Estante

Ao som do sambaEstamos assistindo aqui no Rio de Janeiro a uma nova "explosão" do Carnaval de rua, e percebemos uma tendência à síndrome da invenção da roda por agitadores culturais e "donos" de blocos. Todos se colocando como os responsáveis pela "retomada" da festa popular. O Carnaval atual tem suas origens na virada dos séculos 19 e 20, amalgamando experiências diversas. Porém, há os foliões/ agitadores de blocos carnavalescos da zona sul carioca que acham que nasceu com eles e no século 21. E do outro lado, no desfile das escolas de samba, a campeã deste ano, GRES Acadêmicos do Salgueiro, reivindicou para si, como motivo para a vitória, a retomada ao "samba no pé", às `tradições" etc. Certamente uma crítica aos desfiles "técnicos e irrepreensíveis" de campeãs de outros anos.

Aos "heróis da resistência carnavalesca" e aos autointitulados renovadores da folia de rua, e aos demais interessados em viver e pensar a questão cultural e carnavalesca, em particular no Rio de Janeiro, recomendo a leitura cuidadosa do novo livro de Walnice Nogueira Galvão, crítica literária, professora da Universidade de São Paulo e uma ativa pensadora da cultura, Ao Som do Samba ­ Uma Leitura do Carnaval Carioca, editado pela Fundação Perseu Abramo.

Nesse trabalho, a autora nos brinda com uma aula escrita, sem didatismos, falando diretamente sobre as diversas trajetórias que culminaram na atual formatação do Carnaval na "Cidade Maravilhosa" e seus reflexos em Carnavais de outras cidades e estados. Com esse livro, podemos entender a história carnavalesca, observando seus precursores, as contradições, os diversos formatos e a capacidade criativa da população do Rio para organizar e viver as festas momescas. Além disso, antes que as gerações mais novas, e outras nem tão novas, sigam achando que inventaram ou reinventaram o Carnaval, é importante compreender que muitas das questões atualíssimas já estavam colocadas como problemas há tempos.

A primeira escola de samba, a Deixa Falar, do Largo do Estácio, surgiu e desfilou como bloco (1928), depois rancho (1931), e desde o início chamou atenção, pois trazia uma ruptura com o samba mais próximo ao maxixe, e mais dançante. Com o desfile na avenida, a necessidade era de um samba mais voltado ao cortejo, marchado, para a frente, e o modelo do Estácio passou a ser copiado por outras favelas/escolas. Os jornalistas foram figuras fundamentais na divulgação dessa e de outras inovações, e coube ao jornal Mundo Esportivo, em 1932, organizar o primeiro concurso de escolas de samba. Em 1934, congregando 28 escolas, é fundada a União das Escolas de Samba e, no ano seguinte, a prefeitura da cidade oficializa os desfiles. Mas a própria criação das escolas é uma tentativa de institucionalização, o que pode ser percebido desde a definição do nome das agremiações, uma vez que blocos como Vai como Pode passa a se chamar GRES Portela; Deixa Falar, Unidos de São Carlos (atual Estácio de Sá); Bloco dos Arengueiros, GRES Estação Primeira de Mangueira. Por um lado, as escolas reafirmavam a relação com as comunidades de origem e, por outro, davam uma importância a si próprias, tirando a jocosidade e passando a um título mais "sério": grêmio recreativo escola de samba, seguido do nome específico. Com o livro da professora Walnice, vamos entender a origem da palavra samba (semba, o nome da umbigada ­ presente nas pioneiras rodas de samba e a deixa para a substituição do casal dominante/solista), quais seus precursores (lundu, o citado maxixe, tango brasileiro, entre outros) e como a chegada de um grande contingente de negros vindos das regiões cafeeiras pós-abolição da escravatura (1888) trouxe mudanças à musicalidade da cidade e ao próprio Carnaval.

Os entrudos (festas de origem portuguesa e com uma forma agressiva de brincar) foram substituídos pelo Carnaval como etapa civilizatória. Na sequência desse processo, temos o zé-pereira, as Grandes Sociedades, o corso, os cordões, os blocos, os ranchos e, por fim, as escolas. O Carnaval tem uma história linear, mas repleta de entremeios, de grupos querendo "um retorno ao Carnaval tradicional" (isso no século 19 e no início do 20!). Deriva de influências e espaços geográficos diversos: de festas e religiosidade africanas e europeias/católicas; da presença efetiva das matriarcas baianas no Rio, como Tia Ciata, testemunha do nascimento do que viria a ser considerado o primeiro samba a ser gravado, Pelo Telefone (1917); da urbanização, com a reforma Pereira Passos, mudando a vida e a cultura da cidade; da criação das escolas; do enredo chegando quando Paulo da Portela veste sua escola conforme o samba e o tema; do Império Serrano, com Mano Décio criando o primeiro samba-enredo. E os sambas das escolas, embora feitos por negros, tinham letras sempre pomposas, contrastando com a informalidade crítica das marchinhas (quase no geral de compositores brancos, de classe média).

A chegada dos carnavalescos nos anos 1960, e especialmente de Joãozinho Trinta, tirou o "samba no pé" para a verticalização das torres de TV e das altíssimas arquibancadas. Ainda nessa década, o Salgueiro rebaixou o samba-enredo para ficar mais fácil de cantar e correr, com seus olê-lês olá-lás. Finalmente chegamos à inauguração do Sambódromo atual, em 1984.

Enfim, temos aqui um guia para entender de onde saímos com os cortejos carnavalescos. Evoé, Momo. Ele agradecerá a Walnice Nogueira Galvão por fazer uma obra que contribuirá para a compreensão do Carnaval carioca e, com certeza, provocará debates e, possivelmente, outras publicações.

Flavio Aniceto é formado em Produção e Política Cultural pela Universidade Candido Mendes, coordenador do Coletivo de Produção Cultural Aracy de Almeida/CPC (RJ)