Estante

O PT e a prefeitura de São PauloO livro de Cláudio Gonçalves Couto está entre o que de melhor se escreveu a respeito do Partido dos Trabalhadores. Ele é uma versão um pouco modificada de sua dissertação de mestrado, defendida no ano passado junto ao Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo.

Estuda-se o PT na gestão da prefeitura paulistana. A hipótese central é de que a experiência de governo modificou o partido, mais especificamente os que assumiram o Executivo Municipal, "fazendo-os migrar de uma posição contestadora do ordenamento institucional-representativo do Estado para outra, que aceita esta institucionalidade e a ela se adapta".

Cláudio baseia-se no cientista político italiano Angelo Penebianco, para quem "um partido, como qualquer organização, é (...) uma estrutura em movimento, que sofre evoluções, que se modifica no tempo e que reage às modificações externas, à mudança do ambiente". É necessário considerar também o "modelo originário do partido", ou seja, a base sobre a qual se inscreve a sua história organizacional.

Referido modelo original é descrito a partir dos principais grupos fundadores do PT. Mostra-se como se posicionavam negativamente perante a institucionalidade estatal e a política intrainstitucional.

Os sindicalistas trouxeram, assim como os movimentos sociais reivindicativos, "uma postura autonomista", o "caráter movimentista" e uma "certa rejeição do Estado e de suas instituições". A mesma "extra-estabilidade" está presente na política de base da Igreja. Sua atuação marca-se pelo radicalismo participativo, pela postulação da democracia direta, pela combinação de "comunitarismo e idealismo ético". A esquerda organizada agregou ao PT o ethos revolucionário, "negador da legitimidade das instituições representativas" e "propugnador da ditadura do proletariado". Os parlamentares tinham tão pouco peso, que em nada modificaram a marca de agremiação de origem externa (ao Parlamento). O partido orientava-se mais por uma lógica societária extra-estatal do que pela atuação intra-institucional.

É justamente isso o que, segundo Cláudio, modificou-se com a experiência na prefeitura. Principalmente no que se refere à política de alianças e à relação com o Parlamento. Para a prefeita recém-eleita, em 1988, "não esta(va) em cogitação" formar uma frente de partidos, uma coalizão partidária; nem sequer firmar "compromissos mais formais".

Um ano após o fim do mandato, Erundina diria: "Meu maior erro foi não ter formado uma coalizão logo no primeiro dia de governo. Isso ampliaria nosso espaço junto à opinião pública e talvez facilitasse a formação de um amplo leque de apoio à candidatura de Lula".

No que toca ao Parlamento, a transformação é também significativa. No começo do governo, ele era visto como espaço para denúncia, um canal para encaminhamento de reivindicações populares, "um foro que devia estar subordinado à lógica revolucionária e à dinâmica dos movimentos da sociedade civil". Muito mais importantes e legítimos eram os conselhos populares, estes sim instâncias verdadeiramente democráticas. Por isso, deveriam necessariamente ser deliberativos. Com a Câmara Municipal não deveria haver qualquer negociação, nem mesmo diálogo.

Ao final da gestão, ocorria a transição de uma "lógica principista para outra ditada pela praticidade"; nos termos de Max Weber, dar-se-ia a mudança de uma "ética de convicção" para outra "de responsabilidade". O Executivo teria então se convencido da necessidade de negociar com o Parlamento. Buscava agora formar compromissos, dialogar, flexibilizar posições. Reconhecia os vereadores como mandatários da população e, conseqüentemente, a Câmara como um foro representativo legítimo. Ainda que tardiamente, já que a gestão se concluía, formava-se um governo responsável, e o PT tornava-se um partido governante.

A conclusão, embora não seja simplista, poderia ser relativizada. A mudança petista parece em parte dúbia, em parte exagerada. Dúbia porque os argumentos do próprio Cláudio não esclarecem em que medida o PT teria mudado pra valer, reconhecendo substantivamente a legitimidade da Câmara. Até que ponto o partido não teria, apenas pragmaticamente, se curvado à conveniência de negociar com o parlamento burguês? Quanto ao exagero quem efetivamente mudou e por quê? Não foram apenas uns poucos, alguns deles mesmo sem estar no governo?

De outro lado, ainda que passando pelo Executivo, outros tantos não mantiveram, até hoje, a resistência à democracia representativa?

No prefácio, Régis de Castro Andrade pondera que, embora Cláudio "não subestime a importância das tendências esquerdistas", "o problema não era tanto o de eliminar os elementos revolucionários presentes no modelo originário, como o de fazer a crítica do movimentismo". Aqui cabe outra observação. O movimentismo é real, contudo corresponde a uma posição extra-política. Para amadurecer, afastar a ambigüidade, definir uma identidade ideológica claramente democrática, o que o PT precisa afastar é o leninismo. Não o faz, porque não consegue encontrar alternativa à social-democracia. Tampouco tem coragem de assumi-la.

Clovis Bueno de Azevedo é professor na FGV e doutorando em Ciência Política pela USP. Foi superintendente do Instituto de Previdência na gestão do PT em São Paulo.