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A reforma agrária não pode ser dissociada de um projeto de desenvolvimento rural sustentável focado no fortalecimento da agricultura familiar

Em outubro de 2002, nós, brasileiros, nos demos uma oportunidade histórica: poder discutir os rumos de nosso desenvolvimento.

Em todos os países desenvolvidos, a opção em favor da agricultura familiar foi fundamental para o crescimento econômico. Em bases familiares, o desenvolvimento da agricultura fortaleceu e assegurou a segurança alimentar dos países, equilibrou progressivamente os preços dos alimentos e produtos agrícolas, estimulou o mercado de consumo de massas e a poupança, dinamizou as economias rurais e alavancou os setores industriais e de serviços, além de políticas de fomento ou de apoio ao desenvolvimento. E, hoje, a agricultura familiar vem tendo um papel de destaque na preservação do meio ambiente e na gestão dos territórios rurais.

O Brasil fez opção oposta. Iniciamos nosso desenvolvimento como colônia escravagista e, desde o surgimento da Nação brasileira, mantivemos um sistema que conservou a concentração da propriedade da terra e impediu o acesso a ela aos trabalhadores e trabalhadoras rurais.

Em nossa história, as políticas para a agricultura sempre privilegiaram os grandes proprietários e a produção em larga escala, voltada para o mercado exportador: política fundiária e legislação que impedem o acesso à terra; garantia de preços, compras pelo governo e apoio à comercialização; incentivos fiscais, crédito subsidiado e renegociações favoráveis de dívidas; pesquisa agropecuária etc. As políticas voltadas para o âmbito patronal absorvem a maior parte dos recursos destinados à agricultura, mascarando, em muitos setores, sua falta de eficiência, sustentando o mito de sua superioridade e impedindo o desenvolvimento da agricultura familiar.

Convivemos com uma das estruturas agrárias mais concentradas e excludentes do mundo. Em pleno século XXI, o Brasil ainda não solucionou problemas do século XIX, como a miséria, a fome, o trabalho infantil, o trabalho escravo ou em condições degradantes. Grande parte da pobreza está, por essas razões, no meio rural, em particular no Nordeste. Vamos aproveitar para rever essa opção. É preciso superar os problemas de séculos passados que ainda não resolvemos. Temos, em compensação, vários trunfos. O primeiro, a imensidão e a diversidade dos nossos territórios rurais e das populações que neles residem e produzem.

A tarefa inicial é assegurar o acesso à terra aos milhares de trabalhadores e trabalhadoras rurais que lutam por um pedaço de chão. A Constituição Federal de 1988 afastou a possibilidade de uma reforma agrária ampla e maciça. A lei estabelece que somente propriedades improdutivas acima de quinze módulos fiscais podem ser desapropriadas. Há, no país, mais de 100 milhões de hectares ociosos; propriedades improdutivas que podem e devem ser desapropriadas. Esse é o quinhão de nosso território que deve ser incorporado à reforma agrária.

Propriedades de menos de quinze módulos fiscais não podem ser desapropriadas. Mas, segundo estimativas do governo, há 40 milhões de hectares ociosos nessa situação. Há, também, muitas pequenas propriedades familiares sem sucessor e médias propriedades ofertadas no mercado, que escapam das possibilidades de compra dos agricultores familiares. E milhares de agricultores e agricultoras familiares sem terra (parceiros, arrendatários) ou com pouca terra, que necessitam aumentar sua área para assegurar a permanência na terra.

Para solucionar esses problemas, um programa de crédito fundiário é necessário. A Contag incluiu essa reivindicação em sua pauta nos anos 1970 e, recentemente, tem participado na elaboração e na gestão de um programa de crédito fundiário do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) no Nordeste e no Sudeste. Também são necessárias políticas de regularização fun­diária e de titulação de terra, para afastar os mais de 1 milhão de pequenos posseiros e posseiras do país do risco da expulsão e abrir-lhes possibilidades de desenvolvimento. Essas políticas de regularização devem dar prioridade às terras quilombolas e às regiões de graves conflitos agrários.

Tais políticas não são apenas uma exigência moral, muito menos um instrumento na batalha política. São os principais instrumentos ao nosso alcance para ampliar e fortalecer a agricultura familiar brasileira, viabilizando um processo sustentável de desenvolvimento no campo, incorporando o grande potencial produtivo e criador dos milhões de trabalhadores e trabalhadoras rurais que não têm acesso à terra.

