Política

Estamos frente à crise do "modelo" econômico e à frente de uma crise de legitimidade do governo

Mais que uma crise econômica, estamos frente à crise do "modelo" econômico. A situação nacional também expressa uma crise de legitimidade do governo, mostrando que a sociedade brasileira não foi domada pelo neoliberalismo e que há sinais profundos de que algo, enfim, se move.

Estes dois elementos, combinados, indicam um momento novo e pleno de possibilidades para a luta política do ponto de vista da esquerda.

Em 1989 tivemos uma situação com alguma semelhança. Mas existiam, naquele momento, diferenças significativas: uma oposição de esquerda disposta a disputar os rumos do país e uma grande atividade política e sindical de massas. Estes aspectos essenciais fazem falta hoje, mas a crise atual permite recolocá-los como nossos principais desafios.

A crise cambial de janeiro encerrou um período de mais de quatro anos em que se procurou ordenar um rumo geral para a economia tendo como base a estabilização de preços com âncora cambial. Os princípios que vêm regendo esta ampla reorientação da economia vêm de mais longe: desde o final do governo Sarney, as classes dominantes adotaram um curso rígido de desmonte do Estado desenvolvimentista com um vasto programa de privatização e de subordinação crescente ao mercado internacional, reduzindo, a passos largos, a autonomia relativa de que dispunham para dirigir o capitalismo no Brasil. Este processo se deu em meio a conflitos e só ganhou coerência e velocidade com o governo FHC. E mesmo aí desenvolveu-se com problemas derivados, sobretudo, da extrema dependência em relação ao capital internacional: já em 1995, iniciou-se um estancamento do crescimento inicial provocado pela estabilização, sob efeito da crise mexicana; em 1997, o baixo crescimento continuou sob o impacto da crise asiática; em 1998, sob pressão da crise russa, foi adotada uma política de recessão. Esta evolução mostra que um dos elementos que permitiu o desenvolvimento capitalista brasileiro - uma relativa autonomia nacional - deixou de existir. E que, exatamente por isso, o país passou a acompanhar, sem resistência e sem alternativa, a série de crises na periferia. Este regime, no entanto, durou mais de quatro anos e foi decisivo para alicerçar a legitimidade de FHC.

A perda de legitimidade de FHC não se deveu apenas aos percalços econômicos. As eleições de 1998 (e também as de 1996) expressaram alterações na correlação de forças sociais, com vitórias expressivas do PT (principalmente no Rio Grande do Sul) e de setores oposicionistas (destacando-se a vitória de Itamar Franco, que passou a representar a mais importante dissidência a partir do campo dominante). Estas alterações, no entanto, não podem ser exageradas: fomos derrotados na eleição presidencial em primeiro turno.

A combinação entre a perda de legitimidade e o fim do Plano Real potencializa um conjunto de conflitos, abrindo um período de crise latente, cujo ritmo depende da luta política. Recoloca na cena nacional elementos de uma crise nacional, ou seja, a possibilidade de os problemas políticos, econômicos e sociais se retroalimentarem, de os impasses se acumularem e, sobretudo, de que a grande questão de uma saída nacional do ponto de vista dos trabalhadores possa ser novamente colocada em disputa.

Diferente, no entanto, do período de 1988-89, quando se instalou no país uma grande crise - que denominamos crise nacional - não encontramos um fator chave presente naquele momento e ainda ausente hoje: uma alternativa política disposta a disputar uma via antagônica à imprimida pelas classes dominantes. Desenvolver (e recriar) esta vontade e esta alternativa é a chance que a crise oferece.

Mais que uma crise econômica, estamos frente à crise do "modelo" econômico. A situação nacional também expressa uma crise de legitimidade do governo, mostrando que a sociedade brasileira não foi domada pelo neoliberalismo e que há sinais profundos de que algo, enfim, se move.

Estes dois elementos, combinados, indicam um momento novo e pleno de possibilidades para a luta política do ponto de vista da esquerda.

Em 1989 tivemos uma situação com alguma semelhança. Mas existiam, naquele momento, diferenças significativas: uma oposição de esquerda disposta a disputar os rumos do país e uma grande atividade política e sindical de massas. Estes aspectos essenciais fazem falta hoje, mas a crise atual permite recolocá-los como nossos principais desafios.

A crise cambial de janeiro encerrou um período de mais de quatro anos em que se procurou ordenar um rumo geral para a economia tendo como base a estabilização de preços com âncora cambial. Os princípios que vêm regendo esta ampla reorientação da economia vêm de mais longe: desde o final do governo Sarney, as classes dominantes adotaram um curso rígido de desmonte do Estado desenvolvimentista com um vasto programa de privatização e de subordinação crescente ao mercado internacional, reduzindo, a passos largos, a autonomia relativa de que dispunham para dirigir o capitalismo no Brasil. Este processo se deu em meio a conflitos e só ganhou coerência e velocidade com o governo FHC. E mesmo aí desenvolveu-se com problemas derivados, sobretudo, da extrema dependência em relação ao capital internacional: já em 1995, iniciou-se um estancamento do crescimento inicial provocado pela estabilização, sob efeito da crise mexicana; em 1997, o baixo crescimento continuou sob o impacto da crise asiática; em 1998, sob pressão da crise russa, foi adotada uma política de recessão. Esta evolução mostra que um dos elementos que permitiu o desenvolvimento capitalista brasileiro - uma relativa autonomia nacional - deixou de existir. E que, exatamente por isso, o país passou a acompanhar, sem resistência e sem alternativa, a série de crises na periferia. Este regime, no entanto, durou mais de quatro anos e foi decisivo para alicerçar a legitimidade de FHC.

A perda de legitimidade de FHC não se deveu apenas aos percalços econômicos. As eleições de 1998 (e também as de 1996) expressaram alterações na correlação de forças sociais, com vitórias expressivas do PT (principalmente no Rio Grande do Sul) e de setores oposicionistas (destacando-se a vitória de Itamar Franco, que passou a representar a mais importante dissidência a partir do campo dominante). Estas alterações, no entanto, não podem ser exageradas: fomos derrotados na eleição presidencial em primeiro turno.

A combinação entre a perda de legitimidade e o fim do Plano Real potencializa um conjunto de conflitos, abrindo um período de crise latente, cujo ritmo depende da luta política. Recoloca na cena nacional elementos de uma crise nacional, ou seja, a possibilidade de os problemas políticos, econômicos e sociais se retroalimentarem, de os impasses se acumularem e, sobretudo, de que a grande questão de uma saída nacional do ponto de vista dos trabalhadores possa ser novamente colocada em disputa.

Diferente, no entanto, do período de 1988-89, quando se instalou no país uma grande crise - que denominamos crise nacional - não encontramos um fator chave presente naquele momento e ainda ausente hoje: uma alternativa política disposta a disputar uma via antagônica à imprimida pelas classes dominantes. Desenvolver (e recriar) esta vontade e esta alternativa é a chance que a crise oferece.

A situação internacional

Desde os anos 80 a economia mundial vem crescendo lentamente, aprisionada entre um crescimento lento da demanda a partir das políticas neoliberais e uma menor produção global da massa de mais-valia (apesar do aumento da taxa de exploração nas últimas décadas), já que uma fração crescente do capital mundial gira nos circuitos financeiros, não se acumula produtivamente e portanto participa da disputa pela mais-valia global sem acrescentar-lhe nada. Além disso, a economia mundial vem passando por surtos de instabilidade, cuja possibilidade de ocorrência é reforçada pela crescente desregulamentação financeira.

Dadas as relações de força políticas e econômicas, estes processos penalizam sobretudo os países dependentes, e deixam os Estados Unidos numa posição relativamente melhor. A evolução da economia mundial nos próximos meses - se apenas prosseguirá na atual "desaceleração desigual" (recessão em várias zonas sem que haja uma recessão generalizada), ou se mergulhará numa recessão generalizada - dependerá fundamentalmente da evolução dos EUA.

Desde 1991 os EUA não vivem uma recessão, mas seu crescimento vem sendo medíocre, se comparado às décadas de 50 e 60; o desemprego é o mais baixo desde os anos 70, mas superior ao das décadas de 50 e 60; o trabalho precário aumentou e a tendência é de queda dos salários. Sua prosperidade relativa vem se beneficiando de dois mecanismos, um perigoso a longo prazo, o outro muito efêmero.

O primeiro é o endividamento crescente com relação ao Japão e à Europa, que vem permitindo que os EUA cresçam apesar de terem uma taxa de poupança privada próxima de zero. Até agora, esse endividamento não criou grandes problemas, graças à posição privilegiada do dólar. Mas é difícil que isso possa durar indefinidamente.

O segundo refere-se aos efeitos da própria crise em países do Terceiro Mundo, sobretudo na Ásia. Esta crise enviou capitais para os EUA e também levou à redução dos preços dos produtos por eles importados dos países que tiveram suas moedas desvalorizadas. Com isto, tem sido possível combinar baixa da taxa de juros nos EUA e queda da inflação. Mas enquanto os efeitos positivos para os EUA da crise já se manifestaram e em grande parte se esgotaram (não há mais capitais para fugirem para lá), os efeitos negativos começarão a pesar mais, sobretudo o agravamento do déficit da balança comercial, e portanto o crescimento mais rápido do endividamento do país, ao lado de problemas para os produtores norte-americanos (que terão dificuldades crescentes para exportar e sofrerão maior concorrência de importados).

Diante disso, o mais provável é que a desaceleração da economia mundial prossiga, atingindo também os EUA e chegando a uma recessão generalizada.

A situação brasileira

A economia brasileira vinha entrando em recessão desde o segundo semestre de 98. Com a desvalorização do real em janeiro, esta tendência se acentuou. Além disso, essa desvalorização veio junto com uma crise cambial e uma ameaça de quebra do país. E trouxe de volta o risco da inflação, que foi contido pela própria violência da recessão e pelos esforços do governo no sentido de evitar a todo custo a reindexação da economia. Novos incentivos foram dados aos aplicadores externos - em particular nova rodada de aumento da taxa de juros - e eles começaram a voltar no mês de março. Com isto, as reservas começaram a recompor-se e o real recuperou-se diante do dólar, o que ajuda a controlar as pressões inflacionárias e abre espaço para reduções das taxas de juros (que, é claro, continuam ainda extremamente altas). Com isto, o clima na mídia mudou bastante desde o fim de março e começa a ser difundida uma idéia de que o pior já passou.

Esta, no entanto, é uma visão superficial. É importante ter claro que o que seria a mudança decisiva no setor externo da economia - um crescimento vigoroso das exportações - ainda não ocorreu. Pelo contrário, estas até caíram. Isto porque os obstáculos são grandes: dificuldade de financiamento, desorganização da economia, desaceleração ou recessão da economia mundial e queda dos preços das commodities (que têm um peso importante na pauta de exportações brasileiras). A meta de 11 bilhões de dólares de superávit comercial em 1999, que consta do acordo com o FMI, certamente não será atingida.

Sem exportações crescentes, a dependência externa continua aumentando - o Brasil está cada vez mais vulnerável às turbulências internacionais - e o principal fator que deveria levar à saída da recessão não funciona, com o que esta tende a durar mais tempo.

Além disso, é preciso ter em conta que se exige das exportações brasileiras algo muito mais significativo do que o que permite os 11 bilhões de dólares de saldo comercial citados (nível de saldo comercial que o Brasil teve por vários anos até 1994). Importa, sobretudo, reduzir o déficit das transações correntes (basicamente balança comercial mais balança de serviços). E o déficit na balança de serviços passou a um nível qualitativamente maior, com o acelerado crescimento dos passivos externos desde 94. Ou seja: a dívida externa do Brasil é muito maior (ultrapassa os 200 bilhões de dólares) e a propriedade estrangeira de empresas que atuam no Brasil ou de ações é muito maior. Com isto, os pagamentos de juros sobre a dívida externa e as remessas de lucros são muito maiores do que antes de 1994.

É preciso lembrar também que uma questão que pesa muito nas avaliações dos aplicadores financeiros internacionais é a do déficit público brasileiro. Ele foi agravado pela desvalorização de janeiro (a Folha de S. Paulo, de 14/04/99, divulga que o país perdeu R$103 bilhões com a desvalorização - cinco vezes a receita da venda da Telebrás). E será mais agravado pela recessão (que leva à redução da arrecadação). O aperto fiscal promovido a partir das exigências do FMI certamente não é suficiente para compensar estes efeitos. A trajetória futura é no mínimo duvidosa.

Enfim: mesmo sob o ponto de vista estrito da questão que deflagrou a crise de janeiro - a questão cambial - a situação está longe de estabilizada.

Mas é claro que a situação econômica tem de ser analisada de um ponto de vista mais amplo. Os efeitos sócio-econômicos da crise estão longe de estarem superados.

O desemprego não se reduzirá nos próximos meses e tende inclusive a agravar-se. Os salários não recuperarão as perdas que tiveram. O problema do déficit público continuará a pesar e a provocar deterioração dos serviços públicos. E, para agravar todo este quadro, a economia brasileira é hoje mais dependente do que até 1994 e sofrerá com maior intensidade diante das turbulências internacionais.

As primeiras lições

Qual a margem de manobra para o governo FHC executar uma política tão antipopular, ou seja, para viabilizar a via entreguista de saída da crise? De outro modo: qual a estratégia da esquerda para transformar uma crise latente em oportunidade para o fortalecimento de uma outra saída?

