Economia

A acentuada concorrência internacional, a debilitação da capacidade dos Estados e a intensa desregulamentação do capitalismo, neste fim de século, têm levado a economia mundial em direção a uma crescente desordem e anarquia

Alguma coisa está fora da ordem,
fora da nova ordem mundial

Caetano Veloso

O que ocorreu nas últimas décadas na economia mundial e que convencionou-se chamar de processo de globalização foi, na verdade, muito mais profundo e transformador do que este conceito, aparentemente anódino e desideologizado, deixou transparecer.

Tratou-se de uma intensa transformação da ordem econômica mundial, das formas organizadas e das estruturas que sustentaram o capitalismo do pós-guerra, com as economias nacionais articuladas em torno de um Estado regulador e voltado ao bem-estar social ou de um Estado desenvolvimentista. Ao capitalismo organizado do pós-guerra sobreveio sua desarticulação e ruptura. A acentuada concorrência internacional, a debilitação da capacidade de decisão dos Estados e a intensa desregulamentação do capitalismo, neste fim de século, têm levado a economia mundial em direção a uma crescente desordem e anarquia.

Este movimento de modernização conservadora1 resultou em mudanças estruturais, tecnológicas, produtivas e organizacionais, em meio ao colapso da velha ordem econômica internacional e das instituições que articulavam os diferentes Estados e interesses nacionais. Estas transformações da estrutura do capitalismo favoreceram a maior instabilidade econômica, a ampliação, inusitada para os padrões do capitalismo do século XX, das inseguranças do mundo do trabalho (desemprego, subemprego, exclusão social e concentração da renda)2, e a financeirização com crescente dependência de fluxos internacionais de capitais, agora ainda mais voláteis e atomizados do que na época da crise da dívida3.

Este mesmo processo, com a ampliação das incertezas e a repetição de sobressaltos financeiros e cambiais, e as particulares condições da economia e da sociedade brasileira (economia continental, que foi muito longe no processo de industrialização, com elevada heterogeneidade estrutural e níveis de desigualdade e miséria extraordinários), criou e recriou no Brasil uma situação inédita na América Latina.

Nos anos recentes, a história parece repetir-se no Brasil, recolocando sob forma diferente o mesmo dilema: como assegurar democraticamente a inserção de uma complexa economia industrial e urbana, cujo modelo desenvolvimentista está em crise e precisa rearticular-se, garantindo amplo acesso à cidadania, em condições de ampliação da concorrência e da desordem econômica internacional deste final de século?

Como em todo continente latino-americano, também no Brasil, ao longo dos últimos quinze anos, em três momentos distintos (1984, 1989 e 1994), tornaram-se vitoriosas forças comprometidas com a integração passiva e subordinada a este processo de liberalização. No entanto, ao contrário de outros países latino-americanos, que implementaram até as últimas conseqüências estas políticas, no Brasil criaram-se resistências e boqueou-se a efetivação do projeto liberal em 1984 e 1989, e, contraditoriamente, favoreceu-se a ampliação das forças sociais que buscavam uma integração soberana e negociada nacionalmente.

Neste sentido, apesar das sucessivas vitórias eleitorais comprometidas com aquela subordinação, o Brasil tornou-se o país latino-americano que mais resistiu à avalanche neoliberal, dificultando sua plena implementação, evitando alguns de seus efeitos sobre a estrutura da economia e da sociedade.

É evidente que estas resistências foram pouco articuladas e que outros efeitos - como a elevação dos patamares inflacionários, a relativa estagnação produtiva e tecnológica e um Estado em crescentes dificuldades de financiamento e investimento - avolumaram-se ao longo dos anos.

Em 1984, a derrota do movimento pelas eleições diretas para presidente da República e a posse de Sarney pareciam assegurar a aliança de forças conservadoras necessárias à transição democrática controlada e à inserção subordinada. No entanto, a intensificação do processo inflacionário e a crise da dívida, que se fazia sentir desde a extraordinária elevação das taxas de juros internacionais do início da década, agravada com o colapso mexicano de 1982, empurraram momentaneamente o governo Sarney para a experiência heterodoxa e incompleta do Cruzado e para a moratória técnica dos pagamentos aos credores internacionais. A ampliação das contradições internas à Aliança Democrática e a crescente paralisia do governo favoreceram, contraditoriamente, o esgotamento do Plano Cruzado e o adiamento da implementação do projeto conservador e liberal, embora não se consolidassem as forças sociais indispensáveis a um projeto nacional alternativo.

Em 1989, Collor anunciou com alarde o "derradeiro tiro na inflação" e a passagem "tranqüila" ao Primeiro Mundo. Afinal, o governo brasileiro aceitava cumprir plenamente a agenda da inserção passiva e do ajuste neoliberal4 "indispensáveis à modernização do país", com tudo o que isto pudesse significar: privatizações selvagens, abertura comercial indiscriminada, desregulamentações dos mercados cambial, financeiro e do trabalho etc. O país não suportou a continuidade do governo Collor, apesar da situação internacional relativamente favorável, com a crescente apologia do "liberalismo vencedor" e do "fim da história", com taxas de juros bastante baixas entre 1990 e início de 1994, com uma maior disponibilidade de recursos financeiros e seu deslocamento para os países emergentes, que apresentavam alternativas mais rentáveis. Se, por um lado, o processo de impeachment de Collor reduziu o ímpeto liberalizante inicial, por outro, novamente fortaleceu as forças que desde o início estiveram comprometidas com a CPI e com os anseios moralizadores da população.

Depois de um breve momento de oscilações no início do governo Itamar, em resposta ao extraordinário crescimento da candidatura Lula, constituiu-se, a partir deste próprio governo, um reciclado bloco de forças políticas que reagruparia os setores conservadores do país (PFL, PTB, PP e parcelas do PMDB, PPR e outros partidos menores) em torno do ministro Fernando Henrique Cardoso e de seu partido o PSDB, de veleidades social-democratas.

Pressionado pela candidatura das oposições, pelo crescente descontrole dos preços e pela necessidade de fortalecer a candidatura oficial, o governo se lança em mais uma tentativa de estabilização (Plano Real). Desta vez, as autoridades econômicas propõem-se a seguir (com o devido jeitinho brasileiro) as experiências dolarizantes do México e da Argentina5. A adesão ao Real foi rápida e emocional, descartando-se maiores reflexões sobre a eficácia do plano e suas conseqüências futuras. O forte esquema de mídia da candidatura oficial amplificou e consolidou as emoções, condicionando o eleitor a considerar as críticas ao Plano obra dos inimigos do Real e ameaça aos justos anseios de estabilização da população.

Com o Plano, o país reingressou no caminho da subordinação passiva e antinacional às recomendações do Consenso de Washington. Embora impedidos pela conjuntura eleitoral de efetivar uma dolarização plena, a estratégia adotada reprimiu a inflação através da valorização do câmbio, da abertura indiscriminada das importações, alicerçadas nas extraordinárias reservas até então disponíveis e na eventual entrada de capitais. Chegou-se irresponsavelmente a permitir a valorização nominal do real, favorecer de todas as maneiras o consumo de importados (inclusive através dos Correios) e admitir um superdéficit em transações correntes para 1995.

No entanto, nem bem os votos tinham sido contados e o que apresentou-se ao país como alternativa revelou-se sem a mínima condição de sustentação no longo prazo, mostrando tratar-se, efetivamente, "de uma bomba de efeito retardado", com conseqüências deletérias crescentes sobre as contas externas e a estrutura produtiva nacional, embora seus objetivos de estabilização monetária e eleitoreiros de curto prazo tenham sido alcançados. As críticas da oposição à ancoragem cambial e à abertura comercial descontrolada, que até então eram veiculadas pela mídia apenas como "frustradas tentativas de um candidato comprometido com a inflação e que visariam romper a unanimidade em torno do Plano Real"6, tomam novo, impulso com a crise cambial mexicana.

Desde o início de seus processos de estabilização, as economias do México e da Argentina foram consideradas pelos porta-vozes do Consenso de Washington, pelos jornalistas econômicos dos principais jornais nacionais e pelas últimas equipes econômicas como exemplares e paradigmáticas. Afinal, "não existiria outra saída"7 às economias emergentes e inflacionárias, senão sua plena subordinação às reformas estruturais recomendadas pelos países centrais e pelos organismos financeiros internacionais.

No México, a persistente valorização da taxa real de câmbio em meio à liberalização e ampla desregulamentação dos mercados de câmbio deixaram economia ainda mais vulnerável, sobretudo por não deter mais em suas mãos quaisquer mecanismos de controle ou monitoramento sobre os fluxos de recursos cambiais. Nestas condições, com um crescente déficit em conta corrente e com a administração conservadora das taxas de juros pelo FED norte-americano, iniciou-se uma forte corrida contra o peso, cujas conseqüências sobre a economia mexicana e sobre os mercados emergentes apenas iniciaram.

Se o México, com todo apoio norte-americano, foi obrigado a desvalorizar sua moeda e arcar com a conseqüente explosão de preços, a Argentina endividada em dólares tenta de todas as maneiras empurrar com a barriga seus desajustes externos até as eleições de meados de maio deste ano. Para tentar evitar a desvalorização da moeda e alcançar a reeleição de seu presidente, o ministro Cavallo resolveu aprofundar ainda mais o processo de dolarização tornando o peso, na prática, uma moeda utilizada exclusivamente para pagar salários e impostos e reforçando seus mecanismos de conversibilidade. Com este expediente, o governo argentino não tem conseguido estancar a crise de confiança que os investidores têm demonstrado, e, por mais que protelem, estão sujeitos a seguir a rota mexicana: desvalorizar abruptamente o peso, com efeitos suplementares sobre uma economia profundamente endividada em dólares, arcar com as conseqüências recessivas nefastas que a inevitável contração do crédito já está tendo sobre os sistemas financeiro e empresarial, ou, ainda, cumprir as ameaças do ministro Cavallo de terminar de vez com a soberania monetária argentina, eliminando o peso e tornando o dólar moeda nacional.

O possível agravamento da situação argentina, após as eleições de maio, terá efeitos mais rápidos e diretos sobre a economia brasileira que aqueles verificados inicialmente a partir da crise mexicana. Por um lado, acelerar-se-a a crise de confiança, ampliando a saída de investidores internacionais. Por outro, dada a avançada integração entre as economias argentina e brasileira, devido ao Mercosul, uma débâcle porteña poderá ter também efeitos nocivos suplementares sobre as exportações brasileiras e sobre o déficit das balanças comercial e de transações correntes.

Os desdobramentos da nova conjuntura internacional são ainda desconhecidos em sua totalidade e seus efeitos de mais longo prazo sobre a economia brasileira são ainda impossíveis de dimensionar acuradamente. Em meio ao vendaval de incertezas e de instabilidade monetária presentes e às dificuldades internas causadas pelas políticas até agora adotadas, o governo FHC parece paralisado.

Sabe-se que a equipe econômica brasileira pretendia fazer um ajuste mais rápido que o mexicano ou argentino, assegurando a valorização cambial, as altas taxas de juros, o déficit em transações correntes e a atração dos capitais especulativos de curto prazo. Isto feito, retomar-se-iam as reformas estruturais, objetivo maior do Consenso de Washington e da aliança conservadora que levou FHC ao governo, destinadas a propiciar a transferência maciça de patrimônio público para grandes grupos privados internacionalizados e supostamente favorecer um novo ajuste fiscal8.

