Economia

A finalidade deste artigo é justamente contribuir para a divulgação e discussão da proposta

A proposta de reforma tributária apresentada pelo PT deve ser vista como uma obra coletiva, que inclui contribuições de lideranças políticas, parlamentares, economistas e advogados tributaristas, nem todos filiados ao partido. O tema é complexo e muitas das contribuições oferecidas não puderam ser devidamente consideradas nesta etapa da discussão. Por isso, a proposta foi apresentada por José Dirceu como aberta a acréscimos, correções e aperfeiçoamentos1.

O processo de elaboração da proposta de reforma tributária do PT teve início em fevereiro de 1995, quando Lula chamou um grupo de economistas, parlamentares e especialistas na área e passou a coordenar pessoalmente os trabalhos. Em São Paulo e em Brasília realizaram-se diversas reuniões e encontros de trabalho sobre o tema. Na reunião do Diretório Nacional do PT, em abril, a questão voltou a ser discutida a partir de uma exposição do ex-secretário da Receita Federal, Osiris Lopes Filho. Com base nesta exposição e nos debates anteriores, o deputado Celso Daniel redigiu um documento de resumo, aprovado pelo Diretório como referência para a discussão no partido.

Em julho, os autores do presente artigo, junto com Lourdes Gutierres, apresentaram ao partido uma proposta de reforma tributária, que procurava sistematizar e ampliar as contribuições anteriores2.

Este documento serviu de base para uma nova rodada de discussões, da qual participaram Lula, José Dirceu, Aloízio Mercadante, Maria da Conceição Tavares, os membros das bancadas na Câmara e no Senado, entre outros. Nesta etapa, o trabalho foi coordenado por Eduardo Suplicy e Celso Daniel. O documento passou por sucessivas versões, para cuja redação contribuíram várias das pessoas mencionadas, até chegar à versão divulgada. Paralelamente, a assessoria do PT na Câmara transformou algumas das propostas em um projeto de Emenda Constitucional, também divulgada no dia 2 de outubro.

A decisão do PT de elaborar e apresentar uma proposta detalhada de reforma tributária foi motivada, em parte, pela preocupação de fortalecer o debate econômico no partido e de induzir os seus quadros a ir além da crítica e do diagnóstico, terreno em que é mais fácil elidir as dificuldades reais, tanto as de natureza técnica quanto as de natureza política. O esforço não foi, no nosso entender, inteiramente bem-sucedido, em parte pela falta de tradição do partido, e especialmente dos seus economistas, neste tipo de discussão.

Mas representou um progresso em comparação com posicionamentos anteriores do PT na área econômica, sobretudo porque não se restringiu ao plano doutrinário e nem teve um caráter apenas retórico. Ao contrário, abordou aspectos práticos,e específicos, ao mesmo tempo em que preservou uma certa coerência global e seguiu as diretrizes gerais consagradas em discussões anteriores do partido (justiça tributária, distribuição de renda, combate à sonegação, defesa da federação e da descentralização, entre outras).

Até agora, a proposta do PT é pouco conhecida, uma vez que o resumo feito pelos meios de comunicação veio, como geralmente ocorre, repleto de erros e omissões. A finalidade deste artigo é justamente contribuir para a divulgação e discussão da proposta.

Comparação com a proposta do governo

Uma forma de apresentar a proposta do PT é compará-la com a do governo.

As duas diferem, em primeiro lugar, pelos elementos que enfatizam. A do PT enfatiza a justiça fiscal, o combate à evasão e a defesa do federalismo fiscal. A do governo busca fundamentalmente a adaptação do sistema tributário à globalização e à abertura da economia; procura também centralizar recursos e competências tributárias na União, em detrimento de Estados e municípios.

As propostas diferem também quanto ao tipo de mudanças que privilegiam. O PT propõe apenas alterações pontuais na Constituição; defende sobretudo modificações no campo da legislação infraconstitucional e o fortalecimento da administração tributária. Isto porque as discussões realizadas nos últimos oito meses consolidaram a percepção de que não é no plano constitucional que se localizam as principais distorções e insuficiências do sistema tributário brasileiro.

Já o governo apresentou uma proposta de emenda constitucional que implica ampla modificação do capítulo tributário da Constituição, o que se explica, pelo menos em parte, pelo intuito de alinhá-lo às conveniências da globalização. No campo da legislação infraconstitucional, o governo se limitou até outubro a apresentar um projeto de revisão do imposto de renda das empresas. No que tange à recuperação e modernização do aparelho arrecadador, suas iniciativas têm sido tímidas ou inexistentes, o que contradiz o discurso oficial de suposta prioridade do combate à evasão tributária.

Ao invés de fortalecer a capacidade de arrecadar os tributos já existentes, o governo insiste em propor remendos, como a prorrogação do chamado Fundo Social de Emergência e a volta do IPMF sob nova roupagem. Em contraste, o PT apresentou uma proposta abrangente de reforma do sistema tributário Infraconstitucional, e rejeitou a adoção de novos "pacotes" ou soluções improvisadas, não incluindo, por exemplo, a criação de novos tributos (com a exceção do Imposto sobre Grandes Fortunas-IGF, já previsto na Constituição).

Apesar de algumas afirmações retóricas em contrário, a proposta do governo pouco faz para alterar o caráter profundamente injusto da tributação no Brasil, que decorre, como se sabe, do peso da tributação indireta, da baixa progressividade do imposto de renda, da inexpressividade dos impostos patrimoniais e da fragilidade do aparelho arrecadador.

Tradicionalmente, quem arca com o pagamento de tributos no Brasil são sobretudo os assalariados de classe média, que não têm como fugir da retenção do imposto de renda na fonte, e as classes trabalhadoras, que suportam a maior parte da pesada tributação indireta contida nos preços dos produtos.

Um estudo divulgado em 1994 pela Receita Federal procurou estimar a taxação efetiva sobre o consumo, o trabalho e o capital no Brasil, comparando-a com a que se observa nos sete principais países desenvolvidos, no chamado Grupo dos 7 (G-7). Verificou-se que, no Brasil, o capital é sub-tributado, tanto em comparação com o consumo e o trabalho, como em comparação com as alíquotas efetivas praticadas nesses países desenvolvidos. No Brasil, os rendimentos do capital pagam uma alíquota efetiva média de 8%, contra uma média de 38% nos países do G-7. Ao rendimento do trabalho se aplica, no Brasil, uma alíquota efetiva de 19%, mais do que o dobro da que se aplica sobre os rendimentos do capital3.

Assim, a péssima distribuição de renda pré-tributação vigente no país é ainda agravada pelas injustiças do sistema tributário. A preocupação com a justiça fiscal não poderia, portanto, deixar de ocupar um lugar de destaque na proposta de reforma tributária do PT. De fato, esta é a finalidade principal da maior parte das 21 proposições específicas apresentadas pelo partido.

Essa finalidade é buscada não apenas com alterações da lei tributária, mas também com uma série de sugestões de ampliação dos recursos humanos e materiais à disposição dos órgãos públicos vinculados à fiscalização, arrecadação e cobrança de tributos, elemento indispensável ao combate dos escandalosos índices de evasão no País. Um combate eficaz à evasão permitiria inclusive a redução das exageradas alíquotas nominais de certos tributos, especialmente dos tributos indiretos, do imposto de renda da pessoa jurídica e de certas faixas do imposto de renda da pessoa física, sem prejudicar (ou até aumentando) o nível da arrecadação.

Administração tributária

Uma ideia central da proposta do PT é que não haverá sistema tributário eficaz, por mais perfeita que seja a legislação tributária, enquanto não for enfrentada a grave deficiência de recursos de que padecem a Receita Federal, os conselhos de contribuintes, a Procuradoria da Fazenda, o INSS, as administrações tributárias estaduais e municipais, e a própria Justiça. O PT apresentou uma série de propostas para cada uma dessas áreas (ver quadro). Propôs, por exemplo, investimentos substanciais em informática, dado que o atraso neste campo é um dos entraves principais ao bom funcionamento da administração tributária. Propôs também as linhas gerais de uma política de recursos humanos para a Receita e outros órgãos da administração que inclui, entre outros aspectos, o aumento do número de fiscais da Receita e do INSS, hoje muito aquém do mínimo necessário.

Note-se que o fortalecimento da máquina e o combate à evasão são aspectos centrais na busca por um sistema tributário justo, posto que são sobretudo os contribuintes de renda e patrimônio mais elevados que têm tirado partido da fragilidade da administração pública para fugir às suas obrigações fiscais.

Não é por acaso que este aspecto da questão tributária costuma ficar em segundo plano no Brasil. O grande economista Nicholas Kaldor observou certa vez que nos países subdesenvolvidos as pressões políticas conduziam a uma legislação falha e a uma administração inoperante. "Um sistema fiscal ineficiente", dizia ele, "será sempre preferido por todos aqueles a quem um sistema adequado e eficiente possa afetar; e, como estes formam o grupo de maior influência na sociedade, surgem os mais formidáveis obstáculos políticos contra a criação de qualquer sistema eficaz de tributação"4.

No mesmo sentido, Osiris Lopes Filho destaca que "uma das características do subdesenvolvimento é que as classes dominantes não permitem a montagem de um aparelho arrecadador eficiente, e se colocam assim à margem da tributação"5

Estas observações descrevem com perfeição o que acontece no Brasil. Alguns trabalhos recentes da Receita Federal mostraram que os setores de altas rendas recorrem a inúmeros expedientes - a inadimplência, o planejamento tributário, a contestação judicial, ou a sonegação pura e simples - para fugir de suas obrigações com o Fisco.

Um levantamento divulgado pela Receita em fins de 1994 trouxe informações espantosas sobre os proprietários de grandes patrimônios6 460 indivíduos, detentores dos maiores patrimônios declarados, com valores entre US$ 19 milhões e US$ 764 milhões, informaram rendimentos comparáveis, na maior parte das vezes, aos de contribuintes de classe média, levando a própria Receita a concluir que "as pessoas mais ricas do Brasil, em geral, consideram-se fora do raio de atuação da Receita Federal e chegam mesmo a desafiá-la acintosamente com os números apresentados nas suas declarações"7.

Justiça fiscal

O PT propôs, ainda, uma série de modificações da legislação, quase sempre com o intuito de tornar o sistema tributário progressivo, isto é, de fazê-lo tributar proporcionalmente mais os que têm mais renda e riqueza.

Entre as propostas apresentadas, destacam-se: a regulamentação do IGF, o aumento da progressividade do imposto de renda da pessoa física, a progressividade constitucional obrigatória para todos os impostos patrimoniais (a exemplo do que já ocorre no caso do imposto de renda) e a maior seletividade na aplicação dos impostos indiretos (de acordo com a essencialidade dos produtos).

A instituição de um imposto de renda negativo na forma de um programa de renda mínima, proposta igualmente pelo PT, é especialmente importante, não apenas do ponto de vista do combate à miséria e da criação de condições mínimas de cidadania para todos, mas também para alcançar justiça fiscal, compensando os setores de baixa renda pela incidência de tributos indiretos e pelas contribuições previdenciárias descontadas de seus salários.

O PT propôs, além disso, a manutenção do Imposto Territorial Rural (ITR) como imposto federal, vinculado à reforma agrária, abrindo a possibilidade de convênios para a sua cobrança pelos municípios. Já a proposta de emenda constitucional do governo prevê a estadualização do ITR, a pretexto de que os estados teriam melhores condições de cobrá-lo. Mas a verdadeira intenção do governo é oferecer-lhes uma compensação pelas perdas de receita que teriam com a isenção do ICMS sobre as exportações de produtos primários e semi-elaborados e com outras medidas. Esta proposta é sintomática da falta de seriedade com que vem sendo encarada a questão agrária, o que ajuda a entender seu recente agravamento.

Finalmente, no que se refere à questão do sigilo bancário, o PT apresentou uma proposta de emenda constitucional mais abrangente que a do governo. A emenda do PT faculta não só a administração tributária federal, mas também a previdenciária e dos estados e municípios, o acesso às informações bancárias do contribuinte, nos termos da lei e respeitados os direitos individuais. Reforça, além disso, o preceito do sigilo fiscal, isto é, a obrigação do Fisco e de seus agentes de não divulgar informações da intimidade do contribuinte. O PT especificou ainda a sua posição no que tange à regulamentação infraconstitucional do sigilo bancário, ao estabelecer que o acesso à conta bancária deve ficar condicionado à existência de processo administrativo já instaurado.

Avaliada no seu conjunto, a proposta de reforma tributária do PT representou, como já dissemos, um progresso em comparação com posicionamentos anteriores do PT na área econômica.

Evidentemente, o PT não terá força suficiente, mesmo em aliança com outros partidos, para fazer vingar de imediato todas essas propostas, até porque muitas delas dependem de iniciativas do Executivo. Mas ao fazer um esforço de marcar posições de maneira concreta, o partido deu um passo para consolidar o seu posicionamento em uma questão que continuará presente, com destaque, no debate econômico dos próximos anos. Iniciativas como essa ajudam a criar condições para que o partido possa, ao lado de outros setores da oposição, contrapor-se de forma eficaz ao ideário dominante e às propostas do governo.

João Machado é membro do Diretório Nacional do PT.

Paulo Nogueira Batista Jr. é professor da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo.