Estante

Pedro PomarWladimir Pomar, autor de Pedro Pomar – Uma Vida em Vermelho, executou com grande êxito a tarefa de escrever a biografia política do próprio pai, que também fora seu companheiro de militância política. Convenhamos que é uma empreitada marcada por diversos riscos, mas nosso autor foi bem-sucedido ao percorrer a complexa travessia que caracterizou a extraordinária trajetória política de Pedro Pomar, em mais de quatro décadas de participação nos principais acontecimentos da história política do país, interrompida quando foi assassinado na trágica manhã de 16 de dezembro de 1979, pelas forças de repressão da ditadura militar.

Um dos pontos a destacar é a bem construída arquitetura do texto, que permite uma leitura fluente e prende a atenção do leitor, fruto sem dúvida da longa experiência de jornalista e escritor que Wladmir Pomar maneja a seu favor como um hábil esgrimista. O autor ambienta a biografia, narrada na terceira pessoa, a partir da reunião da direção do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) ocorrida entre a noite do dia 11 e a manhã do dia 16 de dezembro de 1976. Nessa reunião, que foi a última atividade política de Pedro Pomar, discutiam-se no aparelho clandestino do PCdoB, numa casa comum no bairro da Lapa, em São Paulo, o desfecho e as perspectivas da Guerrilha do Araguaia frente à derrota (não admitida por alguns) sofrida ante o regime militar. Nesse ambiente marcado pela tensão das circunstâncias, o escritor lança mão de um estratagema. Aproveitando os intervalos da reunião, transporta seu “personagem” para o passado através de suas recordações, que vão desde a infância até o ingresso no Partido Comunista e toda sua extensa atividade política, sem deixar, porém, de mostrar o lado humano de Pedro Pomar, na vivência familiar, na relação com os amigos, na solidão das viagens e no trato com a política nas circunstâncias mais adversas. Nesses momentos somos tirados do cotidiano nervoso da clandestinidade que caracterizou os anos de chumbo da ditadura militar e enveredamos pela história política do Brasil nos anos 30 e nas décadas seguintes, que se confunde com a própria expe­riência de Pedro Pomar.

Antes de entrar na militância comunista de seu pai, Wladimir Pomar nos conduz à distante Óbidos, no Pará, onde Pedro Pomar viveu sua infância, e nos coloca em contato com o período do ciclo da borracha no início do século 20, que fez florescer economicamente a Região Norte, atraindo para lá figuras pouco comuns, como o jovem historiador peruano ligado ao mundo das artes Felipe Cossio y Pomar. Descendente de uma família aristocrática de espanhóis, Felipe chega a Óbidos em 1911 e se apaixona por Rosa Araújo, filha do subtenente piauiense Pedro Araújo, que fora designado para chefiar a construção de um quartel naquela cidade. Depois de um romance um tanto tumultuado, Felipe e Rosa se casam no Natal de 1912. O nascimento de Pedro Ventura Pomar, o primeiro filho do casal, se dará em 23 de setembro de 1913. Em 1915, com a mulher grávida do segundo filho, Felipe viaja para os Estados Unidos, onde se estabelece como artista e professor de artes. Somente em 1918 Rosa vai ao encontro do marido, acompanhada de seus dois filhos, Pedro e Roman. Depois de pouco mais de dois anos nos Estados Unidos, ela decide voltar para o Brasil, separando-se em definitivo do marido. O velho Araújo passa a ser avô e pai dos filhos de Rosa.

No início de 1926, aos 12 anos, Pedro Pomar parte sozinho para Belém para continuar os estudos, ficando hospedado na casa de um amigo de seu avô. Ventura, como era chamado naquela época, passa um período feliz entre os estudos no Ginásio Paraense, o futebol do time do Nazareth e as novas descobertas através dos livros e da política. Em 1930, ao ocorrer a Revolução Liberal, já era ativista estudantil e havia tomado contato com os primeiros livros de inspiração comunista e socialista, como ABC do Comunismo, de Bukharin, e A Mãe, de Gorki (p. 57). Em 1932 participa ativamente das revoltas estudantis em Belém contra o governo do interventor Magalhães Barata, chegando a comandar, armado de fuzil, uma trincheira no Bairro do Reduto. Depois de umas “férias” forçadas no Rio de Janeiro, onde se hospedou na casa da jornalista e amiga de militância estudantil Eneida de Morais, por influência dela e de seus amigos comunistas Pedro Pomar retorna ao Pará em princípios de 1933 já como membro do Partido Comunista. Sua primeira tarefa será organizar os estudantes universitários, pois havia ingressado na faculdade e iniciado o curso de medicina, e ficara encarregado também de fazer a ligação com os intelectuais. Além da militância comunista e da medicina, continuava amante do futebol e era a principal estrela do time da faculdade.

