Estante

imagem100004.jpgA guerra fria deixou a boca da direita torta. Se acostumou à diabolização de adversários, para tentar passar como agente do bem. Afinal o discurso dos EUA foi construído – e seria impossível sem esse mecanismo – na diabolização de Stalin, Fidel, Hugo Chávez, Saddam Hussein, Ahmadinejad.

A direita local seguiu os mesmos passos: Getúlio era seu grande diabo. Populista, ditatorial, corrupto, criptocomunista etc. eram os epítetos. O mais vetusto dos jornalões paulista cunhou a expressão: petebo-castro-comunista para caracterizar o moderado governo de João Goulart.

Nos tempos de Lula, a direita brasileira ficou desconcertada. Seu xodó, o homem mais bem preparado para dirigir o Brasil – e talvez o mundo – tinha fracassado, saía do governo enxotado pelo povo e seus eventuais sucessores perderam três eleições seguidas, enquanto ele se consagrava como o político de maior rejeição no país – rejeitado até por seu partido na última campanha eleitoral.

Impossibilitada de exaltar suas proezas, a direita se dedicou à diabolização dos adversários: os fantasmas de Lula e do PT foram alvos privilegiados, como os que os tinham desalojado do governo e ameaçam prolongar seus mandatos por longo tempo. Haveria que cortar o mal pela raiz.

Se Carlos Lacerda, seu corvo queridinho de outros tempos, tinha dito de JK que não poderia ser candidato, se fosse não poderia ganhar, se ganhasse não poderia tomar posse, a direita renovada nas siglas, mas não em seu arsenal, reiterou as mesmas afirmações sobre Lula e o PT.

Essa direita de DNA golpista armou o mais bem-sucedido projeto de marketing com o “mensalão”, que chegou a incutir na mente de muita gente que políticos entravam todos os meses no Palácio do Planalto munidos de uma mala, entravam em salas contíguas à do presidente da República e saíam com malas cheias de dinheiro. Uma imagem que até hoje não encontrou confirmação na realidade, mas o que conta não é o que aconteceu, mas a narrativa e a imaginação que provocou, acionada pelo impressionismo midiático. O que conta não é o fato, mas a versão – na ditadura da mídia brasileira.

Não conseguiram derrubar Lula, com medo da capacidade de mobilização popular dele, trataram de fazer com que o governo sangrasse, sem recursos para suas políticas econômicas, mas fracassaram. Sua sanha voltou-se contra quem representava, por sua trajetória e liderança política, o PT: José Dirceu. Seu ódio de classe tomou o PT como seu nome diz: o Partido dos Trabalhadores. Na sua ânsia de sangue, um dos seus mais conspícuos representantes – governador biônico do mais sangrento ditador brasileiro – confessou publicamente o que as elites dizem em privado: queriam ficar livres “dessa raça” por trinta anos. Tentavam realizar o que outro prócer da ditadura tinha dito: “Um dia o PT tem de ganhar, fracassar, e aí deixar a gente dirigir com calma este país”.

José Dirceu pagou a encarnação do PT que sua trajetória representa. O ódio de classe se abateu sobre ele, como vingança contra o PT, pelo que esse partido os fazia sofrer. Como todo processo de diabolização, tiveram de reconstruir uma imagem do diabo conforme suas necessidades midiáticas. José Dirceu não era o líder estudantil da luta contra a ditadura, não era o preso salvo da prisão pela troca pelo embaixador norte-americano, não era o militante clandestino que viveu anos disfarçado para enfrentar o regime que eles ajudaram a se instaurar e apoiaram, não era o grande dirigente que liderou a construção do PT como partido nacional.

Era um diabólico articulador do assalto ao Estado por parte de sindicalistas, burocratas partidários, sedentos de apropriar-se das empresas estatais, dos recursos do Orçamento, de cargos e prebendas governamentais. Era o modelo acabado da criminalização do Estado, bandeira maior do neoliberalismo. Foi esse José Dirceu que eles condenaram, cassando seu mandato em nome da moralidade da Tia Zulmira – tão bem retratada pelo maior cronista da ditadura e da direita, Stanislaw Ponte Preta.

Para recompor a imagem real de dirigente político de José Dirceu, leiam seu livro de artigos. Tempos de Planície recolhe textos seus sobre temas tão diversos, como reforma política, comunicação e mídia, políticas econômicas, o Brasil no mundo, o papel de um partido como o PT e a função da esquerda hoje no Brasil, entre tantos outros. Pode-se discordar ou não, mas uma atitude política, democrática, pluralista requer o tratamento de um dirigente político como defensor de ideias e da sua prática concreta, e não sua diabolização, pobre instrumento de disputa com que a direita brasileira se contentou e tem sido fragorosamente derrotada. Ao contrário do que desejavam, o “mensalão” se voltou contra a direita, que acreditou que controlava a opinião do povo brasileiro e tem sido continua vítima dessa ilusão até hoje. Aquela vitória de Pirro preparou todas as suas derrotas posteriores.

No livro José Dirceu expressa com clareza as posições que hoje caracterizam a esquerda realmente existente, essa que soube construir um bloco hegemônico de forças que busca, nas condições concretas da pesada herança neoliberal, superar esse modelo mercantilizado.

A leitura dos artigos permite acompanhar mais concretamente, em cada conjuntura, os dilemas da esquerda e as alternativas que têm diante de si, que no essencial são as mesmas de hoje: ruptura com a hegemonia do capital financeiro, implementação plena de um modelo de desenvolvimento com distribuição de renda – como reafirma José Dirceu no correr das páginas.

Mas é mais fácil diabolizá-lo do que discutir suas ideias e propostas. Como não podem combater o dirigente de esquerda realmente existente, tentaram destruir o espantalho que construíram. O livro apresenta o José Dirceu de corpo inteiro, como militante da esquerda, analítico e propositivo. Ler e debater suas ideias é estar no centro da agenda e das alternativas da esquerda brasileira. No Planalto e na planície.

Emir Sader é sociólogo e cientista político, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro