A Boitempo reedita, em português, uma obra que consegue de forma brilhante e emocionante apresentar os primeiros movimentos que antecederam e se sucederam à principal revolução do século 20, a Revolução Russa de Outubro de 1917, também conhecida como Revolução Bolchevique. Excelente oportunidade a publicação do livro, no momento em que se comemoram os 90 anos de um dos mais importantes eventos da história moderna.
Victor Serge, autor russo nascido na Bélgica devido ao envolvimento dos pais com os narodniks ("populistas", grupo de tendência anarquista que promoveu a execução do czar Alexandre II, em 1881), envolveu-se politicamente com o anarquismo, depois com o bolchevismo e, mesmo defendendo a Revolução Russa, passou a compor a Oposição de Esquerda, grupo trotskista que combateu a ascensão de Stalin. Apoiou ainda o Partido Obrero de Unidad Marxista, na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), e rompeu com Trotski no momento da criação da IV Internacional. Morreu no exílio em 1947, no México. Foi, portanto, um observador privilegiado de boa parte da história política da primeira metade do século passado.
O "Ano V" ao qual o título do livro faz referência é o período entre a tomada do Palácio de Inverno em São Petersburgo (que marcou o início da revolução), em 1917, e a fracassada tentativa da Revolução Alemã em 1918, que para muitos (incluindo Serge) explicaria as vicissitudes futuras da União Soviética. Olhar para esse período de implantação da primeira república socialista da história é extremamente revelador sobre o que pretendiam aqueles homens e mulheres que depuseram primeiro o czar, depois o governo menchevique de Alexander Kerensky.
Ao contrário do que ainda se fala e se escreve acerca da "essência autoritária" da Revolução de Outubro, vemos nas páginas de Serge a efetiva participação e deliberação de trabalhadores, camponeses e soldados nos conselhos (os sovietes) instalados nas cidades, órgãos com poderes legislativos e executivos que coexistiram com os parlamentos da efêmera experiência de democracia burguesa do Governo Provisório menchevique. Os sovietes apresentavam instrumentos de democracia direta que muitos agora defendem como o "remédio" para a desacreditada democracia formal representativa. É revelador ler que a decisão da tomada do Palácio de Inverno e o início da revolução foi coletiva, não obra de um gabinete de notáveis, como muito ainda se quer fazer crer sobre 1917. E chama a atenção também o caráter "legalista" e de respeito às regras que reinava entre os sovietes, que nos conflitos de rua em Moscou, dias após a tomada de São Petersburgo, levou-os a libertar os militares czaristas que organizariam posteriormente a contra-revolução branca. Segundo as próprias palavras de Serge: "A revolução errou ao se mostrar magnânima em relação ao chefe da divisão cossaca. Ele deveria ter sido fuzilado no ato. Depois de alguns dias, recobrou a liberdade, prometendo, sob palavra de honra, que não empunharia armas contra a revolução. Mas existem compromissos de honra com os 'inimigos da pátria e da propriedade'? Ele iria incendiar e banhar de sangue a região do Don" (p. 116). Vemos aí descrita a mesma postura apresentada pelos comunardos de Paris de 1871, que guiados por princípios civilizatórios não fizeram com seus inimigos exatamente aquilo que sofreriam após a queda da Comuna.
Mas, como sabemos, a Revolução de 1917 foi vitoriosa. Isso não ocorreu sem muitos contratempos e um enorme sacrifício de milhões de pessoas, que tiveram de suportar todos os tipos de sabotagem e de ataque das camadas médias e altas da sociedade e a ofensiva dos países ocidentais que apoiaram a contra-revolução, os quais não podiam suportar a tomada do poder pelos sovietes proletários. Um dos exemplos das sabotagens que os sovietes sofreram é a tão divulgada história de que as tropas bolcheviques que tomaram o Palácio de Inverno em outubro de 1917 promoveram uma "orgia etílica" naquela noite. O autor, que descreve isso como sabotagem, apresenta sua versão: "Concebida ocultamente, a intenção abominável de afogar a revolução no vinho, antes de afogá-la em sangue ( ... ) chegou a começar a ser executada a sério. Havia em Petrogrado ricas adegas de vinho, preciosos estoques de bebidas destiladas finas. Surgiu no seio da multidão - ou, mais exatamente, ali foi plantada - a idéia de saqueá-las". A resposta veio rápido: "( ...) foi necessário nomear um comissário extraordinário, munido de plenos poderes, para combater o flagelo. Foram impostas medidas draconianas. Alguns saqueadores foram fuzilados no ato. ( ... ) O mal foi vencido em uma semana" (págs. 125-127).
É significativo notar que até a explosão definitiva da Guerra Civil (1918-1922) existia ainda a liberdade de imprensa e ocorreram eleições para a Assembléia Constituinte, da qual participaram diversos grupos políticos: liberais, socialistas-revolucionários (que, apesar do nome, representavam um grupo com posições similares à da socialdemocracia próximo aos camponeses), mencheviques e demais grupos minoritários nacionalistas. As forças socialistas-revolucionárias, com o voto camponês, conseguiram a maioria, seguidas imediatamente pelos bolcheviques. Com o clima beligerante ainda em vigor, os grupos favoráveis à democracia parlamentar denunciavam a "anarquia proletária" e promoviam manifestações contra o poder dos sovietes. Por fim, o Executivo Pan-Russo dos Sovietes (órgão que congregava todos os conselhos operários e de soldados) propôs à Assembléia Constituinte uma Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, que continha entre outras coisas a nacionalização do solo e dos bancos, o controle operário da produção, decretava a obrigação geral ao trabalho e a formação de um exército. Com a tentativa dos constituintes de prolongar ao máximo os debates sobre tais assuntos, os bolcheviques se retiraram da Assembléia. O serviço de segurança, composto por marinheiros anarquistas próximos aos sovietes, abandonou a sala de sessões. Conforme Serge, "( ... ) seguiram-se votos apressados, textos solenes foram preparados de maneira febrilmente apressada, interrompidos por uma voz ameaçadora vinda das tribunas populares, que soava com toda a clareza e uma grande fúria: 'Chega, chega!"' (pp. 174-175).
O autor vai mostrando que, quanto mais ia se consolidando o poder soviético, maiores eram os desafios a enfrentar: o Tratado de Brest-Litovsk com a Alemanha, que retirou a Rússia da Primeira Guerra, a formação do Exército Vermelho e os combates na Guerra Civil de 1918-1922. O evento que encerra o "Ano 1" foi a frustrada tentativa da Revolução Alemã, que segundo o autor teria ocorrido exatamente pela inexperiência do recém-fundado Partido Comunista, de um lado, e a guinada da socialdemocracia para as forças da ordem: "Um partido comunista muito novo, muito inexperiente, sem quadros ( ... ). A impaciência legítima e a grande coragem pessoal de [Karl] Liebknecht, que temia deixar escapar a hora da ação, a clarividência impotente de Rosa [Luxemburg]. Foi assim que se articularam as causas imediatas da derrota" (p. 444). Esmagada a Revolução Alemã, os bolcheviques russos se viram na iminência de construir o socialismo em um país economicamente atrasado e arrasado pela Primeira Guerra Mundial. Serge descreve ao final os esforços do período conhecido como comunismo de guerra, marco do "Ano II” da revolução.
Temos então neste livro um valioso documento de época que, bem mais do que relatar "objetivamente" os fatos, reconstrói à luz da militância do autor os primeiros passos de uma inédita revolução feita efetivamente a partir das bases da sociedade de classes.
Agnaldo dos Santos é doutor em Sociologia pela FFLCH-USP, membro do Núcleo de Estudos d'O Capital (NEC-PT) de São Paulo.