Para cada lote de assentamento trabalham, em média, 3,5 pessoas da família. Apesar da falta de apoio que caracteriza a maioria dos assentamentos, as famílias tiram de sua produção uma renda comparável à renda média de sua região. O impacto dessas políticas na geração de emprego e renda é, portanto, muito grande. E o custo, muito pequeno: aproximadamente 20 mil reais por família. Cada emprego criado custa, então, menos de 7 mil reais, parte dos quais será reembolsada.

O acesso à terra permite também às famílias se integrarem à economia e aos mercados. Uma pesquisa do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (Nead), do MDA, mostra que, antes do assentamento, 99% das famílias nunca tinham tido acesso a crédito, mas 66% delas receberam financiamentos depois de assentadas. A mesma pesquisa revela ainda que os projetos de assentamento aumentaram a oferta de produtos agrícolas e a demanda de produtos e serviços no comércio local. Em alguns municípios, a contribuição dos assentamentos foi importante para a revitalização e a dinamização da economia local e possibilitou, nos anos 1990, uma reversão da tendência, verificada nos anos 1980, de esvaziamento dos municípios, inclusive das áreas urbanas.

Há também ganhos em matéria de cidadania e na qualidade de vida. A maioria das famílias assentadas, antes desestruturadas pelo desemprego e pela necessidade de sobrevivência, pôde se recompor, agregar novos membros, ter uma moradia permanente e estável, estabelecer um projeto de vida e de futuro.

Todos esses resultados serão multiplicados se as políticas de acesso à terra derem também aos trabalhadores condições básicas de vida (moradia, acesso aos serviços básicos de saúde, educação, segurança alimentar etc.) e assistência técnica e infra-estrutura para organizar suas unidades produtivas, desenvolver sua produção e se inserir na economia.

O Brasil conta, hoje, com 4,5 milhões de estabelecimentos de agricultores familiares. Isso representa um universo superior a 20 milhões de pessoas. Este é o segundo pilar em que podemos nos apoiar porque, com apenas 30% das terras do país e 25% dos recursos para financiamento, eles respondem por 38% do total da produção agrícola nacional e por 70% do pessoal ocupado na agricultura.

Em termos de soberania alimentar, a agricultura familiar é responsável pela maior parte da produção de milho, feijão, mandioca, hortigranjeiros e suínos. Também provêm daí metade do milho e do leite produzidos no país, 40% das aves e dos ovos e mais de 30% da soja, do arroz, do algodão. Portanto, a agricultura familiar é responsável por parte significativa da produção que sustenta o agrobusiness e nossas exportações. Ela é mais forte nas regiões onde o acesso à terra foi mais democratizado – em particular o Sul – e onde houve mais políticas de apoio a seu desenvolvimento. Não por acaso encontramos, nessas mesmas regiões rurais e “familiares”, os melhores índices de desenvolvimento humano do país, as menores disparidades de renda, os menores índices de violência no campo.

Vários estudos mostram que a agricultura familiar brasileira utiliza a terra de maneira mais eficiente, tem a produção mais diversificada, preserva mais o meio ambiente, reparte melhor a renda, ocupa mais mão-de-obra e produz mais para os mercados locais. Parte dela, porém, encontra-se em situação difícil, em particular no Nordeste, onde a produção é submetida às secas periódicas e o acesso à terra e à água é muito precário (em sua maioria, os agricultores são parceiros ou cultivam em grandes propriedades em troca da formação de pastos ou de outros tipos de compensação aos proprietários).

Desde 1995, a mobilização dos trabalhadores rurais, no Grito da Terra Brasil, conquistou o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Ao criar vários instrumentos de crédito, esse programa permitiu o desenvolvimento da produção e a realização de investimentos e tem minimizado ou solucionado vários problemas enfrentados pelos agricultores.

Mas o Pronaf limitou-se, nos governos passados, a uma política de crédito, deixando outros aspectos sem resposta: falta de assistência técnica e de apoio à inovação tecnológica; baixo nível educacional dos agricultores (dois anos de escolaridade na agricultura, contra seis anos em média); dificuldade de acesso aos mercados, preços baixos e instáveis, baixo poder de negociação frente aos negociantes e à agro­indústria. É preciso direcionar energias e recursos para ampliá-lo, criar políticas complementares para a agricultura familiar, porque elas representam a fixação do homem no campo, dando-lhe condições para produzir e viver com dignidade. O fortalecimento da agricultura familiar deve obrigatoriamente fazer parte de uma política séria de reforma agrária.

Algumas políticas já estão em fase de implantação neste início de governo Lula, como a compra de produtos familiares para a formação de estoques estratégicos de segurança alimentar e para os programas governamentais de alimentação (merenda, hospitais etc.), a ampliação de um programa de crédito fundiário para todo o país, o seguro agrícola etc.

Não podemos somente olhar para a agricultura ou para o “agrário”. Há, em cada território rural, relações estreitas entre a agricultura e os outros setores da economia (indústria, serviços). Sem a primeira, dificilmente podem ser mantidos as atividades econômicas ou os serviços públicos dos pequenos e médios municípios. Sem os outros setores da economia e sem os serviços públicos dos pequenos centros urbanos, dificilmente a agricultura se sustenta.

É por essa razão que o desenvolvimento rural sustentável – e não só as políticas agrícolas e agrárias – entrou na agenda de diversos movimentos, em particular da Contag, de pesquisadores e, de algum tempo para cá, do governo federal, de alguns governos estaduais e municipais.

A diversidade dos territórios exige políticas flexíveis, adaptadas à situação de cada um deles, a seu potencial, a suas dificuldades. Há territórios com graves problemas estruturais e conflitos sociais violentos, em que as transformações estruturais são urgentes. Há territórios em declínio, em que a revitalização da agricultura e da economia local é prioritária. Há territórios estagnados, que precisam ser dinamizados. E há territórios em desenvolvimento, cujos potenciais deverão ser estudados e explorados.

Isso pode ser feito por meio de ações estruturais, como distribuição de terras, regularização fundiária, investimentos em infra-estrutura básica e produtiva. Essas políticas deverão ser implantadas dentro de uma visão ampla de reforma agrária, que vai além do acesso à terra. É necessário assistência técnica, infra-estrutura (estradas, armazéns etc), promover e apoiar atividades não-agrícolas que complementem a renda dos trabalhadores e trabalhadoras rurais e dinamizem a agricultura e o setor urbano, como o turismo, as pequenas indústrias, os serviços. Investir na agregação de valor aos produtos agrícolas, por meio de melhor estruturação dos mercados, da criação de agroindústrias de pequena escala, de selos de qualidade regionais, e nas cooperativas de produção e crédito.

Todas essas políticas devem assegurar a participação social. Não apenas por uma questão política, mas para melhor aproveitamento das energias e do potencial da população e das suas organizações, como os sindicatos de trabalhadores, as associações comunitárias, as cooperativas de produção, comercialização ou de crédito, os condomínios, as ONGs etc.

A maior parte dessas idéias está no documento Vida Digna no Campo (programa do governo Lula para o campo) e foram incorporadas ao Plano Plurianual. É um avanço e tanto. Outros passos concretos já foram dados no início deste ano. A negociação do Grito da Terra Brasil proporcionou um aumento de 26% nos recursos do Pronaf para a safra de 2003-2004, além de outros mecanismos para ampliar o número de beneficiários, desburocratizar o acesso ao crédito, melhorar seu alcance.

A criação da Secretaria de Desenvolvimento Territorial, no MDA, é outro avanço no sentido da implantação de políticas concretas de apoio aos territórios. O anúncio – esperamos em breve – de um grande programa de crédito fundiário para todo o país é fundamental para a ampliação do acesso à terra com qualidade. Também está em discussão a elaboração de um plano nacional de reforma agrária, que deve ser discutido amplamente com todos os movimentos sociais do campo. Esse plano deve levar em consideração não apenas a distribuição de terras, mas todas as ações que apontamos anteriormente para uma reforma agrária de qualidade. Não podemos errar. A reforma agrária não pode estar dissociada de um projeto de desenvolvimento rural sustentável focado no fortalecimento da agricultura familiar. São políticas complementares.

A política da Contag frente ao governo Lula é de autonomia com responsabilidade. Mantemos nossa autonomia enquanto movimento, mas também temos a responsabilidade de ter ajudado a elegê-lo. Portanto, acreditamos que esse governo é a melhor oportunidade para realizar o grande sonho de milhões de trabalhadores e trabalhadoras rurais: paz no campo, vida digna, cidadania e reforma agrária de qualidade.

Manoel José dos Santos é presidente da Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag)