A recente publicização da documentação diplomática do governo americano através do WikiLeaks trouxe novamente à tona, entre outras questões, a estreita imbricação entre espionagem e serviços diplomáticos. Não que isso seja propriamente uma novidade; afinal, basta a filmografia sobre o assunto que Hollywood produz há décadas para não nos deixar a menor dúvida a esse respeito.
Sobre tal conúbio soam, no entanto, judiciosas as declarações feitas por um qualificado funcionário do governo argentino ao diário portenho Página/12. Para ele, os memorandos do serviço diplomático ianque revelam “que uma parte da administração norte-americana se converteu em um Estado policial, com uma análise muito pobre da política internacional. Muitas vezes esse tipo de organismo, como os que fazem inteligência dentro do Departamento de Estado, exagera seu trabalho, ainda que chegue a conclusões e limites absurdos, para autojustificar sua existência, pedir mais orçamento e aumentar seu poder interno”. E não é equivocado pensar que para a obtenção de tal poder todos os recursos são válidos: para esse trabalho os limites entre verdade e mentira, entre realidade e ficção acabam se tornando extremamente fluidos.
Portanto, nada mais a propósito para compreendermos uma parte desse mundo que a biografia de um ex-agente duplo dos serviços secretos britânico e soviético na primeira metade do século passado. Trata-se de um volumoso trabalho dedicado à vida do marinheiro alemão Johann Heinrich Amadeus de Graaf (1894-1980), que ficou conhecido por seu apelido americanizado “Johnny”, o qual dá título à obra do sociólogo norte-americano R.S. Rose e do escritor canadense Gordon D. Scott.
Para nós, brasileiros, o nome de Johnny paira desde 1935 como um fantasma em nossa história, em especial a da esquerda, por sua atuação na rebelião comunista de 1935. Sussurrado praticamente desde o fim dos acontecimentos, o nome de Johnny e sua trajetória foram mais bem estabelecidos a partir da abertura dos arquivos da Internacional Comunista, no início dos anos 1990. No entanto, seus traços, relatados por um jornalista brasileiro a partir de pesquisas parciais efetuadas nos documentos de Moscou, se extinguiam no final dos anos 1930, com uma presumida condenação à morte e com uma incerteza sobre sua vinculação aos serviços secretos ingleses, mascarada por uma simpatia pelo fato de Johnny ter sido o único dos inquiridos em Moscou a questionar de modo incisivo a capacidade de Luiz Carlos Prestes em comandar a insurreição de 1935. E só agora, com a publicação deJohnny, podemos conhecer um pouco mais de sua rocambolesca trajetória.
A conturbada vida familiar levou o jovem Johnny a ingressar na marinha mercante aos 14 anos. Aos 20, acabou preso em Roterdã e engajado à força na Imperial Marinha alemã para participar da I Guerra Mundial, onde se envolveu em uma fracassada rebelião. Após a Guerra, proibido de voltar ao ofício de marinheiro, teve uma vida errante e passou a trabalhar como mineiro. Aproximou-se do Partido Comunista alemão, onde sua experiência militar o levou a se engajar nos grupos paramilitares do partido. Isso o fez alvo da polícia alemã, fazendo com que o partido comunista decidisse enviá-lo, no início de 1930, à União Soviética para protegê-lo e também cuidar de seu aprimoramento militar. Formado major do Exército Vermelho, tornou-se agente do M4, sigla do serviço de inteligência do Exército Soviético. Desenvolveu missões, primeiro na própria URSS e depois na Romênia, na Inglaterra, na então Tchecoslováquia e na Alemanha. Em junho de 1933, porém, alegando divergências com o regime soviético –, que não ficam claramente explicitadas no livro –, Johnny resolve pedir asilo à embaixada inglesa em Berlim, onde foi convencido a aceitar a tarefa de transformar-se em um agente duplo do MI6 britânico dentro do M4 soviético. A partir daí desenvolveu missões como agente duplo na China, na Manchúria e no Brasil, aonde chegou com a incumbência de formar grupos guerrilheiros no Nordeste. Primeiro estrangeiro do grupo indicado pela Internacional Comunista para auxiliar Luiz Carlos Prestes na insurreição, Johnny logo estabeleceu o circuito das informações para o MI6, que se iniciava com a entrega das informações a um gerente da empresa canadense Light, passando pela embaixada britânica e chegando a Londres. O governo britânico, por sua vez, repassava as que mais lhe interessavam ao ministro das Relações Internacionais, Oswaldo Aranha, que as fazia chegar a Getulio Vargas e ao chefe de Polícia do Distrito Federal, Filinto Müller. Foi assim que o governo brasileiro encontrou-se preparado para os acontecimentos de novembro de 1935. Johnny chegou a ser preso então, mas acabou solto pela embaixada britânica e fugiu para a Argentina, onde ficou cerca de um ano antes de retornar a Moscou. Ali foi submetido a um inquérito que nada apurou contra ele, apesar de fortes suspeitas de sua duvidosa atuação. Johnny teve a sorte, por um lado, de dar uma opinião muito crítica aos descuidos na preparação da insurreição – para os quais, ressalte-se, o duplo papel de Johnny teve um peso importante –, explicação que acabou acatada na comissão soviética que apurava os acontecimentos e, de outro, de contar com a incapacidade e a ineficiência dessa mesma comissão em perceber seu real papel de agente duplo. Ao final, “absolvido”, foi enviado novamente para o Brasil, onde permaneceu de 1938 a 1940. Aqui, com os magros resultados apresentados, os soviéticos começam a se dar conta de que algo não ia bem com Johnny. Mas o destino fez com que a polícia política do Brasil, envolvida também em um jogo duplo com ingleses e alemães, o prendesse e acabasse levando os serviços secretos soviéticos a perder seus rastros e o julgar morto. Libertado, foi expulso do Brasil e voltou a Londres, que o enviou, com o início da Segunda Guerra Mundial, ao Canadá para trabalhar no serviço secreto canadense. Retornou à Inglaterra perto do fim da Segunda Guerra e, em 1946, abandonou o MI6 e voltou ao Canadá. Aí passou a ter uma atuação anticomunista pública, sob o nome de Johnny X, fazendo palestras pelo país e nos Estados Unidos, chegando a participar de programas de TV, que fizeram com que fosse reconhecido novamente, mas sem que isso lhe trouxesse maiores contratempos e o impedisse de terminar seus dias no Canadá. Apesar dessa vida quase ficcional, na trajetória de Johnny a mentira, a violência e a morte acabam deixando uma trilha em que a humanidade resta obscurecida.
A trajetória de Johnny padece, no entanto, de dois grandes problemas. O primeiro, reconhecido pelos autores já na apresentação da obra, é a ausência da documentação do MI6, cujo acesso lhes foi negado pelo governo britânico. Isso levou a que os próprios Rose e Scott a classificassem como uma biografia incompleta. A segunda, e mais importante em uma obra em que o foco se dá sobre a vida de um homem na qual o fio tênue entre verdade e mentira leva à confusão entre realidade e ficção, foi certo acanhamento dos autores em fazer perguntas frente aos fatos disparatados que aparecem aos borbotões na obra. Em muitos casos, em profusas notas de rodapé, preferiram apenas assinalar as eventuais contradições, deixando o leitor – muitas vezes não enfronhado no “background” político e social em que tais fatos ocorriam – perdido e com a impressão de que Johnny não enganava apenas a seus contemporâneos.
De todo modo, pode-se dizer que, mesmo que o tempo talvez tenha se encarregado de tornar datadas determinadas questões, sem dúvida os métodos e a mentalidade desse meio, dos serviços secretos, persistem – e o episódio do WikiLeaks os repõem na ordem do dia.
Dainis Karepovs é pós-doutorando em História no IFCH-Unicamp, coordenador do Centro Sérgio Buarque de Holanda da FPA.