O final dos anos 70 e o início dos 80 sinalizaram para o Brasil o esgotamento do modelo de desenvolvimento construído a partir dos anos 30 e ainda levado adiante pelo governo Geisel (1974-1978). Não se trata de esgotamento em sentido absoluto, mas do reconhecimento de sua limitação perante a evolução das relações econômicas e políticas internacionais que ganhariam o nome impreciso de globalização. Até essa fase, o Brasil percebia-se como tendo razoável capacidade de inserção autônoma no mundo, podendo tornar-se uma potência, ainda que média. O dissenso concentrava-se nas formas como este objetivo seria alcançado.
A nova realidade enfraqueceu sensivelmente, na sociedade brasileira, a crença no desenvolvimento auto-sustentado e despertou dúvidas sobre a possibilidade de alcançar maior presença internacional no futuro. A redemocratização nos países do Cone Sul e o cenário econômico em que se encontravam fizeram da integração regional uma alternativa para enfrentar os desafios propostos pelo sistema internacional. Essa aproximação teve uma característica até hoje importante não sanada: a debilidade da participação da sociedade e de atores públicos e privados relevantes na integração. Entretanto, não se pode desconhecer, como afirmam alguns diplomatas, que essa lógica de negociação assegurou um importante período de consolidação da cooperação.
A aproximação com a Argentina é para o Brasil, desde 1985, uma estratégia de inserção internacional combinada a um processo de transformações internas visando à estabilidade democrática do sistema político e o seu próprio desenvolvimento econômico. Utilizar as vantagens comparativas entre ambos era uma forma razoável de reduzir os custos do processo de adaptação competitiva. Era também, para o governo Sarney, um instrumento útil para adequar-se às regras do Gatt (Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio), no sentido de abrir suas economias, deixando para trás décadas de protecionismo. A integração permitia essa adaptação sem romper com a política de impulsionar a competitividade e a inserção internacional: o desenvolvimento por meio de um mercado interno ampliado continuou sendo uma perspectiva.
Há uma diferença substancial no entendimento brasileiro dos acordos com a Argentina, inicialmente, e com o Uruguai e o Paraguai, depois, para a constituição do Mercosul, em relação às negociações para a criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Ela reside na existência de uma relação razoavelmente equilibrada em termos de poder no Cone Sul. No caso do Uruguai e do Paraguai, não há esse equilíbrio no tocante às dimensões dos países, mas ele existe quando consideramos o nível de desenvolvimento. Argentina e Brasil são países de dimensões médias, com economias relativamente pobres e desenvolvimento análogo para os padrões internacionais.
A estratégia de integração foi acertada e benéfica para o Brasil, assim como para os demais membros do Mercosul, mesmo considerando-se os descontentamentos surgidos. O comércio intrabloco aumentou significativamente e de forma contínua até 1998, chegando a 20 bilhões de dólares, quando em 1990 havia sido de 2 bilhões, sofrendo abalos como conseqüência das mudanças da política cambial brasileira em 1999. O Mercosul teve papel central no desenvolvimento da região, mesmo quando seus benefícios tenham tido distribuição heterogênea e com impactos setoriais diferenciados.
No caso europeu, a atual união, no momento inicial, foi construída entre países relativamente homogêneos nos campos econômico e social, incorporando em seguida nações com desenvolvimento inferior (Portugal, Grécia), dentro de uma perspectiva de equiparação, estabelecendo-se políticas e fundos compensatórios de grande significado, assim como um horizonte de longo prazo de patamares sociais e trabalhistas similares.
No caso do Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte), a área de livre comércio é constituída por países de nível econômico, de estruturas políticas e de culturas muito diferentes. O relativo êxito da experiência deve-se a razões econômicas: ampla complementaridade das economias, em que aproximadamente 80% do comércio exterior do Canadá e do México estão voltados para os EUA; o fluxo de capitais e de tecnologia entre eles também é muito alto, assim como a integração empresarial e das cadeias produtivas; ao que devem ser acrescentadas razões políticas e sociais de forte impacto, sobretudo a questão das migrações e a necessidade, para os EUA, de fortalecer-se frente à competitividade dos outros países da OCDE.
