Estante

O prazer da leitura – este gosto que certos modernosos da comunicação insistem em tornar obsoleto – renova-se a cada página desta coletânea de crônicas, artigos, ensaios, reportagens, textos político-partidários do jornalista e militante Perseu Abramo.

A satisfação é dupla: pela costura do texto – leve, fluido, claro e objetivo; e pelo fio condutor que amarra os mais de 30 anos da produção de Perseu – a coerência. Sim, aquele traço característico do autor, que soube unir “o rigor do pensamento, que se exige de todo intelectual, à integridade ética que se espera de todo cidadão”, para lembrar a feliz expressão de um dos prefaciadores, o professor Marco Aurélio Garcia.

Bem organizado, o livro repassa as principais áreas a que Perseu se dedicou: as coisas do Brasil, as idéias generosas do socialismo libertário, a educação, o jornalismo, a militância partidária, recolhidos em veículos da grande imprensa, em jornais alternativos e na imprensa político-partidária. Um pequeno reparo, que não desmerece o valor do trabalho: faltou um registro visual de uma coluna de educação na Folha, de uma crônica no "Suplemento Feminino" do Estadão, ou de uma reportagem no Movimento, por exemplo.

Página por página, não há como contradizer a ideia de que o estilo é o homem. Ali estão, a cada linha, a nos rememorar o Perseu que se foi, a objetividade aguda; o humor sutil, às vezes mordaz, nunca sarcástico; a polêmica respeitosa; a palavra certa no lugar certo; a sinonímia rica, mas sem pedantismo; o texto rigoroso, porém de fácil entendimento – o autor em carne e osso, igualzinho o conhecemos.

Os anos mais turbulentos da história recente do país são retratados num painel abrangente, ora com prudência estudada – por culpa dos rigores da ditadura –, ora num tom mais desabrido, assinalando os tempos da abertura, do Colégio Eleitoral, “o himeneu da transição corruptora” (pág. 229). Mas o autor não poupa o regime militar, cutucando-o com classe em vários artigos. Não por coincidência, seu agudo ensaio “Os caminhos ínvios da educação nacional” (pág. 105) foi publicado exatamente no dia 31 de março de 1974, 10º aniversário do golpe...

As colunas de educação, que o autor inaugurou na Folha de S. Paulo e as manteve praticamente até sua demissão, por motivos políticos após a greve dos jornalistas em 1979, refletem a paixão de quem aposta nos jovens e confia nas mudanças através da informação, do estudo, do contraste de idéias, da democracia participativa.

Sintonizadas com os acontecimentos nacionais e sem o viés chato do “especialista”, os artigos abordam uma temática que vai da introdução das provas de redação no vestibular à qualidade cadente da merenda escolar, passando pelas representações estudantis nos órgãos colegiados da Universidade, sem esquecer a bomba no Cebrap, o combate ao ensino pago e à escalada privatista na área.

Nada escapa ao olhar atento, detalhista e crítico do editor, que disseca os temas milimetricamente, convidando-nos a concordar com seus argumentos (não necessariamente “opiniões”), sem forçar a barra. E ainda encontra tempo para, cuidadosamente, proteger, da curiosidade dos organismos de repressão, a identidade de estudantes retratados nas reportagens de sua seção. Também nunca falta nestas colunas, mesmo quando para investir pesado contra preconceitos, uma ponta de humor, mesclada com a elegância típica de Perseu: “Superstições, superstições. Superstições? Tabus de casta, mitos de elite, preconceitos de classe, isso sim”. (“Superstições, superstições 1 e 2, págs. 65 a 70) .

A parte mais saborosa da antologia, contudo, são as crônicas. Desafortunadamente para o nosso deleite, a organizadora brindou-nos com escassas 27. Suficientes, no entanto, para divisar o talento literário de quem, nas páginas do Suplemento Feminino do jornal O Estado de S. Paulo, fazia da crônica um instrumento para revelar, a leitores e leitoras, aspectos do quotidiano ligados a transformações sociais, políticas e culturais em andamento.

Sutil, mostrando mudanças de costumes, como em “Rua”: “Ninguém mais namora no portão, hoje em dia. Namora-se na sala de televisão, no cinema, na casa que vende hot dogs, na porta da loja de discos, no vestíbulo do colégio e em outros lugares mais discretos” (pág. 30). Filosófico, como em “Tempo”: “Quando olho o relógio, não sei se o tempo é o mostrador ou é o ponteiro. No fundo, acho que são as duas concepções antagônicas de tempo” (pág. 38). Ou deliberadamente irônico consigo mesmo, como em “Crônica”: “... duas ou três leitoras... fizeram-me saber, por vias indiretas, que acham minhas crônicas muito frias, nada femininas e nada líricas. Por vias indiretas, repito, que por vias diretas não se dariam o trabalho de fazê-lo”.

Há, certamente, preciosidades hoje desvalorizadas, como as belas aliterações de “Barreira” (pág. 21) : “Orós, orai por nós... Orai por nós, Orós”, e ainda a rítmica “Surreal” (pág. 32): “... sala, saia, sal, Sá, S.O.S., sol, Salt Lake City e um blues, uma blusa, um saxofone, um copo de uísque, uma cave... jovens dançando com a consciência de que estão sendo observados por observadores que observam: ‘Eis aí os existencialistas”.

Em tempos de predomínio do “pensamento único” e de acomodação, a corajosa “Não” projeta para hoje a postura insubmissa do autor: “E hoje eu me lembro com orgulho e esperanças daquele tempo em que tínhamos a coragem de usar a dignidade do não”. Usou-a, sim. Até o fim. Com sobriedade, humor e sabedoria. Como em seus melhores textos.

*Rui Falcão, deputado estadual do PT, é jornalista. Trabalhou e militou com Perseu Abramo