Estante

fracasso da transição democrática na tentativa de estabelecer condições para a constituição de um quadro partidário solidamente estruturado no Brasil mantém fascinante o estudo das origens do Partido dos Trabalhadores. Apesar das iniciativas que a Nova República introduziu no campo do desenvolvimento institucional partidário, a multiplicidade de legendas organizadas a partir de 1985 responde hoje, na sua maior parte, às necessidades de acomodação das políticas internas ao Congresso, cisões interpartidárias, ou tão-somente a interesses localizados de âmbito puramente privado. A presença do PT nesse quadro, com as características de um processo de formação atado às transformações do movimento sindical de fins da década de 70 e às articulações com um conjunto amplo de atores sociais e políticos, confere uma singularidade histórica na trajetória dos partidos nacionais que sempre merece reflexão.

Nesse sentido, o trabalho de Marta Harnecker se estabelece como um dentre os vários documentos existentes para a busca do detalhamento dos passos e etapas da formação do partido. Com a compilação e organização temática de respostas obtidas em entrevistas com lideranças do PT, realizadas entre 1990 e 1994, a autora apresenta a história inicial do partido limitada ao período entre 1978 e 1980.

Dividido em três conjuntos, o roteiro de narrativas abrange na primeira parte a percepção das lideranças sobre o esgotamento do modelo político, social e econômico do regime militar; valoriza trajetórias pessoais de alguns dos líderes do novo sindicalismo e privilegia parte dos movimentos populares que figuraram no processo de extensão política do movimento sindical. Tem pequeno tratamento aqui, a participação de vários setores dos movimentos sociais urbanos, como os grupos do movimento negro, feminista, associações de bairros e, sobretudo, os setores aglutinados no denominado "sindicalismo de classe média". Ao inexplorar os vínculos criados com os vários grupos organizados de natureza reivindicativa ampla, e com segmentos dos trabalhadores urbanos, escapa ao leitor/pesquisador o poderoso papel político que o novo sindicalismo adquiriu ao articular, após as greves de 1979 e 1980, uma pauta de reivindicações de caráter unificado, capaz de superar em nível simbólico as diferenças da classe operária e de agregar amplas camadas de trabalhadores urbanos, e de caráter político amplo, capaz de abranger a totalidade dos elementos envolvidos na luta pelo reconhecimento político.

Na segunda parte, a autora procura reconstituir os vários "momentos da construção do PT", e é valiosa a narrativa dos procedimentos para elaboração das estratégias de divulgação e consolidação da proposta partidária. O cenário político-institucional colocado pela reforma partidária não é explorado, descartando as negociações políticas ocorridas envolvendo parlamentares da oposição ao regime. Vale lembrar que, apesar da adesão formal ao PT dos parlamentares da ala "tendência popular" do MDB só ter ocorrido em 1980, já em 18 de agosto de 1979, no Encontro Nacional do partido, realizado em São Paulo (referência que escapa à autora) com a presença de sindicalistas, políticos e intelectuais, o PT deixava clara a abertura aos políticos progressistas do MDB para a participação na construção do partido.

A terceira parte dedica-se a apresentar como elementos fundamentais para o processo de construção do PT as mobilizações do campo, localizadas em vários estados e várias regiões do país, e o papel das organizações de esquerda. Quanto aos movimentos de trabalhadores rurais, fica claro o papel fundamental da Igreja por intermédio das Comissões Pastorais da Terra na sua organização e vinculação com o PT. Perguntar sobre o processo de estruturação dos órgãos partidários no período inicial teria contribuído para esclarecer a pequena participação desses setores nas composições das Comissões Nacionais Provisórias de 1979 a 1980, nas quais predominam os setores do novo sindicalismo de ponta das regiões Sul e Sudeste.

Quanto ao papel das organizações de esquerda, a linha condutora das perguntas da autora é a intenção de identificar traços de influência definitiva das lideranças de esquerda (subdivididas nos vários grupos que se dirigiam ao PT) sobre as lideranças sindicais, no sentido da formação da consciência política necessária à ampliação da ação sindical à partidária. Perde a autora aqui, a possibilidade de destacar um dos traços mais singulares da formação do PT, qual seja, a dupla percepção política das lideranças sindicais que, de um lado, de dentro do próprio movimento captaram os limites das mobilizações sindicais que se desenvolviam contra uma estrutura corporativista repressiva, e, de outro, a de seu papel como agentes políticos na transposição ampliada da luta sindical para a arena político-partidária que já se esboçava em meados de 1979, conforme pode ser verificado nos discursos e entrevistas realizados naquele momento.

Como este é um documento que ilustra trajetórias de protagonistas tão fundamentais para a história de nossa democratização, é pena não trazer as datas das entrevistas.

Rachel Meneguello é professora do Departamento de Ciência Política do IFCH/Unicamp, autora de PT - A formação de um partido.