O caso do Mercosul é intermediário entre essas duas experiências. Um processo de integração entre países de nível relativamente semelhante viabilizou a sobrevivência e, em alguns casos, o fortalecimento de setores produtivos que a globalização e o desgravamento tarifário unilateral ou acordado no quadro da OMC (Organização Mundial do Comércio) teria inviabilizado definitivamente. Seria o caso de alguns setores que, no Brasil, produzem bens de capital.
Nas economias capitalistas, a alocação de recursos e a estratégia das empresas dependem dos interesses privados, determinados pela realização do lucro. Com a globalização, o mercado local continua muito importante, mas quando articulado com o global. Dessa forma, a possibilidade de participar das cadeias produtivas e os investimentos dependem do interesse das empresas, mas também da capacidade dos governos e da sociedade de induzir a produção nacional ou regional, de forma a incorporar tecnologia e a produzir bens sofisticados.
Se a lógica empresarial é essa, a existência de um projeto nacional com políticas de desenvolvimento econômico e social torna-se ainda mais relevante que no passado. A compreensão desse ponto é fundamental para entendermos as diferenças entre a integração do Mercosul e a da Alca. Não se trata de contrapor essas duas perspectivas, os interesses das empresas e o projeto nacional, mas de reconhecer que o mercado, atuando livremente, de acordo com sua própria lógica, não tende a igualar possibilidades e vantagens, acumulando poder ao redor dos que já possuem a capacidade para isso. A ação indutora dos governos pode e deve ter um papel de grande importância. Não é apenas poder regulamentador e de controle, como apregoam alguns liberais, mas de uma ação concreta, que deveria ser o resultado da vontade política, no sentido de atribuir ao Estado capacidade para promoção do crescimento.
Ao existir um processo de integração que se propõe ir além da lógica do livre comércio, como o Mercosul, alguns objetivos concretos e algumas ações dos Estados deveriam ser levadas adiante por meio de mecanismos supranacionais ou, se isso não for desejado e possível, por ações intergovernamentais coordenadas, partindo do pressuposto de que o interesse de um dos parceiros reflete o interesse nacional de todos. Também aqui temos uma diferença essencial entre o que poderia ser o Mercosul e a Alca.
No caso dos países que integram o Mercosul, a partir de 1990, quando os governos Menem e Collor promoveram a ampla abertura comercial, a capacidade dos Estados de utilizar o bloco para fortalecer políticas de desenvolvimento pareceu enfraquecer-se, situação que permanece depois de uma década. Provavelmente, as dificuldades ocorridas nos anos 90 nas relações entre os países do Mercosul, ainda não resolvidas, tenham a ver com a crença de que o fim do protecionismo, as privatizações e o incentivo à entrada de capitais poderiam resolver por si sós as debilidades nacionais e os desequilíbrios sociais existentes, sem necessidade de políticas públicas adequadas. Ficou debilitada a ação dos Estados, nacional e regional, que poderiam ter encontrado os meios para atenuar prejuízos com ações de apoio ao desenvolvimento, à modernização e com políticas industriais. A integração regional foi especificamente utilizada como mecanismo de aceleração da abertura, postura visível na discussão das diretrizes para o estabelecimento da Tarifa Externa Comum (TEC), sobretudo nos meses antes da assinatura do Protocolo de Ouro Preto, em 1994.
