Estante

Eleições presidenciais em 2002A mídia, sendo um lugar por excelência de mediação social da contemporaneidade, torna-se um ator político significativo e um necessário espaço novo de realização da política. Pensei ser o caso de começar, por esse acerto de contas teórico, a análise do livro organizado pelo professor Antônio Albino Canelas Rubim obre o comportamento da mídia brasileira nas eleições presidenciais de 2002, que traz a colaboração de uma dezena de professores e intelectuais vinculados à área. Acerto de contas que, aliás, é feito pelo próprio organizador, à página 15, no ensaio assinado por ele denominado “Visibilidades e estratégias nas eleições de 2002: política, mídia e cultura”. Esse novo espaço, o da mídia, eletronicamente constituído, explica Rubim, funciona como um campo de forças no interior do qual os atores políticos reconhecidos socialmente realizam o embate político e eleitoral.

O livro busca captar a singularidade do desempenho da mídia nas eleições de 2002, com ênfase na mídia eletrônica, mais especificamente na televisão, embora também aborde a mídia impressa. E consegue. as diversos ensaios captam modificações importantes no comportamento midiático naquelas eleições, particularmente uma nova postura da Rede Globo, que, de uma posição nitidamente governista nas eleições anteriores, passa a uma posição que poderia ser considerada mais equilibrada, que revelaria uma “descoberta da política” por parte do império construído por Roberto Marinho, como define Luís Felipe Miguel no ensaio “A descoberta da política – A campanha de 2002 na Rede Globo”.

Três textos dedicam-se à análise da Rede Globo, dando ênfase quase exclusiva ao Jornal Nacional, explorando a presença desse noticioso nas eleições desde o fim da ditadura. Há unidade quanto a uma conclusão: o principal telejornal brasileiro realizou a sua maior cobertura eleitoral, como ressalta Leandro Colling no ensaio “Os estudos sobre o Jornal Nacional nas eleições pós-ditadura e algumas reflexões sobre o papel desempenhado em 2002”. Noutro ensaio – “A televisão e o primeiro turno das eleições presidenciais de 02 – Análise do Jornal Nacional e do horário eleitoral” – os autores chegam a afirmar, corretamente, que o noticioso apresentou uma cobertura mais neutra e imparcial, mas simultaneamente, quanto à economia, tema de grande destaque do jornal, privilegiou o enquadramento promovido pelo governo FHC. O Jornal Nacional defendeu a manutenção da política econômica de FHC como fundamental para acalmar os ânimos do mercado e manter a estabilidade da economia, visão que favorecia a candidatura de Serra.

O ensaio de Luís Felipe Miguel, a que já me referi, faz uma retrospectiva da cobertura global marcada por uma estratégia nítida de manipulação. Envolveu-se, de modo desastroso e sem sucesso, na tentativa de derrotar Brizola em 1982 no Rio de Janeiro – escândalo Proconsult. Depois, na cobertura das diretas, em 1983-1984, quando pretendeu desconhecer a extraordinária campanha. Mais tarde, em 1989, na manipulação grosseira do debate entre Lula e Collor. E, na seqüência, as coberturas das eleições de 1994 e 1998, quando não escondia a simpatia por Fernando Henrique Cardoso. A nova realidade política de 2002 impôs uma nova postura à Rede Globo. Não havia mais candidato natural, já que FHC não podia reeleger-se e mesmo que o fizesse sua situação não era das melhores. O PSDB entrava cindido na eleição. E o PT conseguiu alargar seu campo de alianças e aparecer como alternativa viável. A Globo preferiu o caminho de um jornalismo menos parcial, tentando cobrir os acontecimentos com mais amplitude.

Essa amplitude pode ser medida. Em 1998, quando houve um claro esforço no sentido do esvaziamento da disputa eleitoral, nas doze semanas que vão da final da Copa do Mundo até a data da votação, o Jornal Nacional dedicou, ao todo, 1 hora, 16 minutos e 34 segundos à cobertura das eleições, 4,6% e seu tempo total. Em 2002, foram catorze semanas entre o fim da Copa e o primeiro turno, e as eleições presidenciais representaram 12 horas, 55 minutos e 50 segundos do noticiário, 29,4% do total. As eleições nos estados ocuparam mais 46 minutos e 11 segundos. Ao todo, o processo eleitoral ocupou 31,2% do tempo do noticiário. Mas, apesar dessa abertura, Luís Felipe Miguel anota o fenômeno que chama de “fechamento do campo discursivo”, fechamento concentrado no agravamento da crise econômica, para a qual se cobravam de todos os candidatos a manutenção dos contratos, os pagamentos das dívidas interna e externa e o compromisso com o ajuste fiscal, o que é anotado por outros autores no livro, como já se disse.

O que se pode concluir, e não quero comprometer os autores com tal conclusão, é que a Rede Globo, de um lado, fez a opção de resgatar alguma credibilidade como meio jornalístico, bastante afetada por suas intervenções anteriores, nitidamente manipulativas. Talvez tenha tido também a clareza de que, já que o quadro político apresentava muitas incertezas e, a partir de determinado momento, apontava a possibilidade e vitória de Lula, era melhor alargar a cobertura e não se apresentar de modo tão parcial como o fizera anteriormente. De outro lado, o enquadramento da cobertura orientou-se pela tentativa de preservar interesses dominantes, ao pretender que os candidatos dessem continuidade à política econômica de Fernando Henrique Cardoso, e essa foi a tônica do esforço jornalístico e da diretriz imprimida aos debates. Não se pode, no entanto, ignorar que essa “redescoberta da política” pela Rede Globo em 2002 teve importância significativa para as eleições, permitindo um debate mais amplo e uma melhor cobertura jornalística, representando uma contribuição à vida democrática

O texto de Antônio Albino Canelas Rubim discute o superdimensionamento da visibilidade midiática em detrimento da política e do discurso político ou, como diz Rubim, das interpretações da realidade em disputa. O silenciamento, tão presente em 1998, como que por encanto desapareceu de modo notável. Ocorreu uma superexposição dos candidatos. Constatar isso é quase registrar o óbvio. Rubim, no entanto, vai além da constatação. Será que a mídia teria o mesmo comportamento caso existisse um candidato consensual das elites, como anteriormente? Provavelmente não.

