Em vida, Sérgio Buarque de Holanda reuniu, burilou e às vezes refundiu alguns ensaios originalmente publicados em jornais e revistas que deram origem aos volumes de Cobra de Vidro (1944) e de Tentativas de Mitologia (1979). Avesso a qualquer forma de publicidade, ele não recolheu uma extensa miscelânea que abrangia textos de natureza variada, no tema e na forma. Coube à posteridade a tarefa de recuperação e reunião dos ensaios acadêmicos, textos jornalísticos, entrevistas, prefácios e resenhas.
Esta série promissora iniciou-se em 1985 com o volume Sérgio Buarque de Holanda que integrava a Coleção “Grandes Cientistas Sociais”. O volume organizado por Maria Odila Leite da Silva Dias, discípula e professora titular de História do Brasil na Universidade de São Paulo, inaugurava a série de antologias com excertos de ensaios de interpretação histórica. Por sua vez, Francisco de Assis Barbosa organizou Raízes de Sérgio Buarque de Holanda (1988), que se caracterizava pelo esforço pioneiro em reunir 32 artigos dispersos publicados em diferentes órgãos da grande imprensa (Correio Paulistano, Diário Nacional, Correio da Manhã, O Jornal) e em periódicos (Fon-Fon, Revista do Brasil, Estética), entre os anos 1920 e 1935. Posteriormente, Antonio Candido organizou e preparou uma introdução para Capítulos de Literatura Colonial (1991), reunião de textos inéditos escritos entre os anos 40 e 50 que correspondiam às diversas encomendas e aos projetos encabeçados por um dublê de crítico literário e historiador erudito e original. Fechando o circuito das obras que visavam a reconstituição desse continente inexplorado, merecem destaque dois livros publicados em 1996. O primeiro deles tem um título auto-explicativo, Livro dos prefácios. O segundo, O Espírito e a Letra, organizado por Antonio Arnoni Prado, destaca-se nessa constelação não só por localizar e reunir a maior parte dos estudos de crítica literária publicados entre 1920 e 1959 como também pelo meticuloso trabalho que envolveu o estabelecimento do texto, a remissão das citações, a preparação de notas e a organização de índice onomástico.
No vasto campo celestial, onde irradia a luz de Sérgio Buarque de Holanda, a publicação de Para uma Nova História é uma estrela cadente, uma promessa que cumpre de forma parcimoniosa os seus objetivos. Decerto, o juízo não tem nada a ver com o conteúdo da obra, posto que os ensaios e as resenhas reunidos por Marcos Costa contribuem para a compreensão do labor e da inquietação de nosso miglor fabbro.
Longe de se constituir em uma “espécie de apêndice” (p.16) dos livros, como crê o organizador, a ensaística de Sérgio Buarque de Holanda permite compreender a gênese dos argumentos e o inventário de temas que posteriormente deram origem a livros que o consagraram, como é o caso de Monções, Caminhos & Fronteiras e Visão do Paraíso. Os dispersos revelam a perspicácia do autor, o emprego do espaço jornalístico como um laboratório de letras, um mapa das leituras e das polêmicas que marcaram o debate das idéias no campo da crítica cultural. Os ensaios publicados nos anos 40 e 50, que formam o grosso desta antologia de 21 textos, também se enquadram em um momento peculiar da vida do autor, que naquele período mudava-se para São Paulo, assumia postos acadêmicos na, à época, Escola de Sociologia e Política e o cargo de diretor do Museu Paulista, mantendo-se ainda como crítico titular do caderno literário do Diário Carioca. Portanto, os textos são importantes como marcas de uma reorientação do trabalho intelectual da crítica literária para a história e a ascensão do crítico-scholar que não abdicava de um estilo narrativo incomum aos seus pares.
Convém apontar que o organizador de Para uma Nova História comete algumas hesitações que merecem reparo. A primeira delas, que salta à vista, é a desordem temporal na disposição dos textos, evidenciando, senão a ausência de critérios para antologização, uma timidez que pouco contribui para a compreensão da “sociologia histórica da vida intelectual do autor” (p. 17).
Acrescente-se ainda a notável contradição entre o título da obra e o desejo de “desviar o foco de análise do Sérgio Buarque de Holanda historiador, com os seus temas, métodos e abordagens, como até hoje se fez, para o Sérgio Buarque de Holanda publicista” (p.16). Quais os critérios que corroboram essa decisão e por que esse projeto não se realiza? O que justificaria a presença dos textos “O senso do passado” (1952), “Apologia da história” (1950), “Sobre uma doença infantil da historiografia” (1973), “Para uma nova história” (1950) e “História econômica” (1952)? Diante da flagrante incoerência, por que “O ofício de historiador” (1950) ou “O pensamento histórico no Brasil nos últimos cinqüenta anos” (1951) foram alijados desse bloco? Finalmente, parece pouco plausível o emprego da categoria “publicista” para remeter às formas de inserção política de um intelectual do século 20, como é o caso de Sérgio Buarque de Holanda.
Parafraseando o juízo de E.E.Cummings a propósito do lugar de Ezra Pound na poesia do século 20, um leitor interessado em conhecer as interfaces da cultura material com as representações simbólicas na história do Brasil que não tenha transitado pelos textos de Sérgio Buarque de Holanda merece mais a nossa piedade que a nossa reprovação. Por isso mesmo, a empreitada de Marcos Costa para dar visibilidade aos textos de difícil acesso do mestre Sérgio Buarque é sem dúvida louvável.
Entretanto, os critérios de seleção e de organização questionáveis, as lacunas, as omissões e as inferências arriscadas impõem uma pesarosa relativização quanto à magnitude desse evento editorial. Somos tentados a endossar a asserção de Eric Hobsbawm, outro titã da historiografia contemporânea, que depois de comentar O retorno da narrativa: reflexões sobre uma nova velha história, de Lawrence Stone, companheiro do periódico marxista britânico Past & Present, ponderou e replicou: “Se eu fosse você, realmente não começaria por aqui”.
Nelson Schapochnik é professor na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo