Mundo do Trabalho

Livros de Ricardo Antunes e Jorge Mattoso abordam o impacto da tecnologia na vida dos trabalhadores

Há duas décadas, fala-se com arrebatamento da busca de uma matriz energética menos dependente do petróleo; da substituição de antigos insumos por novos materiais, como a fibra ótica; do desenvolvimento da biotecnologia e da invenção de plantas e animais transgênicos; e sobretudo dos saltos na microeletrônica, na informática, nas telecomunicações, na automação e na robotização. O entusiasmo é compreensível: essas novas tecnologias, impelidas por uma competição mais acirrada no mercado globalizado e associadas a novas técnicas gerenciais e à reformulação da linha de montagem e dos escritórios das fábricas, deflagraram uma terceira revolução industrial destinada a mudar a cara do planeta no final do século XX e início do seguinte, assim como a Primeira Revolução Industrial garantiu a emergência das sociedades capitalistas em meados do século XVIII e a segunda acelerou a passagem do capitalismo concorrencial ao capitalismo dos oligopólios no final do século XIX.

Exalta-se o indiscutível potencial dessas mudanças tecnológicas e organizacionais para aumentar a riqueza do mundo, livrar a humanidade de trabalhos repetitivos e extenuantes e aproximar povos e culturas. Não se presta a mesma atenção nas conseqüências sociais que estão espalhando, como o aumento do desemprego permanente, a desarticulação do mercado formal de trabalho e o alargamento do fosso entre os países avançados e a maioria das nações periféricas. E nesta face negligenciada da nova modernização conservadora que se concentram duas teses defendidas na Unicamp e agora transformadas em livros: do economista Jorge Mattoso, A Desordem do Trabalho, e do sociólogo Ricardo Antunes, Adeus ao Trabalho? - Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho.

Apesar de baseados em trabalhos acadêmicos, os livros fluem sem excesso de estatísticas ou de termos técnicos e coincidem na descrição da maioria das mudanças tecnológicas e organizativas. Contrapõem-se nas saídas que vislumbram: Mattoso, insistindo na possibilidade de "diferentes caminhos do capitalismo", procura o menos penoso para os trabalhadores; Antunes, preocupado com o desemprego estrutural e a alienação crescente dos trabalhadores, busca uma alternativa "para além do capital".

Mattoso desdobra sua argumentação em quatro movimentos habilmente concatenados. No primeiro, reconstitui o padrão de desenvolvimento que vigorava no mundo capitalista até meados dos anos 70 e que denomina de "norte-americano", em contraposição ao padrão "inglês" anterior. Destaca que esse padrão não decorreu simplesmente de uma "determinação econômica", mas também do "contra-movimento" dos trabalhadores e da disputa, no pós-guerra, entre o bloco soviético em expansão e o bloco ocidental liderado pelos Estados Unidos.

No, segundo movimento, a crise da economia capitalista que explode no início da década de 70, começa a desmontar o padrão de desenvolvimento "norte-americano" e a desenhar um novo paradigma tecnológico e produtivo e uma nova organização do trabalho. Enquanto isso, a crise do socialismo, "incapaz que foi de dar resposta às questões democrática e da inovação", e a crise da social-democracia, "incapaz que foi de dar resposta à ofensiva neoliberal", corroem as organizações tradicionais dos trabalhadores. As taxas de sindicalização declinam e os partidos de esquerda perdem votos e influência.

O resultado é exposto no terceiro movimento, o centro da pesquisa de Mattoso: o mundo do trabalho dos "anos dourados" do pós-guerra se desarticula. O desemprego aberto é crescente e a própria mão-de-obra ocupada tende a segmentar-se em três grandes parcelas: a primeira forma o núcleo estável e qualificado, indispensável às empresas; a segunda reúne a mão-de-obra sem maiores qualificações, fácil de ser substituída e que, por isso, pode ser ampliada ou restringida de acordo com as necessidades das empresas; e a última, terceirizada, é composta tanto por profissionais altamente qualificados, quanto por trabalhadores sem qualificações, ocupados em atividades como limpeza, transporte ou alimentação. A antiga segurança no trabalho é substituída, portanto, por uma insegurança generalizada: no emprego instável, na contratação novamente individual e na remuneração dividida numa parte fixa e numa parte variável, cada vez mais importante. É uma situação inflamável, mas não é fatal, recorda Mattoso. A tendência econômica pode ser barrada pelo contra-movimento dos trabalhadores, como aconteceu na fase anterior - desde que os sindicatos e os partidos de esquerda, desapegando-se do "mito revolucionário", batalhem por um novo compromisso social.

A aposta de Mattoso fica mais clara quando ele se debruça sobre a peculiar situação do Brasil. A crise dos anos 70 apanhou o país num momento em que ainda tentava incorporar plenamente o padrão "norte-americano". A irrupção de um sindicalismo combativo e a restauração da democracia alimentaram a esperança de que, finalmente, se conseguiria articular o padrão tecnológico e industrial "norte-americano" com as relações salariais e de consumo ampliado que também o caracterizavam. Mas essa expectativa foi atropelada pela Terceira Revolução Industrial e pela reestruturação capitalista e o país empacou num impasse entre duas posturas equivocadas: "Uma que supõe que a nossa única forma de integração seria a passiva e subordinada, como cópia dos processos que ocorrem nos países avançados, e outra que ignora estas mudanças e supõe possível a simples reprodução do passado". Enredado, o Brasil escapou da "desindustrialização" temida por alguns, mas também não conseguiu a "reestruturação" desejada por outros. Para desempatar, Mattoso sugere a negociação de um "projeto nacional, distinto do desenvolvimentismo e alternativo ao neoliberalismo", a ser implementado por uma "aliança produtivo- distributiva", capaz de assegurar "crescimento produtivo, distribuição da renda e ampliação democrática".

Distinta é a ótica de Antunes. Contra visões catastrofistas, como as de Robert Kurz, que não vê uma saída para a crise impulsionada pelos trabalhadores, mas também não acredita numa reação corretiva das forças burguesas, repisa que ambas as alternativas existem. Contra os autores que anunciam a "crise da sociedade do trabalho", como André Gorz e Jurgen Habermas, empenha-se em demonstrar que o trabalho ainda representa a categoria central na estruturação das sociedades contemporâneas e os trabalhadores permanecem como os principais protagonistas das transformações sociais.

Reconhece, porém, que os trabalhadores foram duramente atingidos nos anos 80, em sua subjetividade e em sua materialidade. As tentativas de transição ao socialismo na União Soviética e no Leste europeu entraram em colapso. A classe operária industrial tradicional diminuiu. E tanto as taxas de sindicalização quanto as ações grevistas dos trabalhadores decresceram.

Antunes ressalva, no entanto, que não existe "uma tendência generalizante e uníssona" de eliminação dos trabalhadores e de seu peso social, sublinhando a incorporação do trabalho feminino, o assalariamento intenso dos setores médios, decorrente da expansão dos serviços, e a multiplicação das formas de trabalho parcial, temporário, precarizado. Seria mais apropriado, argumenta, falar num "processo de maior heterogeneização, fragmentação e complexificação da classe trabalhadora". Justamente por isso, opina, o movimento sindical deve abandonar qualquer defesa corporativa apenas dos setores estáveis e organizados, esforçar-se para unificar e representar o conjunto da nova segmentada "classe-que-vive-do-trabalho", como a denomina, e participar "na elaboração de um modelo econômico alternativo, com claros traços anticapitalistas".

Tratando-se de investigações pioneiras sobre processos sociais ainda não concluídos, é inevitável encontrar nos trabalhos de Mattoso e Antunes análises insuficientes e opiniões controversas, o que os próprios autores admitem. A objeção maior é que suas propostas contrastantes não desatam o nó central. Os trabalhadores não podem negociar, com outras forças sociais, uma agenda de mudanças imediatas sem ter um projeto próprio, de médio e longo prazos. Mas também não conseguirão viabilizar seu projeto alternativo, de cunho socialista, sem transitar pelas fases intermediárias impostas pelas difíceis condições atuais. A verdade é que a esquerda socialista ou social-democrática, depois que entrou em crise na década passada, ainda não encontrou o mapa para escapar da acomodação reformista sem recair no doutrinarismo estéril. Um inventário rigoroso das mudanças ocorridas é, no entanto, um salutar começo.

Duarte Pereira é economista.