originária da história, mas como verdades que são produzidas

Este texto resulta de palestra e subseqüente debate realizados pela autora, durante o evento "Trinta anos de uma história malcontada", promovido pela Fundação Getúlio Vargas, no período de 22/03 a 04/04/93.

Duas questões têm se cruzado com alguma freqüência quando tratamos da História do Brasil dos últimos trinta anos, sobretudo se colocamos um marco em 68: a idéia de uma história mal contada, e o problema da cultura e identidade nacional.

A história mal contada implica também a idéia de uma história bem contada. Nesse registro, a história bem ou mal contada supõe um "ponto de apoio fora do tempo", uma instância moral, que julga segundo uma "objetividade apocalíptica", que pode ser o tribunal da história. Supõe a possibilidade de se chegar a uma verdade única, a verdade da história. Trata-se de um "ponto de vista supra-histórico: uma história que tem por função recolher em uma totalidade bem fechada sobre si mesma, a diversidade enfim reduzida do tempo; uma história que nos permitiria nos reconhecermos em toda parte e dar a todos os deslocamentos passados a forma de reconciliação"1.

O tema da identidade nacional traz os problemas envolvidos na questão da identidade: a identidade como unidade, como completude, como não divisão, como "forma móvel a tudo o que é externo, acidental ou sucessivo", a identidade preservada de uma origem. Traz ainda a idéia da necessidade de se assegurar de uma identidade, como condição de existência individual, social ou cultural, mesmo que seja pelo mecanismo da nostalgia de uma identidade perdida: um dia houve, um dia haverá; um antes, um depois de.

Ambas as formulações permanecem no registro de uma verdade essencial a que a história permitiria atingir. Conduzem a trabalhar com as oposições verdade-erro, verdade-falsidade, no registro moral, portanto da história.

Gostaria de propor um outro modo de se pensar a história, uma história para além de bem e mal contada. Para isso vou me valer da imagem grega arcaica da verdade, não sem antes apontar para o risco do anacronismo, que envolve a consideração de um outro tempo no interior do tempo dos historiadores. Essa postura significa a colocação de questões aos gregos, que não são gregas, porque eles não a recortaram como tais, mas são questões da atualidade, de um problema atual, de uma situação atual2.

Diferentemente das noções da antiguidade clássica e da modernidade, os gregos arcaicos (na Teogonia de Hesíodo) tiveram a experiência da verdade como alétheia, que indica o não esquecimento.

As musas, filhas da memória, constituem-se em uma força de esquecimento e memória, com o poder da ausência, ou da presença, de velamento ou desvelamento. A linguagem que as musas cantam implica uma força de nomear, o poder de fazer à presença o não presente, coisas passadas e futuras. O passado e o futuro pertencem ao reino noturno do esquecimento até que a memória de lá os recolha e faça-os presentes pelas vozes das musas. A força presentificante da nomeação é que mantém a coisa nomeada no reino da memória - o nomeado pertence ao reino do esquecimento, do não ser3.

A questão atual a partir da qual se volta aos gregos, recorrendo à prática da analogia, é a de um modo de se pensar a história, a partir do recorte do esquecimento e da memória. Nessa perspectiva, é possível sair do registro moral da história que pretende chegar a um conhecimento verdadeiro e essencial dos acontecimentos e passar a escutar a história a partir dos jogos entre esquecimento e memória, que são também jogos de produção/construção de verdades. Esta questão conduz a uma outra, dela decorrente, também presente na indagação construída: a memória como linguagem é construída na sua relação com o esquecimento. O esquecimento é o que não é nomeado, representado, simbolizado ou, ainda, é o que não se mantém como coisa nomeada na linguagem da memória.

30 anos de uma história: 1963, 1964? 25 anos deuma história: 1968? Datas?

"Datas são - como diz Alfredo Bosi - pontos de luz", presenças luminosas da memória, "sem as quais a diversidade acumulada dos eventos causaria um tal negrume" (o esquecimento) "que seria impossível sequer vislumbrar no opaco dos tempos os vultos das personagens e as órbitas desenhadas pelas suas ações. A memória carece de nomes e de números. A memória carece de numes. Mas de onde vem a força e a resistência dessas combinações de algarismos? (...) Vêm da relação inextricável entre o acontecimento, que elas fixam com a sua simplicidade aritmética" (são índices) "e a polifonia do tempo social, do tempo cultural que pulsa sob a linha de superfície dos eventos"4.

A questão atual a partir da qual se volta aos gregos, recorrendo à prática da analogia, é a de um modo de se pensar a história, a partir do recorte do esquecimento e da memória. Nessa perspectiva, é possível sair do registro moral da história que pretende chegar a um conhecimento verdadeiro e essencial dos acontecimentos e passar a escutar a história a partir dos jogos entre esquecimento e memória, que são também jogos de produção/construção de verdades. Esta questão conduz a uma outra, dela decorrente, também presente na indagação construída: a memória como linguagem é construída na sua relação com o esquecimento. O esquecimento é o que não é nomeado, representado, simbolizado ou, ainda, é o que não se mantém como coisa nomeada na linguagem da memória.

30 anos de uma história: por que 68?

Da relação claro/escuro da memória e do esquecimento emerge como questão atual um sentido importante, posto por 68, que pode se constituir em uma pista de acesso ao passado e ao acontecimento. Retomando textos escritos, no calor da hora, emergiram duas palavras: a brecha (expressão de Cohn Bendit que dá nome ao livro de Claude Lefort e Morin-La Brèche, publicado em Paris) e a irrupção (expressão de Henri Lefebvre que dá nome ao livro publicado em 68 em Paris e no Brasil)5.

Buscando os significados de brecha encontramos: fenda ou abertura de alguma coisa; espaço vazio; ferida ou corte largo e profundo. Reencontramos acoplados por Lefebvre à palavra irrupção, a contestação que vem do vazio, de uma lacuna, das falhas e dos buracos. É importante marcar que se trata de sentidos que foram registrados simbolicamente na linguagem da história, naquele momento e retomados por Morin dez anos depois, quando definia 68, pelas questões inquietantes e enigmáticas que trazia. Nesse momento, Morin já apontava, no jogo do esquecimento e da memória o recalque de um sentido, tanto pelos "sobreviventes do movimento" como pelos "doutores que dissecaram o cadáver", numa alusão aos instrumentos conceituais da ciência social e política". E esse sentido era, nessa construção dez anos depois, o de 68 como uma brecha feita na sociedade, uma fenda, um vazio, uma abertura, de onde irrompe ou se precipita todo um recalque, todo um inconsciente, todo um conjunto de coisas marginais, toda uma necessidade, toda uma libido"6.

Poderíamos dizer, todo um desejo, correndo o risco, como aponta Nicole Loraux de "aventurar-se a falar das paixões", contrariamente ao "projeto de cientificidade da historiografia contemporânea", "que tendeu cada vez mais à desconfiança, para não falar da recusa, em reconhecer nas decisões e na maioria das sociedades, o surdo trabalho de uma instância desejante"7.

Na relação claro/escuro da memória e do esquecimento, esse sentido de 68, embora registrado simbolicamente e, portanto, parte da memória de 68, é obscurecido, num movimento de fechamento e portanto de esquecimento. E isto porque a fenda, o vazio, a abertura significaram o dilaceramento de uma identidade imaginária da sociedade, da cultura, da política, da pessoa, representação intolerável para ser mantida pela memória.

Esse traço de 68, e a partir de agora pensando sobretudo no Brasil, configura o acontecimento 68, num dos aspectos de sua dimensão trágica. Retomando a questão, 30 anos de uma história, por que 68?, poderíamos dizer que o ano de 68 é por um lado marcado pela "inatualidade", ou seja pela "faculdade de exceder os limites de sua época", e por outro lado é um ano único, que concentra e condensa, numa unidade de tempo, uma pluralidade de significações e res significações temporais8. 68 no Brasil, no seu efeito de concentração-condensação, é 64, o golpe militar; é 61, a renúncia de Jânio; é 55 e a tentativa de golpe militar para impedir a posse de Juscelino Kubitschek; é 54, o suicídio de Vargas; é 61, e o surgimento da chamada Nova Esquerda, com organizações e partidos clandestinos que se opunham ao PCB. Mas é também 69, a montagem da estrutura repressiva pelo Estado e pelas organizações paramilitares, a censura e a tortura; é 69 e a explosão da guerrilha urbana; é 72 e a inexistência da guerrilha do Araguaia; é 74 e o início da distensão lenta, gradual e segura; é 77 e o retomo do movimento estudantil às ruas e a emergência dos novos movimentos sociais; é 79, a Anistia; é 8 1, o atentado do Riocentro; é 84, as diretas-já; é 85, e o estado de compromisso da transição, ainda, com a Nova República; é possivelmente 89, a eleição de Collor e a derrota eleitoral do PT.

68 também no seu efeito concentração-condensação é cultura e política inextricavelmente ligadas: é a Bossa Nova e a Tropicália, é o Cinema Novo e o Cinema Marginal; é o Teatro de Arena e o Teatro Oficina. É ainda a irrupção da questão da sexualidade, na relação homem-mulher e na homossexualidade. É a questão do corpo.

68 no Brasil ainda recebe os ecos do acontecimento 68 internacional: nos Estados Unidos, o movimento estudantil e a contracultura, mas também o assassinato de Luther King e Robert Kennedy e a eleição de Nixon; o maio de 68 francês, mas também a vitória de De Gaulle nas eleições gerais, a recomposição dos partidos políticos, a recuperação econômica, conjunto esse simbolicamente representado pelo asfalto do Quartier-Latin, que recobre as pedras utilizadas para as barricadas da luta estudantil. A Primavera de Praga e a conseqüente ocupação do país pelas tropas do Pacto de Varsóvia. O movimento estudantil no México e o grande massacre na Praça das Três Culturas. Recebe os ecos ainda da morte de Che Guevara na Bolívia em 67 e da Guerra do Vietnã.

A nomeação dessa série de significações, em grande parte paradoxais, faz de 68, um acontecimento, "o lugar temporal da emergência brutal de um conjunto de fenômenos sociais surgidos das profundezas e que sem ele continuariam enterrados". "Sua significação é absorvida na sua ressonância; ele não é senão um eco, um espelho da sociedade, uma abertura"9.

O dilaceramento das identidades imaginárias da sociedade, da cultura, da política e da pessoa expressou-se de várias formas nesse efeito de concentração-condensação de 68: o dilaceramento do projeto nacional desenvolvimentista, projeto de construção de uma identidade nacional que se rompe em 64; o dilaceramento de um projeto de esquerda nacional, em torno do PCB e das alianças vislumbradas com uma burguesia nacional - nesse momento buscava-se a construção de uma identidade nacional em oposição a uma identidade dada pelo imperialismo americano; o dilaceramento da esquerda, a partir de 61, que construía até então sua identidade em torno do PCB, com a emergência da Nova Esquerda e a constituição das várias organizações e partidos clandestinos; o dilaceramento de uma identidade construída no interior da esquerda nacional, na aliança operário-camponês e ainda na aliança estudante-operário-camponês; o dilaceramento de um projeto de formação de uma consciência nacional, expressado pelo Iseb; o dilaceramento de um projeto de uma cultura nacional popular, em torno do CPC (Centro Popular de Cultura), de um teatro nacional, de um cinema nacional.

Esses projetos buscavam uma identidade, a da nação, que se fazia presente na sua virtualidade imaginária. Significava a expressão de uma necessidade de se assegurar de uma identidade, de uma necessidade de completude, de não divisão.

Esse efeito de concentração-condensação foi ainda no imediato pós-68 o dilaceramento também da idéia de revolução, substituída em seguida pela idéia da resistência contra a ditadura, substituída ainda pela idéia de transição, uma das mais longas de que se tem notícia, que se constrói juntamente com a noção de democracia.

68 foi ainda o lugar de um outro tipo de dilaceramento da identidade, a da pessoa: a construção da identidade do militante da luta armada significou a semiclandestinidade e a clandestinidade absoluta, que implicava a adoção de uma identidade outra, em permanente tensão com a da "vida normal", em alguns casos de modo definitivo. Significou a adoção da identidade do exilado, dividido por tempos e lugares diversos. Significou a tentativa ou a destruição mesma da identidade da pessoa, pela tortura, pelo suplício físico e psíquico, pelo desamparo, pelo medo-pânico, pela perda da percepção e da memória, pela destituição do humano: a tensão entre o cotidiano normal e a "fenomenologia da bestialidade"10. Significou ainda no procedimento dos desaparecidos, o apagamento de uma só vez da vida e da morte, quando se "mata a própria morte com o desaparecimento de pessoas, de seus corpos, de seus nomes (N.N. Nomen Nescio-Nome Ignorado) de sua existência jurídica11.

Esse significado de 68 foi o de uma situação limite entre vida e morte, a do dilaceramento das identidades expressando uma relação com a morte, com as várias mortes (a morte da idéia de nação, na política, na cultura, a morte da unidade da esquerda, a morte da idéia de revolução, a morte da identidade de pessoa), com a morte definitiva e até mesmo com a morte da morte. Teve sua expressão mais violenta no enfrentamento do Terror de Estado.

O que irrompia, em 68, da brecha, da fenda, do vazio, da abertura, era uma instância desejante, que no processo de construção de suas diferenças em relação a seus vários outros, dilacera as identidades, no movimento de seus confrontos e questionamentos. Tragicamente, nesse mesmo momento, o poder pensar-se de modos diferentes, no movimento de construção de um distanciamento dos seus vários outros, implicou o defrontar-se com um Outro absoluto e onipotente, o Terror de Estado, frente ao qual não é possível nenhum efeito de produção do sujeito. Situação limite que indica a produção da alienação, da desintegração e destruição da subjetividade, na incapacidade de estabelecer laços sociais.

O Terror de Estado significou simultaneamente a construção/destruição de identidades, a do guerrilheiro, a do terrorista, a do mau brasileiro, a do inimigo da Pátria, a do desordeiro, a do depravado, e assim por diante, impondo uma identidade absoluta da ordem e da segurança nacional. A perversidade da situação é a de que tudo se fez em nome da lei, dos atos institucionais, da Lei de Segurança Nacional e intermitentemente com a presença da instância legislativa máxima, o Congresso Nacional. Tratou-se do arbítrio transfigurado em lei, um dos significados importantes presentes em 68 e que ainda circula, se repete, no Brasil de hoje.

A estratégia de construção do terror de Estado não implicou uma dimensão extensa, se comparada com outras experiências autoritárias ou totalitárias, como as da Argentina, do Uruguai, ou do Chile. Mas o conjunto dessas experiências teve um mesmo núcleo, dado por um objetivo comum dos Exércitos Americanos. Esse núcleo comum, como teoria e prática, foi em grande medida elaborado no Brasil e exportado para aqueles países.

Do ponto de vista da relação memória e esquecimento, o fato do Terror de Estado, no Brasil, ter atingido diretamente um círculo relativamente restrito, provocou três situações extremamente complexas.

A primeira, comum às demais experiências latino-americanas, que deriva do enfrentamento direto do Terror, do Outro absoluto e onipotente, pode vir a constituir-se num "bloco de representações intoleráveis" para a memória, marcado pela dificuldade de simbolização da experiência, que põe em funcionamento as "técnicas de esquecer". Nessa perspectiva, o passado que não se torna passado é produto do recalque, que não significa a ausência do reprimido12.

A segunda, também comum às demais experiências, se refere especialmente à questão dos desaparecimentos de pessoas e ou de realidades que passam a ser consideradas como inexistentes (o caso do massacre coletivo na Guerrilha do Araguaia, até hoje não reconhecido oficialmente como tendo existido) provoca o mecanismo da forclusão, o da abolição simbólica, o do não nomeado, o do não sucedido, o do não incluído no âmbito da linguagem e portanto da História.

A terceira é típica da situação brasileira, em virtude da peculiaridade da repressão que atinge um círculo relativamente restrito e da censura, às vezes sutilmente burlada, que atinge os meios de comunicação. Esta situação provoca para o restante da sociedade brasileira, o sentido anteriormente apontado, do inexistencialismo: de realidades inexistentes para a maior parte da população brasileira, não simbolizadas portanto e ausentes na memória e numa certa construção da história. Esta ausência de simbolização tem um significado muito preciso, o de não poder esquecer, pois o esquecimento só é possível quando algo foi registrado na ordem simbólica.

A não simbolização produz a possibilidade do retorno de sentidos das "realidades inexistentes" sob a forma da alucinação. É expressiva desse retorno a violência que volta a circular, nos episódios de bombas nas bancas de jornais, da carta-bomba enviada à sede da Ordem dos Advogados do Brasil, e do episódio maior, a da explosão à bomba de um carro onde estavam elementos do Exército e ligados ao DOI-Codi (Departamento de Operação de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna), no estacionamento do Riocentro, no momento em que se realizava um show em benefício de causa da esquerda, episódios esses que ocorrem em 1980-81, no governo Figueiredo, diante da possibilidade da "abertura" política.

Mais recentemente, em 1989, o ano da campanha eleitoral para a Presidência da República, que envolvia a candidatura do PT, foi marcado por uma forte emergência de episódios ligados àquelas realidades inexistentes: o ressurgimento da violência do discurso do CCC, Comando de Caça aos Comunistas, "seguram os seus radicais que seguraremos os nossos", numa advertência a uma pretensa volta da guerrilha; o surgimento de uma organização nazista clandestina no país, o ressurgimento da Ação Integralista Brasileira, o seqüestro pelo Esquadrão da Morte, do presidente da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda; ameaças de atentados, atentado na Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda; sabotagens etc., clima esse que pode ser reconstruído por uma releitura dos jornais daquele ano.

A circulação ainda hoje, da prática do extermínio à criminalidade ou de pessoas sem vinculação com o crime, como tem informado a imprensa, também pode ser considerada como um retomo de significados do que estou chamando de realidades inexistentes. Em 1969, a prática comum do extermínio à criminalidade é introduzida na repressão política, com a transferência, em São Paulo, de Sérgio Paranhos Fleury, do Deic ( Departamento Estadual de Investigações Criminais) para o Dops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social). As práticas do Esquadrão da Morte estendem-se aos grupos guerrilheiros urbanos e também suas adjacências, sem delimitação precisa (o inimigo potencial). E é uma prática que permanece, após a ditadura, agora no âmbito do Estado de Direito, enriquecida pelas estratégias de ação construídas no combate à guerrilha urbana. A circulação permanente e alucinada dessa prática, conjugada ao sentido, que apontei anteriormente, do arbítrio transfigurado em lei, configuram um problema importante para a atualidade.

Do jogo entre memória e esquecimento emergem ainda modos de aproximação do acontecimento 68, que se constituem em diferentes posições de acesso ao passado, construídas pelas maneiras diversas em que opera o esquecimento, na sua relação com a memória.

O esquecimento como cicatrização pode produzir algumas significações importantes relativas ao modo de ver o passado13.

Um primeiro sentido é o do esquecimento como produto do próprio fluxo do tempo. Há uma formulação de Marcuse importante de ser aqui recolhida que diz: "as feridas que saram com o tempo são também as que contêm o veneno", numa clara alusão à persistência dos elementos recalcados, que apesar da passagem do tempo, não se tomam passado. É como se o tempo adquirisse uma dimensão inercial que, em si mesma, pudesse produzir o esquecimento14.

O modo de aproximação com o passado é marcado pela letargia (do grego lethe, esquecimento e argia, inércia). Nesse registro é possível problematizar a mais longa transição que se tem notícia, a brasileira, que concorre para o esquecimento ou para a diluição da memória coletiva dos eventos da repressão.

Este longo processo é marcado por crises no interior das Forças Armadas que têm como centro a questão da abertura, mas sobretudo pelo enfrentamento, a partir do governo Geisel, dos setores militares ligados ao aparelho repressivo, extremamente reforçado no período Médici, caracterizado por alto grau de autonomia em relação ao Estado.

Uma das questões mais expressivas do controle, pelas Forças Armadas, da abertura e da transição, foi a Anistia, em 1979. Aqui constrói-se um segundo sentido importante de cicatrização, pelo modo como opera o esquecimento na sua relação com a memória. Embora a Anistia tenha uma dimensão importante que vem da sociedade civil, a sua aprovação, pelo Congresso Nacional, constitui-se numa imposição do esquecimento, porque passou pela necessidade de um acordo, não escrito, entre as diversas facções militares de que a abertura não levaria à investigação do passado e o compromisso de que o aparelho repressivo não seria investigado, nem julgado.

Ficaram anistiados, ampla e totalmente, os acusados de crimes "conexos aos crimes políticos" (numa referência às torturas e outras violações dos direitos humanos). É criado, ainda, um procedimento pelo qual os parentes de desaparecidos podem obter rapidamente uma "declaração de ausência", tentativa de sepultar juridicamente os cadáveres insepultos dos desaparecidos.

A normalização da sociedade e da política no Brasil é marcada por esse jogo entre esquecimento e memória, onde o esquecimento é cicatrização, seja no seu aspecto de dimensão inercial do tempo ou no seu aspecto de imposição.

Ecos desses significados ressoam em 1989, o tenso ano da campanha eleitoral e que marcaria, enfim, o término institucional da transição. Vou tomar apenas dois exemplos, dos inúmeros daquele ano: um texto de Jarbas Passarinho e um texto de Roberto Freire, publicados na imprensa.

Passarinho faz uma réplica ao artigo do historiador Luiz Felipe de Alencastro, que tematizava a dificuldade de se esquecer, ainda naquele momento, os efeitos do poder político fundado na violência, a partir de 64, e se referia a Jarbas Passarinho como um dos liberticidas, que pronunciou a imortal frase, na Reunião do Conselho de Segurança Nacional que aprovou o AI-5, em 68: "Às favas, senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência", vinda à luz apenas recentemente. Jarbas Passarinho, ex-ministro do Trabalho do governo Costa e Silva, ex-ministro da Educação do governo Médici, ex-ministro da Previdência Social e ex-líder do governo Figueiredo que encaminha o projeto de Anistia ao Congresso, e ex-representante do Brasil no Bicentenário da Declaração dos Direitos do Homem, no governo Sarney, reitera então que anistia visava pacificar a família brasileira e que essa pacificação passava obrigatoriamente pelo esquecimento15.

O texto de Roberto Freire, então candidato do PCB à Presidência da República, tematizando a questão da relação entre a esquerda e as Forças Armadas, propõe a superação dos conflitos do passado, que não devem ser obstáculo para os objetivos do futuro, decretando superados os efeitos traumáticos daqueles conflitos16.

Um terceiro sentido, ainda, do esquecimento como cicatrização pode ser pensado na linha de uma posição de exorcização do passado, que ao torná-lo outro, produz as condições de sua completa inteligibilidade e de recuperação de uma plenitude anterior, marcado pelo completo distanciamento e pela lucidez17. Esse sentido encontra eco ainda na perspectiva do militantismo, que procura recuperar uma plenitude anterior do passado, a partir da construção de uma inteligibilidade do erro e da verdade (do acerto) a que são submetidas retrospectivamente as ações políticas, no acontecimento. Nessa visão, o que houve foi uma inadequação da estratégia à conjuntura: percepção recorrente numa certa linha interpretativa da história daqueles acontecimentos. A Revolução faltou ao encontro por um erro basicamente de estratégia política.

Há um quarto e último sentido de cicatrização. Um tipo de acesso ao passado construído pelo jogo entre esquecimento e memória e marcado pelas imagens de perda e melancolia. Na aproximação melancólica com o passado, a perda é desconhecida ou não se pode ver claramente o que foi o perdido18 "Fixado ao passado, regressando ao paraíso ou ao inferno de uma experiência não ultrapassável, o melancólico é uma memória estranha: tudo findou, ele parece dizer, mas eu permaneço fiei a esta coisa finda, estou colado a ela, não há futuro... Um passado hipertrofiado, hiperfóbico ocupa todas as dimensões da continuidade psíquica"19.

Essas imagens circulam ainda no presente, talvez com menor intensidade do que nos anos 70 e 80.

A melancolia tem ainda uma outra acepção importante para a construção das vias significativas de acesso ao passado. Trata-se de uma imagem que conflui para a idéia moderna da acedia, que é a do sentido grego homérico da akédia, que significa o "abandono de um cadáver sem sepultura"20. Essa imagem permite a aproximação com uma das questões mais difíceis de ser elaborada, a questão dos desaparecidos. O desaparecimento configura uma experiência de morte sem sepultura, ou seja, uma experiência de morte que se carrega em vida. A impossibilidade da realização do ritual do luto - a sepultura configura uma situação de perda em que não se consegue renunciar ao objeto perdido, o que produz a melancolia. As mães da Praça de Maio na experiência argentina, o caso Rubens Paiva, que simboliza na experiência brasileira a questão dos desaparecidos (por ter sido um dos primeiros casos, repostos pela memória, em 1986) são evidencias daquela dificuldade de elaboração21.

O recorte, aqui desenvolvido, permite sair do registro da história bem ou mal contada e permite, a partir do presente, da atualidade, a construção de diferentes vias significativas de acesso ao passado, não como a verdade essencial e originária da história mas como verdades que são produzidas pelo jogo claro/escuro da memória e do esquecimento.

Irene Cardoso é professora no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, atualmente redigindo tese de livre docência sobre 68 no Brasil.