Estante

Um governo de esquerda para todosA gestão de Luiza Erundina (1989-92) certamente foi um marco para São Paulo e para a política brasileira. Pela primeira vez, um governo de esquerda assumiu o poder no coração do capitalismo brasileiro, e ainda por cima sob a chefia de uma mulher, nordestina e tudo o mais que podia escandalizar a tradicional elite paulista. Para os donos do poder era um acinte, uma humilhação ver os seus candidatos derrotados pelas forças emergentes da esquerda democrática. E para nós, do Partido dos Trabalhadores, um desafio sem precedentes e a responsabilidade de governar a maior vitrina do país, na véspera da eleição presidencial de 1989. Era a grande oportunidade de sair da teoria para a prática, e de demonstrar a superioridade da gestão popular sobre a elitista do sr. Jânio Quadros e similares.

Naturalmente, não era nada fácil passar de estilingue para vidraça, sob o cerco do Tribunal de Contas e da grande imprensa, que não poupava espaço para repercutir a indagação das grandes empreiteiras, das empresas de coleta de lixo, de ônibus e de toda a vasta gama de interesses que seria abalada pela nova gestão da Prefeitura de São Paulo. Principalmente com a ilusão de que bastava ter o governo na mão para, num piscar de olhos, resolver os agudos problemas sociais que se avolumaram na cidade ao longo de inúmeros governos conservadores.

Se foi um sucesso ou um fracasso, pairam dúvidas até hoje, não só na mente dos adversários mas também de sinceros companheiros, aturdidos pelo tiroteio de informação e contra-informação. Somente uma análise lúcida e abrangente como a que faz Paul Singer em seu livro Um Governo de Esquerda para Todos, poderia lançar uma luz sobre essa questão. Não se trata apenas de uma abordagem profissional e competente do economista conceituado, que todos conhecem de vários trabalhos importantes como A crise do Milagre, Dinâmica Populacional e Desenvolvimento, e o Curso de Introdução à Economia Política, este último extraído das famosas aulas que Singer proferiu em 1968 no Teatro de Arena, em São Paulo, na véspera do AI-5. É sobretudo o rico relato de um observador privilegiado, que foi um dos principais protagonistas do governo Luiza Erundina enquanto secretário do Planejamento e um dos auxiliares mais próximos da prefeita. Disso resultou uma minuciosa radiografia dos principais acontecimentos, maiores dilemas e grandes enfrentamentos que marcaram essa gestão.

Singer relata, com certa dose de paixão, desde a formação do secretariado e a indicação dos administradores regionais, até a elaboração do Plano Diretor, passando pelas várias crises que atravessaram o governo de cabo a rabo, como a dos ambulantes, a das tarifas de ônibus, as crises com o Legislativo, as greves do funcionalismo, sem falar do relacionamento com o partido e suas instâncias regionais.

É um relato franco, feito por alguém que não teme apontar as falhas, os equívocos e mesmo a ingenuidade que caracterizou algumas das ações do governo Erundina, com a mesma sobriedade que sabe assinalar as inegáveis conquistas, as melhorias para a cidade e os avanços para o movimento popular propiciados por essa gestão: a inversão de prioridades, que colocou em primeiro plano a educação, saúde, transporte de massa e outras ações sociais, em detrimento das grandes obras viárias de uso restrito; a elaboração do Orçamento Participativo; o relacionamento, nem sempre harmônico, do governo com o partido; as dificuldades de governar com uma minoria na Câmara Municipal; e, fundamentalmente, o desmonte dos mecanismos clientelistas e a instauração de foros de participação da sociedade civil para a democratização do Estado são retratados com fidelidade pelo olhar atento de Singer.

A partir do distanciamento crítico que o tempo propicia, e que no calor da luta é muito difícil de ter, este livro é sobretudo um minucioso relato sobre a experiência do poder, que, como diz Singer, não foi devidamente compartilhada, na época do governo Erundina. Certamente, um livro instigante e obrigatório para quem quer conhecer por dentro a primeira grande experiência da esquerda na administração pública brasileira.

Guido Mantega é professor de Economia da Fundação Getúlio Vargas (SP).