Depois da explosão mexicana e dos incompletos, mas já consideráveis desdobramentos da crise que se seguiu, o governo, embora recuando em algumas medidas (alíquotas de importação de automóveis, favorecimento das exportações, implantação de uma faixa de variação cambial), para ver como fica, auxiliado pelo fato do país estar no início do processo e ainda ter significativas reservas cambiais. Paralisado, tenta, por um lado, aparentar tranqüilidade e fazer parecer que a crise em curso é menor do que efetivamente é. Por outro, busca retomar agora as chamadas reformas constitucionais, como se estas ou sua ausência fossem responsáveis pelos problemas enfrentados pelo Plano Real ou pelas dificuldades do Tesouro: deterioração das políticas sociais e da capacidade de financiamento e investimento do setor público, causadas por sua própria paralisia e insistência em políticas irresponsáveis de juros, câmbio e endividamento. Relembremos a experiência mexicana. Este país seguiu o mesmo ideário, reduziu seu setor público, através de privatizações massivas, eliminou o déficit há vários anos e, apesar disto, enfrentou uma crise cambial sem precedentes9.

A continuidade da atual paralisia seria, sem dúvida, um péssimo cenário - ainda que não o mais improvável -, com conseqüências desastrosas no médio prazo sobre o processo de estabilização, sobre nossas contas externas, sobre o parque produtivo instalado no país e sobre o agravamento da desigualdade e da exclusão social, dificultando qualquer saída mais gradual e negociada da encalacrada situação resultante da aceitação irresponsável das recomendações do FMI e do Consenso de Washington pelo governo. A saída tardia desta paralisia, sobretudo se realizada depois da possível quebradeira argentina, pode gerar tanto uma crise semelhante, ou mais grave que a mas agravada da crise mexicana, quanto uma reedição do governo Sarney, preso em suas contradições e incapaz de articular reformas e definir democraticamente uma solução para a crise.

Parece pouco provável a implantação de uma política que, frente ao reconhecimento da gravidade da situação, chamasse os diferentes agentes sociais e econômicos para buscar uma solução gradual e anunciada do câmbio, articulada a um projeto nacional de desenvolvimento, capaz de fazer frente aos extraordinários desafios colocados à economia e sociedade brasileiras e organizar democraticamente nosso ingresso no século XXI, tendo em vista a aliança tão conservadora, quanto heterogênea, que assegurou a vitória de FHC, sustenta o governo e detém cada vez maiores parcelas dos poderes Executivo e Legislativo.

Ao governo FHC faltam bases sociais e políticas interessadas na definição de uma agenda nacional. Para isso, seriam necessárias propostas urgentes, claras e articuladas de saídas da crise, visando preservar a estabilidade e abrir horizontes para o investimento público e privado sobre a base de alguns princípios:

1) Os investimentos públicos e privados não podem seguir dependentes dos movimentos especulativos do capital financeiro internacional;

2) Qualquer sociedade democrática tem na justiça fiscal e tributária (iniciando-se esta pelo efetivo combate à evasão e sonegação) a pedra basilar de quaisquer políticas redistributivas beneficiando os mais pobres e os excluídos da produção, consumo e cidadania;

3) O crescimento sustentado supõe a garantia de crédito de longo prazo e juros compatíveis para o investimento produtivo, o que implica, nas condições nacional e internacional de hoje, estabelecer fundos compulsórios de poupança.

A insistência no projeto neoliberal levará necessariamente ao agravamento das já deterioradas condições econômicas e sociais da nação brasileira, dificultando ainda mais a constituição das forças sociais interessadas em um novo projeto nacional. Em contrapartida, a manutenção da paralisia favorece a reedição de 1984 e 1989, quando o Brasil conseguiu frear o neoliberalismo, mas não obteve êxito em constituir um projeto capaz de cimentar um novo ciclo de crescimento. Teria o Brasil fôlego para esperar até 1998 e somente então, novamente, tentarmos encerrar este longo processo de transição, dando lugar a um novo padrão de desenvolvimento e a uma sociedade mais democrática, justa e solidária?

Jorge Eduardo Levi Mattoso é professor do Instituto de Economia da Unicamp e Diretor Executivo do Cesit.