Estante

capa_trilha_arcoiris_blocao.jpgUma publicação cuja pretensão é contar a História deveria não apenas ser fiel e honesta com relação aos fatos, mas mostrar a importância de alguns deles, bem como relacioná-los com a conjuntura. Experiências como aquelas vividas pelos grupos LGBT brasileiros em sua origem não podem ser compreendidas de maneira isolada, e sim em seu conjunto. Ao deixar de fazer isso, a publicação certamente não escapará da imagem leviana e reprodutora do discurso de poder que sempre dominou uma parte da intelectualidade na hora de relatar acontecimentos históricos.

O livro Na Trilha do Arco-Íris – Do Movimento Homossexual ao LGBT, de autoria de Julio Simões e Regina Facchini, traz ao leitor uma série de informações importantes a respeito da organização política de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros. No entanto, peca por omitir a importância de alguns grupos em determinados períodos históricos – ou “ondas”, como optaram os autores para denominar essas épocas em que ocorreram fatos importantes e decisivos para o movimento LGBT brasileiro.

Obviamente, não existe uma fórmula para contar experiências – vitoriosas ou não –, mas o que se pretende com uma publicação que faz parte de uma série intitulada História do Povo Brasileiro, da Editora Fundação Perseu Abramo (EFPA), é contar a História que não foi contada ou foi deliberadamente omitida por aqueles que sempre a contaram, ou mesmo impuseram à humanidade apenas a sua versão. Ao incluir questões relacionadas à identidade sexual na história do povo brasileiro, a EFPA diz que é impossível desconsiderar esses aspectos quando se fala de cultura, vida, luta, esperança.

A tarefa é árdua e arriscada, uma vez que a História pode ter vários aspectos e ser abordada de diversas maneiras. Fatos importantes merecem explicações mais detalhadas, apesar da recomendação feita pelos autores de que apresentariam “em grandes traços a trajetória percorrida pelo movimento político em torno da homossexualidade no Brasil”.

Ao relatar fatos e acontecimentos que formaram as bases de um movimento social que deu origem à maior manifestação LGBT do planeta, os pesquisadores mostram o quanto essa discussão sobre identidade sexual é algo que, até hoje, divide opiniões. Não deve haver, portanto, espaço para dúvidas sobre a atuação de alguns grupos e sobre a importância que tiveram no que se considera uma “retomada” da militância LGBT no Brasil e, em especial, no estado de São Paulo.

A obra caminha sob passos seguros na trajetória do movimento LGBT brasileiro até o período iniciado nos anos 1990, considerado pelos autores como “terceira onda”. A estratégia de abordagem por “grandes traços”, porém, não pode passar por cima da fundação e atuação do Grupo de Homossexuais do Partido dos Trabalhadores (GHPT), entre 1992 e 1995. Ao fazê-lo, os autores deixam de contar uma história que jamais poderia ser omitida em função da importância que o GHPT teve no crescimento dos outros agrupamentos.

O VII Encontro Brasileiro de Lésbicas e Homossexuais (EBLHO), por exemplo, que ocorreu no Instituto Cajamar, não foi organizado por entidades fictícias nem realizado por acaso naquele lugar – conhecidamente, um centro de formação política da CUT. O VII EBLHO resultou do chamado feito pelo GHPT, que assumiu a organização geral do evento, junto com o grupo Lambda (também esquecido no livro), a Rede de Informação Um Outro Olhar e o grupo Deusa Terra, os dois últimos formados exclusivamente por lésbicas da cidade de São Paulo.

O crescimento de grupos LGBT em todo o Brasil não foi algo espontâneo e é outro exemplo de como os autores minimizam e quase excluem a atuação daquele formado dentro do PT e dos muitos outros surgidos na sociedade brasileira. Havia campanhas de incentivo à militância e comemorava-se a fundação de cada grupo – quase dois por mês, entre 1993 e 1994. O GGLPT assumiu essa campanha de motivação e fez outras, como a que incluiu propostas do movimento no programa do candidato do PT à Presidência em 1994.

Citar esses fatos não quer dizer que os autores estariam assumindo alguma preferência partidária. Estariam apenas sendo honestos e justos com a história do movimento LGBT. Também à parte da História e, diga-se de passagem, parte importante. Qualquer reflexão a ser feita “em torno do processo mais amplo de constituição do cidadão LGBT como sujeito de direitos”, não pode ocorrer verdadeiramente se fatos como esses não forem nela incluídos.

Há outra fragilidade no livro relacionada à interpretação que os autores dão quanto ao aumento do número de grupos existentes no início da década de 1990. A relação entre a “diversificação dos formatos institucionais e a ampliação da rede do movimento” não é exatamente o toque de Midas para essa parcela da militância naqueles anos. O formato das ONGs – que atuavam mais na questão da prevenção à Aids – demorou a ser adotado pelos grupos como estratégia de organização interna. Muitos quase desapareceram em função da sua atuação nas ONGs/Aids, que não deixavam muito espaço para a defesa dos direitos de gays e lésbicas.

Portanto, essas “relações dos grupos e associações com o Estado” nem sempre ocorreram da mesma maneira para todos eles. Os financiamentos oriundos dos projetos de prevenção à Aids geraram conflitos éticos, pois a luta por respeito e reconhecimento de direitos LGBT não tinha de ser escamoteada, assim como o trabalho de prevenção não tinha de ser usado como desculpa para obter recursos financeiros para a edição de uma publicação ou suporte de alguma ação. Esse conflito ético se deu em muitos grupos. Os encontros nacionais passaram a contar com esse financiamento a partir da metade da década de 1990 e, mesmo assim, não se pode considerar que essa relação dos grupos e associações com o Estado teve um “papel central no processo de mudança mais amplo observado no movimento”.

Segundo Norberto Bobbio, “o principal meio do poder ideológico é a palavra, ou melhor, a expressão de ideias por meio das palavras”1. Não se sabe ao certo se esse poder ideológico é mais bem expresso dentro de uma igreja, num palco, num palanque, em conferências ou em jornais, revistas e livros. O que se sabe é que há diferenças nesses espaços de exercício do poder ideológico na sociedade brasileira e, em alguns deles, a influência é enorme sobre as pessoas.

Ao propor à sociedade que leia a história do povo brasileiro e inclua os LGBT, bem como a atuação dos militantes desse segmento, a EFPA deixa claro que não concorda com a omissão de elementos fundamentais para a compreensão da cultura, da história e da formação do povo brasileiro. Mostra também que essa pode ser a primeira de uma série de publicações que relatem a luta de outros segmentos igualmente discriminados e oprimidos no Brasil.

A EFPA carrega, com essa publicação, a contradição referente à omissão de fatos essenciais na construção do movimento LGBT brasileiro a partir dos anos 1990, mas jamais poderá ser acusada de contar uma história mentirosa. Talvez seja uma excelente oportunidade para a instituição definir critérios mais precisos, a fim de evitar erros graves. Na Trilha do Arco-Íris traz em suas páginas muita informação que merece ser lida e transformada também em objeto de reflexão. Tanto para quem tiver o prazer de ler quanto para quem o escreveu.

William Aguiar é ator e militante de Direitos Humanos de LGBTTT