É certo que as características do Mercosul, sobretudo o fato de ser integrado por países relativamente pobres, com fortes desequilíbrios macroeconômicos, dificultam a criação de fundos para o desenvolvimento regional e a alocação de recursos para resolver situações de perdas setoriais. Mesmo assim, a perspectiva de funcionamento de um mercado regional coloca em tese essa possibilidade, que é muito importante. Exatamente a idéia de um mercado regional sugere a construção de instrumentos de apoio à produção, de forma a estimular, por meio de incentivos positivos, a própria integração. Por não existirem políticas públicas adequadas, os grupos negativamente afetados acabam ganhando um peso desproporcional àquele que efetivamente possuem no plano econômico e político. Ao mesmo tempo, os interesses estratégicos, a continuidade territorial, a parcial percepção de semelhanças nas formas de inserção internacional, os interesses e os ganhos econômicos consolidados seriam todos fatores favoráveis à consolidação do Mercosul. Nenhum desses elementos está presente nas negociações da Alca, muito menos estão em debate políticas de apoio ao desenvolvimento. Nestas negociações, a questão central para os países latino-americanos, com exceção do México, que está ligado aos EUA por meio de uma área de livre comércio, é o possível acesso ao mercado norte-americano. O maior e o mais dinâmico do mundo. Este não é um objetivo desprezível e que possa ser tratado com indiferença. Daí a importância de sua compreensão.
Recrudescimento das tensões
Desde o início dos anos 90, depois que o presidente Bush lançou a chamada "Iniciativa para as Américas", os países da região tiveram que levar em conta essa proposta nas suas estratégias de inserção internacional. Para o Brasil, essa iniciativa representou um estímulo para o fortalecimento da cooperação com a Argentina. A existência do Mercosul permitiu a seus membros dialogar com os EUA em situação razoavelmente favorável. O Acordo 4 + 1, conhecido como o Acordo do Jardim das Rosas, de junho de 1991, viabilizou um quadro de referência aceitável para todos os envolvidos nas negociações que se desenrolariam a partir daí e que, em dezembro de 1994, durante a reunião presidencial em Miami, transformou-se nas tratativas para a criação da Alca.
Naquela ocasião, os quatro países do Mercosul conseguiram estabelecer o princípio da negociação em bloco, contrariando a preferência norte-americana por negociações bilaterais. Este mesmo posicionamento tem o Mercosul hoje nas discussões sobre a Alca, ainda que essa posição esteja debilitada pela divergência de interesses entre os quatro países e sobretudo pela capacidade de atração exercida pelos EUA.
A partir de janeiro de 1995, os países do Mercosul enfrentaram reiteradas dificuldades que inviabilizaram alguns dos objetivos do Tratado de Assunção e do Protocolo de Ouro Preto. Pode-se afirmar que sucessivas tensões, sobretudo nas relações entre Argentina e Brasil, vêm dificultando a passagem de uma área de livre comércio para uma união alfandegária plena, decisiva para alcançar em seguida a fase de mercado comum. A questão da Alca não é de menor importância neste debate. As controvérsias entre os países quase sempre podem ser atribuídas a razões particulares, a interesses setoriais e às relações com outros países ou blocos. Mas uma análise mais acurada sugere que por trás dessas controvérsias há nas elites desses países percepções diferentes de inserção no mundo e da própria política de desenvolvimento.
A tradição brasileira de universalismo e de autonomia, de global trader, acabou pesando para preservar uma política de resistência às investidas dos EUA para acelerar as negociações da Alca. Também levou à manutenção de posições francamente divergentes em temas importantes: agricultura, barreiras não alfandegárias e acesso a mercados, utilização dos mecanismos antidumping etc. Ao mesmo tempo, a posição brasileira pareceu aos parceiros regionais, cujos governos aparentemente estariam menos comprometidos com o Mercosul, como sendo a de um país preocupado com a imagem de autonomia frente aos EUA e, ao mesmo tempo, com certo desinteresse pela integração, levando a uma espiral de contradições de difícil controle, especialmente após janeiro de 1999,quando o Brasil desvalorizou sua moeda, em flagrante contradição com a política argentina que desde 1990 havia optado pela paridade fixa.
O recrudescimento das tensões comerciais entre Argentina e Brasil coincidiu com o término do regime de adequação em janeiro de 1999. Alguns diferenciais de competitividade vieram à tona, tendo como causa não apenas as políticas macroeconômicas, mas a defasagem tecnológica de empresas e setores. A partir da reunião de Miami, de dezembro de 1994, o ritmo alcançado pelas negociações para a constituição da Alca acabou também incidindo sobre o próprio processo de integração do Cone Sul, levando a novas interrogações para esses países. Uma das dificuldades brasileiras está no debilitamento da frente regional. Se esta fosse mantida, um certo equilíbrio poderia ser estabelecido, de forma a garantir negociações em que os interesses de todos os países pudessem pesar.
Novos problemas
Neste contexto devem ser compreendidos os problemas que enfrentam o Mercosul e o Brasil nas negociações da Alca. Seus resultados poderão ser desfavoráveis para a economia e a sociedade brasileiras, enfraquecendo possibilidades de políticas de desenvolvimento. Mesmo no caso dos EUA fazerem concessões setoriais importantes, como algumas feitas no caso mexicano, dificilmente a Alca trará possibilidades de fortalecimento de setores de ponta da economia. As análises sobre a Alca não podem ignorar a disparidade entre a economia norte-americana e as dos demais países do continente. As diferenças não representam por si óbices intransponíveis para a constituição de blocos econômicos. A capacidade de atração de um país poderia ser estímulo para o desencadeamento de mecanismos de integração. Essa pode ser alcançada por meio dos mecanismos da hegemonia ou por meio da adequação a regras cooperativas que estabeleçam certos níveis de igualdade e garantias. No entanto, a não introdução de mecanismos formais que garantam equilíbrio e eqüidade torna a relação cooperativa não apenas desigual, mas extremamente favorável ao país mais poderoso. Não se trata de rigidez na análise, mas o fruto do próprio processo de negociação. Ao insistir-se sobre barreiras alfandegárias sem a discussão das barreiras não tarifárias, o terreno de debate é deslocado para tornar-se vantajoso para quem tem no momento inicial tarifas menores. Ao não se aceitar o princípio da adequação da legislação nacional de acordo com o concordado, reproduz-se a assimetria.
A falta de estudos detalhados no Brasil sobre os impactos da Alca dificulta a verificação de suas conseqüências e seus benefícios. A lógica cooperativa sugere que todos os envolvidos obtenham resultados favoráveis em sentido absoluto e, ao mesmo tempo, que as vantagens sejam distribuídas com certo equilíbrio de proporções. No caso de grande diferença de poder, a cooperação pode levar à ampliação do desequilíbrio, ampliando possibilidades de riscos e de perdas.
Na América Latina, além de uma distribuição de riqueza em termos regionais e sociais muito desigual, a renda não é suficiente para estimular políticas de investimento importantes. Assim, se nas negociações da Alca não forem introduzidos mecanismos que estimulem políticas de desenvolvimento, a partir do fortalecimento dos organismos nacionais e regionais de fomento, o mercado continental livre de fronteira pode levar à concentração dos investimentos nas áreas de maior potencial de consumo, aonde a redução de custos se obtém pela escala da produção e pela absorção de novas tecnologias de forma mais rápida.
Ao mesmo tempo, deve-se considerar a importância relativa do mercado norte-americano para os países latino-americanos. Os EUA apresentam, desde 1990, uma economia em expansão. Isto estimula o interesse na possibilidade de acesso a esse mercado. Um pequeno aumento nas exportações para esse país de produtos desses países, decorrente da criação da Alca, poderia estimular alguns setores importantes, mas pouco alteraria os parâmetros das relações econômicas internacionais dos EUA. A relação com essa nação, portanto, não pode ser medida pela importância do comércio bilateral. Seu significado reside nas possibilidades dinâmicas, que são reais e constituem um fator de convergência de interesses e de eventual fortalecimento de setores, na América Latina, favoráveis à Alca.
Como parece ter-se tornado visível no decorrer das reuniões dos grupos negociadores da Alca, o objetivo de garantir o acesso preferencial aos mercados por meio de eliminação de tarifas pode ganhar a característica de rebaixamento unilateral, já que as norte-americanas são tradicionalmente menores que as praticadas pelos países latino-americanos. Outra questão importante é que muitos itens da pauta desses grupos implicam mudanças substanciais nas leis de alguns países, em particular as brasileiras, enquanto os EUA alegam não ser necessária qualquer modificação de sua própria legislação. Boa parte das dificuldades surgidas resulta exatamente da resistência desse país em aceitar o princípio da igualdade para todos no que tange à adequação da legislação. É isso que sucede na discussão das regras comuns de aplicação de medidas antidumping.
As resistências do Brasil em relação à Alca justificam-se pelo seu receio quanto aos impactos desta sobre seu parque industrial. Um dos objetivos principais dos representantes brasileiros nos grupos de trabalho tem sido alcançar a eliminação das barreiras não-tarifárias impostas aos seus produtos pelos EUA, de forma a garantir competitividade de acordo com as regras de mercado. A acentuada preocupação do Brasil pela viabilização da entrada de produtos primários, semimanufaturados ou industriais de baixo valor agregado, certamente necessária, corre o risco de levar ao enfraquecimento das ações que viabilizariam políticas de desenvolvimento e, em particular, daquelas destinadas à inovação tecnológica e à criação de áreas competitivas por meio da produção de bens de alto valor agregado.
A possibilidade de obter alguns benefícios poderá ter como moeda de troca concessões em setores que a longo prazo são estratégicos para o Brasil, como poderia ser a plena abertura do setor de serviços. O possível enfraquecimento da posição brasileira, neste caso, pode ser atribuído a três ordens de motivos: 1) relações de poder assimétricas; 2) dificuldade na consolidação de uma posição do Mercosul; 3) fraqueza das políticas estatais de desenvolvimento e industriais. Se a essas debilidades acrescentarmos o insuficiente debate nacional, no plano político e no social, dos impactos da Alca, compreenderemos o risco apontado: concentração de esforços em áreas que poderão ser beneficiadas e menor capacidade de defesa em setores vitais a longo prazo, ainda que sem capacidade de pesar na negociação. Quer dizer, nos defrontamos com o risco de que a capacidade de pressão setorial e algumas concessões dos Estados Unidos sejam suficientes para deixar de lado interesses de longo prazo.
A proposta de criação da Alca foi feita pelos EUA durante a Primeira Cúpula das Américas, em Miami, em dezembro de 1994. O compromisso assumido pelos governos foi de finalizar até 2005 as negociações para o estabelecimento de uma área de livre comércio hemisférica. Foram criados os grupos de trabalho encarregados de tratar das questões técnicas e do levantamento de informações para as negociações. A supervisão geral das negociações é de responsabilidade dos ministros de comércio de cada país (no Brasil é do ministério das Relações Exteriores), que se reúnem no mínimo a cada dezoito meses. As negociações são conduzidas pelo Comitê de Negociações Comerciais, composto pelos vice-ministros de comércio, ou pelo subsecretário geral de Assuntos de Integração, Econômicos e de Comércio Exterior do Brasil, por meio dos grupos negociadores. Atualmente estes são nove e tratam dos seguintes temas: acesso a mercados; investimentos; serviços; compras governamentais; solução de controvérsias; agricultura; direitos de propriedade intelectual; direitos compensatórios e de antidumping; políticas de competição.
Há divergências entre a posição brasileira e a norte-americana em relação a esses temas. O Brasil quer rever os acordos sobre investimentos assinados no âmbito da OMC, enquanto os EUA são contrários. A situação se inverte no caso dos direitos de propriedade intelectual, em que os EUA querem uma ampliação em relação ao que existe na OMC. Outras questões assumem um caráter estratégico para o Brasil, como a agricultura. Embora o principal destino das exportações agrícolas brasileiras e argentinas seja a Europa, a inclusão da negociação sobre a eliminação de subsídios nessa área no âmbito da Alca poderia ter reflexos nas negociações da chamada Rodada do Milênio da OMC, aumentando a pressão sobre a União Européia para aceitar a inclusão do tema dos subsídios e da política agrícola.
As negociações em curso, que provavelmente ganharão novas definições nas reuniões de abril de 2001 (ministerial em Buenos Aires e de chefes de Estado em Quebec), visam estabelecer as regras para o funcionamento da Alca, com prazo definido para seu início a partir de 2005. Nessa data deveria constituir-se uma zona de livre-comércio continental, na qual seriam realizadas reduções tarifárias ao longo do tempo, buscando chegar à tarifa zero. A redução total pode levar décadas para completar-se, o que não é incompatível com uma área com essas características. O Nafta, criado em 1993, terá as tarifas reduzidas a zero somente em 2010. O mesmo ocorre com o Mercosul, constituído em 1991, no qual Paraguai e Uruguai manterão tarifas mais elevadas até 2006, além dos casos em que ainda não há acordo, como o do açúcar. Decidiu-se que a criação da Alca se iniciará apenas se as negociações forem encerradas com êxito, o princípio do single undertaking. Isto poderia favorecer a capacidade de barganha dos países menos poderosos, ao conceder-lhes, em princípio, certo poder de veto.
Conclusões
No final dos anos 70 e na primeira metade dos 80, o debate internacional referia-se às possíveis interpretações do declínio norte-americano, em virtude das concorrências japonesa e alemã, e as formas de evitá-lo. Ao mesmo tempo, a perestroika e a glasnost sinalizavam o declínio soviético. Nestas condições, o Brasil e a Argentina buscaram novas formas de inserção no mundo em mudança, o que transformou suas relações conflitivas em cooperativas, desembocando no Mercosul. Essa mudança pode ser atribuída, em parte, à crise pela qual passava a economia norte-americana. De forma inteiramente diferente, no final da década de 90 e início do século XXI, contudo, a recuperação desse país parece inquestionável.
A Iniciativa para as Américas, no início dos anos 90, foi uma estratégia voltada para a consolidação da posição dos EUA num contexto de imprevisibilidade, garantindo padrões de influência num momento de reorganização sistêmica. Não se tratava, ao menos na América Latina, de uma nova configuração das alianças, mas de assegurar capacidade de manobra num mundo em transformação. O Brasil mostrou-se reticente em relação a essa proposta, especialmente com seu desdobramento: a Alca.
O Mercosul não é considerado pelos EUA como a melhor opção para os países que o integram, posição manifestada ao longo de todos os anos 90, inclusive no período final da administração Clinton. Por outro lado, o Brasil busca manter sua autonomia, mas mantendo-se preocupado com os riscos de um isolamento internacional. Aparentemente, as dúvidas quanto ao significado que continuaria a ter o Mercosul e sua capacidade de barganha eliminaram, para o Brasil, a possibilidade de uma alternativa às negociações da Alca. Contudo, a experiência com outras negociações internacionais vem fortalecendo a convicção de que a própria idéia de Alca não deve ser considerada como irreversível, considerando-se o dissenso existente em relação aos pontos considerados inegociáveis. Este dissenso indica que o ponto de não retorno ainda não foi alcançado.
Para fortalecer sua posição, no entanto, o Brasil não pode concentrar sua estratégia apenas no Mercosul. A sociedade e o Parlamento deveriam participar ativamente do debate, minimizando os riscos de debilidade negociadora ao possibilitar uma maior popularização das discussões sobre a integração hemisférica. A Aliança Social Continental e, no Brasil, a Rede Brasileira Pela Integração dos Povos podem ter um papel importante. Uma aliança com razoável articulação internacional asseguraria a possibilidade de intercâmbio e de exigência aos governos não só de maior transparência nas negociações mas, sobretudo, de incorporação de uma agenda menos comercial. Isto só pode se dar se a questão do desenvolvimento for considerada prioritária, o que implica meios do Estado aptos a modificar a lógica do mercado que concentra riqueza e poder. No plano internacional colocam-se questões semelhantes. A Alca, ao ter como objetivo uma área de livre comércio entre Estados tão diferentes, ao não ter mecanismos que prevejam ações de justiça e eqüidade, acabará por reforçar a tendência à concentração de riqueza e de poder.
Tullo Vigevani é professor na Unesp e pesquisador no Cedec.
Karina L. Pasquariello Mariano é doutora pela Unicamp e pesquisadora do Cedec.
Marcelo Passini Mariano é doutorando pela Unesp e pesquisador do Cedec.