O importante, no entanto, é que a visibilidade não se concentrou nos programas dos candidatos, em sua trajetória político-partidária, em suas realizações, mas buscou o território das suspeitas de corrupção dos candidatos ou seus partidários e das alianças consideradas imorais. Em outras palavras, como diz Rubim, a superexposição transforma-se rapidamente em obscenidade, escândalo, com a busca persistente da moralidade dos atores. A política, vista assim pela mídia, fica drasticamente reduzida, pronta a ser submetida tão-somente ao crivo moralizante da cobertura jornalística.

Nessa leitura tudo e todos são suspeitos, em princípio, a começar pela própria atividade política. Ou seja, o aumento da visibilidade, a superexposição dos candidatos esteve longe da valorização da política, do fortalecimento de sua dignidade, muito ao contrário. Rubim insiste que a política não pode ficar refém apenas do momento da visibilidade. Tem de recorrer a um segundo momento, que é o da disputa de interpretações da realidade, território onde se testam os programas, as idéias dos candidatos – onde se busca a construção de hegemonia. Sem isso, ancorando-se apenas na visibilidade, a política tem fôlego curto, e 2002 foi rico nesses exemplos – o caso de Roseana Sarney talvez seja o mais paradigmático para ilustrar o que se está dizendo, e ele merece um texto específico de Rejane Vasconcelos Accioly Carvalho – “Como se faz e desfaz um fenômeno eleitoral’: o caso Roseana”.

Jorge Almeida, a partir da noção de lugar de fala, mostra a impossibilidade de o candidato José Serra apresentar-se como candidato da mudança, como ele pretendia. Serra concentrou seu discurso na mudança, tentando adaptar-se ao cenário político que estava posto, que cobrava mudanças, e às próprias pesquisas qualitativas que também indicavam anseio por mudanças. Ele procurava afastar-se do governo FHC. Para o leitor, no entanto, não havia como essa tentativa dar certo. Serra era a continuidade. Teria legitimidade defendendo o governo, nunca propondo mudanças. O lugar da mudança era de outro – de Lula. Esse não era eu lugar de fala. Ao insistir na mudança acabava reforçando Lula, seu principal adversário, verdadeiro depositário de uma idéia renovadora.

As diferenças entre as coberturas dos jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo, O Globo e Jornal do Brasil constituem o objeto de análise de Alessandra Aldé. Conclui que O Estadão foi o jornal mais parcial, tendo uma clara posição governista. Na Folha, localizam-se altos índices de neutralidade, segundo a autora. Acentue-se, entretanto, que a cobertura tem um viés prioritariamente negativo, tendência que o jornal persegue há muitos anos. O Globo surpreendeu pela benevolência no trato com Lula, acompanhando de alguma forma a posição da Rede Globo. Foi, no entanto, também generoso com Serra e acentuadamente duro com Ciro Gomes. O Jornal do Brasil, que se louva como tendo um comportamento imparcial nas eleições de 2002, desenvolveu uma cobertura pouco densa, de volume insignificante, com omissões relevantes.

Vera Chaia discute o medo como estratégia política, partindo da eleição de 1989. O PT, compreendendo como as classes dominantes reagiriam, criou o belo slogan “Sem medo de ser feliz”. Desde aquela eleição, o medo foi usado para assustar o eleitor com relação ao PT. Collor dizia que Lula iria confiscar a poupança. Quando um dos seqüestradores de Abilio Diniz saiu do cativeiro vestindo uma camiseta de propaganda de Lula, ficou evidente a estratégia de criar um clima de pânico. O medo foi utilizado em 1994 também – se Lula vencesse haveria uma corrida contra o dólar, êxodo de capitais “e é isto que mete medo”, como dizia a Folha de S.Paulo (8-5-94). Se Lula vencesse iria fechar as igrejas evangélicas, dizia-se.

Na eleição de 1998 o medo foi alimentado quanto à possibilidade de Lula promover alguma ruptura que não permitisse a continuidade da política econômica e levasse o país à bancarrota. O medo era construído com a idéia de que Lula não tinha capacidade de enfrentar uma crise internacional. “Dessa vez, a força de Fernando Henrique virá do medo da crise, não da vitória sobre a inflação. Essa a diferença fundamental entre o primeiro e o segundo mandato de FHC” (O Estado de S. Paulo, 4-10-98). Os tucanos, em 2002, trabalharam com a idéia de que Lula eleito equivaleria ao risco do caos, à transformação do Brasil numa Argentina”. Só que dessa vez a conjuntura era diversa, havia já o cansaço do eleitorado com o PSDB e o PT soube construir uma estratégia capaz de enfrentar o espectro do medo. Desconstruiu a imagem de um partido político dogmático, radical, intransigente, e construiu a de um partido moderno, negociador, como diz Vera Chaia. Nesse sentido, de fato a esperança venceu o medo.

Emiliano José é jornalista, doutor em Comunicação, professor da Universidade Federal da Bahia, autor de As Asas Invisíveis do Padre Renzo, e de Lamarca, o Capitão da Guerrilha, entre outros. É deputado estadual, líder do PT na Assembléia Legislativa da Bahia.