Os primeiros conflitos políticos nesta nova situação foram marcados pela oposição dos governadores do PT, PDT, PSB e de Itamar Franco aos acordos de pagamento da dívida dos estados. Mostraram seu limite por dois fatores:

  • não havia uma estratégia geral definida, em particular pelo PT. Melhor dizendo, a estratégia partidária adotada, num primeiro momento, privilegiou a oposição à política econômica (reduzindo, portanto, seu alcance, justamente em um momento de perda de legitimidade política do governo FHC). Tratava-se de uma posição de meio caminho, que não incorporava um conjunto de tarefas que a crise evidenciava e induziu (ou corroborou) a política dos governadores a uma linha dupla (e contraditória), de conflito econômico e convivência política com o governo FHC;
  •  havia uma visão muito limitada de criar condições de governabilidade para a oposição (que seriam dadas pelo recuo do governo federal na questão da dívida), subestimando, portanto, o alcance da crise do país. Mesmo com o eventual recuo do governo, a margem de decisão dos governos estaduais continuaria muito estreita, submetida à recessão, à pressão do corte de gastos e ao rumo geral do país.

Mas é preciso ver também que a expectativa de um conflito nacional protagonizado pelos governadores de oposição não pode substituir a idéia de um grande conflito em que entram em cena partidos (com o papel decisivo e insubstituível do PT) e movimentos políticos de massa. O que é correto dizer é que a atuação dos governadores do PT foi limitada dentro do papel que poderiam jogar. Neste quadro sobressaiu o conjunto de iniciativas de Itamar.

A luta por um novo governo

Os debates travados no PT são decisivos para definir os rumos da oposição. Isto ocorre não só porque somos o maior partido de esquerda, mas porque somos o partido de esquerda mais avançado. É preciso lembrar que no interior do que se pode chamar de oposição - incluindo, além do PT, o PDT, o PCdoB, o PSB, o PSTU, o governador Itamar e setores do PMDB, entidades e movimentos sociais - existe uma diversidade importante de posições. Algumas delas têm esboçado saídas inaceitáveis, de tipo governo de "unidade nacional" (que subordina os interesses dos trabalhadores a alguma fração dissidente das classes dominantes). Outras, chegaram a defender a renúncia de FHC e um "novo" governo... encabeçado pelo seu vice.

No âmbito do PT, felizmente, temos construído uma evolução de posições no sentido de afirmar a centralidade da luta por um novo modelo e um novo governo (resolução do Diretório Nacional, de 10 e 11 de abril), deixando claro que não é possível mudar a política econômica sem mudar o governo. E, de outro lado, que não se trata de "mudar" o governo por cima, isto é, deixando intacto o modelo econômico.

A luta por um novo governo busca deslegitimar o governo FHC e questionar o seu mandato. Trata de reunir os meios para impedi-lo de executar o programa acertado com o FMI, de não reconhecer no governo atual autoridade para sucatear ainda mais o país.

Mas, além disso, o sentido geral por todo um período é o de anunciar (e, obviamente, organizar) a vontade de construir uma alternativa política. Isto é o que deve orientar o conjunto da nossa atividade partidária, passando - com as mediações necessárias, mas com unidade, coerência e direção do partido - pela ação dos governadores, parlamentares e dirigentes de massa.

Neste quadro, a retomada das nossas discussões programáticas (e aqui se destaca o papel do II Congresso) adquire enorme importância, pois é preciso apresentar, com a maior clareza possível, o rumo alternativo que propomos. Se falamos em outro modelo econômico e em outro governo, não estamos falando de um retoque aqui e outro ali. Para definir novos rumos para o Brasil, devemos retomar a capacidade de propor um programa político e de colocá-lo em movimento, organizando forças em sua elaboração e em sua defesa. Nada mais atual do que resgatar nossas formulações e nossas lutas pela distribuição da renda, da propriedade e do poder. Combinadas, naturalmente (hoje podemos dizer isso quase com naturalidade), com o rompimento da subordinação ao imperialismo.

A luta para inserir a disputa política dentro da dinâmica da crise visa alterar os seus termos e os seus ritmos. Enfrentamos um inimigo poderoso, que, mesmo desgastado, dispõe de reservas estratégicas. Não se trata de um governo (e de uma hegemonia) que está caindo; ou, ainda, de uma disputa que pode ser resolvida somente na arena institucional. Mas trata-se de um governo que pode ser amplamente questionado pela iniciativa política, pela ação institucional e pela mobilização social. Esta dinâmica do país pode chegar a se condensar em uma crise nacional, colocando na ordem do dia o fim deste governo e a urgência de um novo. É bom lembrar que FHC tem, em tese, mais quatro anos pela frente.

Este cenário mais favorável, no entanto, pode ou não se verificar até as próximas eleições municipais. Mas com uma situação social deteriorada ao extremo, com uma política de oposição radical a FHC, o partido e a oposição poderão acumular forças, plebiscitar o governo federal e seus aliados nas eleições municipais e continuar a luta para reunir as melhores condições para tornar vitoriosa uma alternativa de esquerda para o país.

Heloísa Helena é senadora pelo PT-AL e membro do Diretório Nacional do PT.

Carlos Henrique Árabe é membro do Diretório Nacional do PT.