Em 5 de dezembro de 1935 Pedro Pomar casa-se em Belém com a jovem Catharina Patrocínio Torres, que conhecera um ano antes. Em fevereiro do ano seguinte experimenta pela primeira vez as agruras da prisão, com mais 22 companheiros, na vaga repressiva que se instaura no país após o levante comunista de 1935. É libertado mais de um ano depois, em julho de 1937. Passa quase imediatamente a travar contato com a clandestinidade, adota o codinome Wandick, abandona em definitivo a faculdade de medicina e torna-se um revolucionário profissional do Partido Comunista. Após quase três anos de difícil vida clandestina, Pomar se transfere para o Rio de Janeiro, onde participa ativamente da reconstrução do Partido Comunista como membro destacado da Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP). Dali em diante será um dos dirigentes de frente do Partidão, tendo papel decisivo na reorganização do partido no seu período de legalidade, no final da ditadura Vargas. Apesar de alternar altos e baixos dentro da estrutura de poder do Partido Comunista, sua contribuição, seja como dirigente nacional, seja como parlamentar, organizador, militante clandestino ou “teórico”, estará sempre presente até sua expulsão no final de 1961, interrompendo um período de quase trinta anos de militância no PCB.

Juntamente com outros dirigentes dissidentes, como João Amazonas, Maurício Grabois, Ângelo Arroyo, entre outros, Pedro Pomar fundará em 1962 o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), e nele permanecerá como dirigente nacional até ser brutalmente metralhado por policiais militares.

A análise sobre a Guerrilha do Araguaia, como já dissemos anteriormente, perpassa todo o livro e, de forma engenhosa e sutil, vai nos projetando para dentro das organizações de esquerda, da luta armada e para o significado da ditadura militar para aqueles que tentaram desafiá-la, como foi o caso de Pedro Pomar e seus companheiros. Os longos debates que vão se dando sobre a Guerrilha do Araguaia nas manhãs e tardes de dezembro de 1976 nos mostram o dirigente maduro que pressente o perigo, redobra a cautela, procura dialogar e argumentar com os mais inexperientes, sem desqualificá-los, mais preocupado em formá-los do que superá-los. Foi lamentável que este homem que tanto se empenhou para combater a ditadura não pudesse testemunhar seu fim.

Cabe ainda nos limites desta breve resenha salientar o trabalho de contextualização histórica nacional e internacional muito bem calibrada e consistente realizado pelo autor, que permite estabelecer as interfaces entre o contexto geral dos acontecimentos e seu desfecho mais localizado ou isolado.

Neste ano em que se com­pletam quarenta anos do golpe militar de 1964, o livro de Wladimir Pomar é leitura obrigatória porque nos remete à verdadeira dimensão da derrota sofrida pelo povo brasileiro com a instauração do regime militar e seus impactos para o futuro de nossa sociedade. Ao caminharmos ao lado de Pedro Pomar por mais de quarenta anos pela história política brasileira desde os anos 30, ficamos na companhia de um militante generoso que soube conciliar ativismo político com reflexão teórica e, sobretudo, conduta ética na prática política. Nos tempos atuais de crise de paradigmas, refluxo da esquerda e glorificação dos mercados, o livro de Wladimir Pomar serve de estímulo às novas gerações, que cada vez mais são desestimuladas a conhecer nossa história e, dessa forma, negar qualquer possibilidade de elo entre o passado e o presente.

Hélio da Costa é mestre em História Social pela Unicamp, coordenador de Formação da Escola Sindical São Paulo-CUT e professor de história da Universidade Santana (Unisantana) e da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo