Sociedade

Fala-se muito em refluxo, em retirada dos sujeitos e organizações com visões e práticas progressistas no interior da Igreja e até no desaparecimento da Teologia da Libertação. Há uma dose de verdade nessa avaliação, mas uma análise realista mostra sinais evidentes de que os sujeitos constituintes da Igreja popular se revisaram, se reorientaram, descobriram novos caminhos e atividades

A análise de uma igreja nacional, no caso a brasileira, pressupõe buscar compreender e explicar um amplíssimo contexto, do qual se podem salientar as intrincadas relações com a sede romana e as injunções permanentes do Vaticano, a sua inserção histórica e mútuas influências com a sociedade brasileira, as formas de organização e funcionamento institucional que assumiu, os vários sujeitos que compõem o espaço social e religioso católico.

Objetivos impossíveis de serem sequer enunciados com a mínima profundidade neste texto. Sem poder ignorá-los e para não me quedar em horizontes muito genéricos, essa reflexão exige demarcações claras e recortes indispensáveis. Ficarei adstrito a alguns comentários sobre a situação da Igreja nos anos 90, remontando às tendências gestadas nos anos 60, e tendo por eixo analítico as relações entre religião e política, ou entre os diversos protagonistas católicos (hierarquia, clero, religiosos e laicato) e sua presença na sociedade civil e no Estado, tangenciando as determinações mais históricas e estruturais.

O leitor deve se acautelar, desde logo, para o uso aqui das expressões "conservador" e "progressista", cuja adequação não pode ser entendida ao pé da letra. Na interpretação do senso comum, "conservador" corresponde à defesa da manutenção da ordem, da disciplina, do tradicional, com posições políticas à direita; "progressista" corresponde à defesa de reformas profundas, de inovações, com posições políticas à esquerda; no entanto, muitas vezes no cotidiano há uma mistura e não é raro alguém assumir posturas conservadoras em assuntos religiosos e progressistas em assuntos seculares, ou vice-versa.

Um elemento que sobressai nas várias elaborações sobre o tema, com divergências aqui e acolá, se centra na constatação do peso que o catolicismo e a instituição religiosa tiveram do início da colonização até os anos 50 do século XX, no sentido da sua integração/articulação orgânica com as elites e classes dominantes e com o poder político (ressalvando-se expressivos grupos e movimentos que, em determinadas conjunturas, criticaram e mesmo se opuseram a essa situação).

Um grande número de intérpretes salienta como um momento de inflexão importante os anos 60, quando um contingente significativo de membros (bispos, padres e leigos) passa a buscar um relacionamento mais forte com os setores e classes subalternos, ou, utilizando o jargão próprio deles, com os oprimidos, os pobres. A noção cunhada no período e que vingou foi a de "Igreja popular", entendendo por ela essa vinculação com o povo empobrecido, para dar-lhe "voz e vez", para assumir a defesa de seus interesses e propugnar transformações estruturais. Relembrando a polêmica daquela época, tudo faz crer que houve uma sinergia mútua, uma relação dialética, de setores da Igreja terem se convertido às classes populares (à base da estrutura social brasileira, às massas), pelo engajamento em distintas pastorais populares e pela atuação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs); e, simultaneamente, pela entrada na Igreja de grupos e movimentos organizados desse amálgama popular, "ocupando" um espaço institucional, principalmente pela procura de um abrigo para os movimentos sociais populares que encontraram nela um guarda-chuva protetor, processo esse que a vinculou aos seus interesses imediatos e propiciou que a Igreja se comprometesse com perspectivas político-ideológicas de mudanças no capitalismo.

No âmbito interno, é válido lembrar a presença e o pensamento elaborados pela Ação Católica Especializada e pelo Movimento de Educação de Base, bem como a atuação de seus militantes e outros mais nos grupos e movimentos políticos da época (Ação Popular, sindicalização rural, organizações de cultura popular, partidos políticos), como potencializadores da nova orientação assumida sobre a concepção de religião e seu relacionamento com a sociedade, sobre o papel dos leigos como sujeitos ativos, sobre a visão mesma da eclesialidade. No plano mundial, é de se recordar a influência fecunda de certas encíclicas (Mater et Magistra, Populorum Progressio), do diálogo entre cristãos e marxistas na Europa e em países latino-americanos, do impacto de certas proposições originadas no Concílio Vaticano II e na reunião dos bispos em Medellín. Na América Latina, vale lembrar a atuação dos Cristãos para o Socialismo e o Movimento dos Sacerdotes para o Terceiro Mundo.

No âmbito externo, é de se registrar a crise econômica e política da América Latina na ocasião, o vigor de alguns movimentos reformistas e revolucionários na região, a ressonância da Revolução Cubana, o fenômeno da dependência, o nacional-desenvolvimentismo, os conflitos entre as classes sociais, o populismo, para se dar conta das condicionalidades nas ações e relações sociais entre os católicos e deles com os grupos, setores e classes.

Aquela situação engendrou o surgimento dos Estados de Segurança Nacional e, em conseqüência, uma repressão acirrada contra os opositores, neles incluídos representantes da Igreja Católica, em todo o continente. Em contrapartida, a Revolução Nicaragüense trouxe alento na linha de que um projeto alternativo era viável. Os regimes militares trouxeram resultados polarizadores no mundo católico. Pelo lado da Igreja popular, a consolidação da Teologia da Libertação, que passou a impregnar todas as forças progressistas nas pastorais, nos grupos e comunidades populares e nas atividades políticas em prol da libertação; o fortalecimento das Comunidades Eclesiais de Base e de espaços democráticos e autônomos do laicato; a criação e disseminação de entidades de educação popular de cunho emancipador; as ligações teóricas (documentos de denúncia e propositivos da hierarquia e do clero principalmente) e práticas (além das pastorais populares, com a criação das Comissões de Direitos Humanos, de Justiça e Paz etc.) de representantes católicos com todas as forças progressistas oposicionistas aos regimes militares e às imposições norte-americanas.

Pelo lado dos setores oficiais e de linha conservadora, houve grande mobilização no sentido de frear e cercear a atuação da Igreja popular. O Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam) se serviu de pressões diretas aos episcopados dos países e ações concretas objetivando mudar radicalmente a orientação eclesiástica e pastoral, contando também com alianças de setores dos EUA e com setores governamentais e empresariais de diversos Estados, descontentes com a postura dos progressistas (tida por esses clérigos e seculares como de cunho marxista, revolucionário, politizado em excesso e demasiado crítico da instituição eclesiástica). As expressões mais públicas aconteceram por meio das articulações implementadas nas reuniões de Puebla (frustradas pela reação dos progressistas) e em Santo Domingo (na qual eles atingiram em grande parte seus objetivos). A outra estratégia de maior efeito veio da Cúria Romana, na qual os setores minoritários, que não aceitaram as diretrizes conciliares do Vaticano II mas detinham funções importantes nos organismos curiais, paulatinamente prepararam uma contra-ofensiva e se somaram à posição do atual pontificado para denunciar o que eles consideram erros graves da Teologia da Libertação, pressionar as Conferências Episcopais no sentido de punir teólogos e pastoralistas, castigar bispos e teólogos que não estavam seguindo a "linha verdadeira" (haveria alguma similaridade com a "linha justa" de outras latitudes?) definida pelo Dicastério (órgão da Cúria) de Defesa da Doutrina e da Fé (antigo Santo Ofício), e para combater as posições políticas de católicos favoráveis ao marxismo e aos grupos revolucionários.

O papa

Neste ponto, vale realçar o significado da figura paradoxal do papa João Paulo II. Para uma corrente majoritária, quer nas hostes de fiéis quer em amplos círculos sociais, com ênfase na Europa mas com grande aceitação em todos os continentes, ele se tornou o guia espiritual e defensor de certezas num mundo marcado pela pós-modernidade e pelas incertezas teóricas e políticas (suas posições firmes em fatos polêmicos e a repercussão fortemente favorável da encíclica Fide et Ratio são ilustrativas). O papel central ocupado durante anos na Polônia e sua participação ativa contrária aos regimes comunistas (há um sentimento explícito nesses meios sociais de que ele representou um elemento decisivo na queda do Muro de Berlim e na derrocada do chamado socialismo real); suas viagens pelo mundo mobilizando multidões inclusive de jovens e com apoio ostensivo da mídia e dos governos locais (os mesmos círculos chegam a apontá-lo como a personalidade deste século); suas declarações e escritos de críticas aos aspectos perversos do capitalismo, indo na contracorrente da ideologia neoliberal; seu projeto de evangelização para o novo milênio e de propor o catolicismo como a "alma" da União Européia; sua postura de rigidez na defesa de certos valores tradicionais (combate ao meios anticoncepcionais e ao aborto, por exemplo) e de comando seguro da "barca de Pedro'; a lista é enorme; tudo leva a colocá-lo num pedestal muito positivo e a avaliá-lo de modo apaixonado e com exaltação.

Para uma outra corrente, igualmente expressiva, a percepção sobre a pessoa e o pontificado é bem crítica. Afirmam que houve uma "involução eclesial", se se atentar para a extrema verticalização de poder no Pontífice e da hierarquia no conjunto da instituição, cerrando as portas para o profícuo movimento de descentralização das Conferências Episcopais, bem como impedindo e retrocedendo em pontos importantes propiciados pelo aggiornamento que balizou as discussões e as diretrizes emanadas do Conclave Conciliar. Mesmo reconhecendo a importância do atual papa no cenário mundial, valorizando positivamente inúmeras posições que ele sustenta quando trata de questões referentes a temas sociais e políticos, a crítica abrange ademais sua visão sobre o papel dos leigos, as mulheres, aspectos éticos e morais, a liberdade teológica, o funcionamento das igrejas particulares etc., condensadas pela normatividade estatuída no novo Catecismo universal e fundamentalmente no Código de Direito Canônico. Um ponto fundamental que atingiu a instituição universalmente e o Brasil em particular se cinge à política de nomeação de novos bispos. Se durante décadas prevaleceram critérios de escolha fundados na diversificação de tendências, de formações, de competências e habilidades, a política deste pontificado centrou a seleção num critério básico, qual seja, o de explícita obediência ao papa e o de ser subserviente às normas da Cúria Romana (aliás, o mesmo vem acontecendo com as ordens e congregações religiosas e com os movimentos leigos - dentre os quais, pela ligação direta com o papado, sobressai a Opus Dei). Além dos impactos concretos a que esse processo submeteu as orientações doutrinárias e pastorais dos bispos (e arcebispos e cardeais) nomeados por ele, quase sempre de natureza tradicionalista e conservadora, dos conflitos produzidos entre grupos no interior de várias dioceses por nomeações totalmente inconvenientes, pode-se inferir quais serão as indicações para o novo papa tuteladas por esse Colégio Cardinalício quase totalmente nomeado por João Paulo II (sem desconhecer o fato da eventualidade de surgirem surpresas como as acontecidas na longa história da instituição).

Os setores progressistas

Na década em curso, por efeito desse encaminhamento neoconservador, fala-se muito em refluxo, em retrocesso, em retirada dos sujeitos e organizações com visões e práticas progressistas, e até no desaparecimento da Teologia da Libertação. Há uma dose de verdade nessa avaliação, mas uma análise realista mostra sinais evidentes de que os sujeitos constituintes da Igreja popular se revisaram, se reorientaram, descobriram novos caminhos e atividades.

Considerando a perda de vitalidade da instituição em seu todo (maioria de católicos nominais, saída de fiéis, pouco impacto nos meios de comunicação social, entre outros indicadores), tendo por contrapartida a revitalização de algumas dioceses e movimentos, bem como o crescimento espetacular de igrejas evangélicas pentecostais (e sua atuação na política partidária), e mesmo o avanço de seitas e cultos orientais e de outra natureza, o quadro religioso adquiriu uma nova dinâmica.

Uma possível explicação para este fenômeno deriva da "crise" de valores e de sentido neste fim de milênio, que se alinha com as "crises" do capitalismo e dos paradigmas explicativos: num mundo de incertezas sobre utopias, ideais, projetos societários, há fortes tendências a procurar abrigos, respostas místicas e religiosas de curto prazo, a atracar em portos seguros, a buscar saídas eternas e certezas dadas pelos dogmas de fé, a encontrar mensagens de fácil assimilação. Se essas certezas não se encontram nos espaços da política, a tentação é de persegui-las no campo religioso. Nesse cenário, um elemento muito positivo é o reconhecimento de que a ciência não pode ser absolutizada e que ela tem limites insuperáveis nos marcos em que foi pensada e está sendo concretizada na modernidade; uma "volta" à temática da subjetividade e da religiosidade traz vantagens. O risco palpável é o do retorno de desejos, sempre renovados, de se implementarem projetos de neocristandade ou de governos teocráticos, afora a irrupção de fundamentalismos de toda ordem.

No espaço sócio-religioso católico, cabe uma alusão a um desafio de longa duração e que, por se constituir em algo já cristalizado, adquire uma imensa resistência à transformação. Trata-se da formação católica, principalmente nas escolas. Há séculos, em escolas conceituadas, vêm se formando milhares de indivíduos, católicos ou não, muitos dos quais se constituíram em membros das elites. Como explicar que os egressos, em grande maioria, guardem pouco ou nada dos ensinamentos do cristianismo e pautem suas vidas por valores e práticas distantes ou contrários à mensagem evangélica? Basta exemplificar com muitos que ocupam responsabilidades na condução de administrações públicas e privadas, das políticas econômicas, cujos conteúdos afetam negativamente milhões de brasileiros, e que passaram por colégios e universidades católicas (por algo inerente a qualquer estabelecimento, essas instituições devem assegurar a qualidade do ensino, e, nesse caso particular, um plus que é a condição católica que ostentam). Qual foi a formação desses ex-alunos? Como compatibilizar o deus Mercado com o Deus cristão? Quais as marcas cristãs que estão sendo imprimidas se há falência de políticas sociais concretas? Ressalve-se a existência de grupos responsáveis pela dinâmica dessas instituições que tentaram e tentam com tenacidade efetuar mudanças, obtendo algum sucesso.

Outro desafio se prende ao conteúdo do que se pretende seja evangelização e à própria concepção das relações entre religião e política. Para se contrapor à perda de fiéis e almejando enfatizar aspectos de espiritualidade que consideravam secundarizados pela politização de alguns setores católicos, ganharam espaço nos últimos anos movimentos leigos originados no exterior e com força crescente o Movimento de Renovação Carismática (em parte, seguindo a esteira dos movimentos carismáticos protestantes e sua expansão reconhecida), em princípio distanciando-se de um compromisso social mais efetivo. Nestes últimos tempos, causa espécie o fenômeno do aparecimento de padres que utilizam liturgias de massa com grande aparato estético, obviamente atraídos pela mídia, que acaba por oferecer a eles uma repercussão desproporcional, tudo na linha da "sociedade do espetáculo" que vem caracterizando o mundo. Um dado contraditório que se manifesta no seio da Igreja é o de saber que, como já aconteceu inúmeras outras vezes na história da instituição, esses eventos massivos sensibilizam por um tempo fugaz mas raramente deixam marcas profundas; no entanto, em fases de esvaziamento dos templos católicos, ir às massas e trazê-las foi e continua sendo uma estratégia bastante empregada. Além disso, a competição pelo "mercado religioso" e a constituição de uma "bancada evangélica" numericamente expressiva e atuante politicamente sugerem que disputas e conflitos acontecerão, por ora sem a virulência em vigor em outros países.

Uma esfera de presença católica significativa foram as CEBs. É reconhecido o papel essencial que tiveram nos anos 70 e 80, quer de mediação para o surgimento e desenvolvimento dos movimentos sociais populares, quer para a renovação interna da Igreja (a expressão forjada naqueles anos e que ganhou legitimidade oficial - "nova forma de ser Igreja" - diz bem do conteúdo). Com a democratização do país, elas, como os próprios movimentos, perderam a visibilidade anterior e permanecem mais na retaguarda das ações políticas. Questões internas de amadurecimento, conflitos com Roma e setores hierárquicos nacionais preocupados com sua autonomia e reivindicações de maior democratização interna da instituição (além do fato delas serem vistas como porta-vozes populares da Teologia da Libertação), aumento pequeno de seus quadros tendo em vista as dimensões do país e a população católica, levaram-nas a uma revisão. Duas preocupações polarizaram as discussões no último Encontro Nacional Intereclesial: uma referida à subjetividade e espiritualidade, sempre presentes desde a origem, mas colocadas em plano secundário - ou de modo diferente - face ao elemento politização. Neste ponto, tem havido um equilíbrio maior, com evidente enriquecimento. Outra, referida às suas conexões com as massas, tema central do Encontro, do qual se extraíram diretrizes fecundas no sentido de reconhecer seu lugar de minoria mas buscando um diálogo e aproximação com outros grupos e movimentos. No momento, elas passam por uma auto-avaliação dos fundamentos doutrinários e teóricos seguidos nos últimos anos e do método de ação empregado. É conveniente lembrar que um número muito expressivo de seus militantes atua na sociedade civil e na política, participando de associações, sindicatos, movimentos, organizações não-governamentais, partidos, administrações, cumprindo tarefas políticas importantes. Por outro lado, seus membros também atuam nas distintas pastorais e organismos eclesiásticos.

A Igreja hoje

É talvez no plano do compromisso social efetivo, do engajamento em defesa dos direitos humanos e das lutas pela justiça social - nos quais segmentos de todos os escalões eclesiais estiveram envolvidos nas décadas mais próximas -, que se pergunta pelo papel da Igreja Católica hoje. As mudanças operadas na direção da CNBB, a "restauração romana" implementada, o recuo dos progressistas e a presença mais constante dos grupos conservadores, as modificações em curso no pensamento da Teologia da Libertação (que se abriu para questões de gênero, de meio ambiente, de inculturação, de cosmogonia, entre outras), a aposentadoria de muitos bispos de linha avançada, tudo isto levanta indagações.

Exatamente na área social é que a Igreja Católica comparece atuante. As campanhas da fraternidade, que se realizam anualmente e giram em torno de temas relevantes e "quentes" da conjuntura, têm conseguido mobilizar milhares de pessoas. Diversos desses temas anteciparam a posterior tomada de medidas governamentais, principalmente em nível federal, ora pretendendo sair na frente ora tendo de colocar na agenda, mesmo contra a vontade, os assuntos selecionados para as campanhas.

Documentos de organismos leigos (Comissão de Pastoral da Terra, CIMI, Comissões de Justiça e Paz e de Direitos Humanos etc.) e dos bispos (CNBB nacional e regionais) persistem em publicar denúncias fortes sobre a situação de miséria, o aumento do desemprego, o abandono das políticas sociais, a incúria com a saúde e a educação, a violação de direitos humanos, entre tantos, e a reivindicar reformas urgentes, sobressaindo a agrária.

Um movimento de grande repercussão na sociedade é o chamado "Grito dos Excluídos", que procura ampliar parcerias com forças sociais da sociedade civil (o de 1998, contou com a participação da Central dos Movimentos Populares, do MST e da CUT, além de partidos) que lutam contra a exclusão e fortalecem os grupos organizados dos setores populares. Planejado com eventos preparatórios realizados em todas as regiões (o de 98 abarcou cerca de mil cidades), culminam num grande evento no dia 7 de setembro. Com os lemas "Aqui é meu país" e "A ordem é ninguém passar fome", difundidos nos meses de agosto e setembro pela Marcha pelo Brasil, o movimento almejava reafirmar a importância da identidade nacional contra todas as opressões e apontar o direito fundamental de toda a pessoa humana, colocando a economia a serviço da vida, contra a fome e o desemprego. Há a pretensão de que em 1999 a manifestação seja latino-americana e, no ano 2000, abranja todas as Américas.

Uma atividade que repercute principalmente na sociedade civil organizada, com ampliações na sociedade política, tem sido a realização das semanas sociais nacionais, precedidas de dezenas de semanas estaduais. Na última, o tema central foi o do resgate das dívidas sociais, as quais englobam uma série imensa de dívidas históricas e atuais cujos credores são a maioria do povo brasileiro. Um acento especial cabe à questão da dívida externa e à reivindicação do perdão dela. O papa já se manifestou, ao propor o Jubileu, no sentido da sua redução ou do perdão total da dívida internacional; o Sínodo dos Bispos (1997) declarou que ela é uma das causas para a ampliação da pobreza no mundo e pregou a eliminação das causas que a geraram e a sua redução; a CNBB também reforça a necessidade do seu perdão e que se resgate a dívida social interna, juntamente com outros episcopados. As 396 pessoas, representando mais de 10 mil que participaram dos 150 eventos regionais e locais, reunidas em Itaici no Momento Nacional da 3ª Semana Social (1998) denunciaram as dívidas sociais e assumiram compromissos para superá-las.

Por ocasião do último pacote governamental de ajuste fiscal, a voz do presidente da CNBB se fez ouvir de maneira incisiva, criticando com lucidez a visão economicista e reducionista das propostas e a perda da soberania nacional.

Um capítulo especial diz respeito à atuação das pastorais populares - criança, saúde, menor, sem-teto, excluídos, moradia - que envolvem centenas de católicos ativos espalhados pelas dioceses, dando pronto atendimento aos mais necessitados, animando organizações populares e criando condições de mobilização da população atendida para participar de movimentos e eventos coletivos.

No que tange ao relacionamento mais direto com o Executivo, as relações oficiais têm sido cordiais, o que não tem impedido críticas acirradas contra a política econômica e mesmo restrições ao comportamento do presidente da República e de outros governantes, tendo por base fatos concretos.

É claro que os setores conservadores criticam toda essa movimentação e procuram estimular uma atuação voltada para a vida interna da Igreja, fazendo declarações contrárias à legislação que pretende legalizar o aborto e a união matrimonial de pessoas do mesmo sexo (casos em que a posição oficial dos dirigentes eclesiásticos tem sido consensual), publicando listas de candidatos que podem receber o apoio dos católicos (nas últimas eleições, cometendo um retrocesso que se esperava superado), apoiando os movimentos leigos mais dependentes e de cunho mais espiritualista, fazendo apologia de sua concordância estrita às orientações papais.

Por fim, um desafio mais totalizante gira em torno das utopias e projetos societários que deram esperanças e estímulos concretos para o engajamento social, nos últimos cinqüenta anos pelo menos. Como visões de mundo podem ser lembradas o humanismo integral, o personalismo, o solidarismo, a democracia cristã. Aqueles que se engajaram com as propostas das esquerdas, justapuseram a estas correntes de pensamento idéias do socialismo utópico. Grupos mais politizados ou tentaram um mix desse ideário com elementos do marxismo, ou aceitaram-no mais plenamente, mas se identificando com o materialismo histórico e recusando o materialismo dialético. No horizonte desses militantes o socialismo real surgia como um projeto alternativo viável ao capitalismo, muitos deles encantados mais pela utopia que o caracterizava do que pela reflexão profunda sobre o funcionamento concreto das sociedades envolvidas. Da parte de alguns, havia mesmo uma boa dose de ingenuidade com relação ao que estava realmente ocorrendo nos chamados países socialistas e poucos fizeram críticas mais pertinentes. A derrocada que se seguiu à queda do Muro de Berlim, principalmente a reviravolta nos países do Leste europeu, trouxe um certo desalento. Se para certos grupos a busca de um "socialismo democrático" ainda perdura, para outros há uma grande indefinição de rumos e estratégias, incertezas nos diagnósticos e prognósticos.

Muitos católicos progressistas continuam atuando ativamente em sindicatos, partidos e movimentos sociais. Vale registrar o surgimento de um grupo de apoio e assessoria que se denomina "Fé e Política". Convergindo com outros grupos que se orientam pelas mesmas finalidades, há uma aposta no processo de publicização, em formas comunitárias de organização, na economia solidária, na participação no poder local, na atuação em organizações não-governamentais, nos conselhos de representantes, na constituição de redes de caráter local, nacional e mundial.

Ainda que seja muito difícil prognosticar rumos e perspectivas para uma Igreja tão rica de matizes e diferenças, mas que persegue continuamente a unidade, parece que as linhas mestras para o novo milênio não sofrerão solução de continuidade na cúpula romana. No Brasil, com as previsões apontando dificuldades extremas para a superação da crise econômica e suas seqüelas sociais tremendas, pode-se aventar a hipótese de que prevalecerão, da parte de certos grupos e movimentos, as críticas generalizadas aos efeitos nefastos do capitalismo, as denúncias contra as conseqüências perversas da globalização e do neoliberalismo, as reivindicações por reformas não reformistas, os anseios e as lutas por maior justiça social.

Luiz Eduardo Wanderley é sociólogo, professor e ex-reitor da PUC-SP.