Estante

Em Manda Quem Pode, Obedece Quem Tem Prejuízo, Belluzzo e Galípolo convidam os leitores a pensar como no capitalismo das últimas quatro décadas o poder migrou do Estado para as empresas, subvertendo a ordem democrática, reduzindo a autonomia dos indivíduos em nome da liberdade econômica.

O fio condutor do livro é o dinheiro e o seu papel crucial na dinâmica capitalista, algo que deveria ser evidente a qualquer analista econômico, mas que, como bem demonstram os autores já no capítulo introdutório, é evitado a duras penas e com grande sofisticação matemática pelas correntes dominantes ligadas à chamada tradição neoclássica. Por incrível que pareça, o sistema nervoso que desde sempre comanda o capitalismo – o dinheiro, os bancos e os mercados financeiros – não tem lugar nos esquemas funcionais dos modelos macroeconômicos que entopem os escaninhos das faculdades de economia ao redor do mundo. O resultado é que para toda essa trupe a dita economia de mercado é entendida como um complexo sistema de vasos comunicantes, no qual a dimensão monetária da economia cumpre apenas o papel de informar, comunicar e facilitar as ações dos múltiplos agentes que se encontram distribuídos na órbita da chamada economia real, sem, contudo, determinar seus rumos ou afetar o nível de produção ou o padrão de distribuição da renda.

Contudo, aqueles que acompanham os frequentes artigos da dupla Belluzzo e Galípolo, ou que conhecem os demais livros do primeiro, sabem que lhes é central a ideia de que no capitalismo o dinheiro é o ativo por excelência, com qualidades únicas, desejado por todos e para o qual todos recorrem – especialmente quando nas crises os demais ativos tanto mais se desvalorizam quanto mais se tornam ilíquidos. Longe de serem neutras, as esferas monetárias e financeiras estão no vórtex desse sistema que a tudo abarca, tracionado pela voracidade crescente do processo de valorização do capital. Dinheiro e crédito são assim as fontes primárias de incerteza e instabilidade, seja por meio das ondas de expansão e contração do crédito e da liquidez, seja pelos erráticos movimentos de avaliação da riqueza.

Partindo dessa perspectiva, francamente inspirada nas obras de Marx e Keynes, os autores procuram demonstrar como, desde o início da desconstrução dos pilares do capitalismo regulado do pós-guerra, o movimento de “liberalização dos mercados” vem reordenando as relações entre o político e o econômico no sentido de “remover quaisquer obstáculos à expansão das finanças” e esvaziando o comando da política democrática em favor dos mercados eficientes.

Durante esse percurso, ao mesmo tempo em que se reafirmam em escala ampliada as tendências de concentração e centralização do capital, vão sendo registrados aumentos da participação dos lucros financeiros que avançam quanto mais a gestão produtiva das empresas se converte em gestão financeirizada. É o império do “valor do acionista” que, apoiado no caráter despótico da concorrência em escala global, coage países de diferentes cores e tamanhos a abrirem suas economias, desregulando seus mercados de trabalho e autorizando a livre movimentação de capitais.

Inevitáveis crises de balanços de pagamentos se sucederam nos anos 1990, mas não foram suficientes para frear a brincadeira sem graça do neoliberalismo. Muito pelo contrário, principalmente nos países centrais, a aposta foi redobrada e novas rodadas de desregulamentação (bonfireofred tape!) deram ainda mais corda às operações de valorização fictícia do capital, até que finalmente a grave crise de 2008 revelou de forma dramática o quão mais irracional era a tal exuberância. Contudo, para espanto de muitos, à crise seguiu-se inédita lassidão monetária dos bancos centrais independentes. Salvaram-se os bancos, salvaram-se os capitais rentistas antes ancorados em títulos duvidosos, e bola pra frente que o povo segue obediente.

Ao longo de todos esses anos de liberalização das economias, não só o Estado Nação teve seu raio de ação constrangido por ordem dos tratados internacionais redigidos pelas mãos das grandes corporações transacionais, como a política fiscal, que antes servia para dar estabilidade ao crescimento econômico e materialidade ao Estado de Bem-Estar Social, foi sendo dramaticamente subordinada à política monetária, a qual por sua vez passa se dedicar sem maiores pudores à gestão do estoque de riqueza privada.

No encalço dessa odiosa odisseia, Belluzzo e Galípolo percorrem os principais episódios da história econômica recente para demonstrar como se deram os passos da mencionada captura da política pelas finanças. No bojo da chamada globalização financeira, a qual se caracteriza pelo acirramento da concorrência entre empresas, trabalhadores e nações sob o comando das finanças, as mudanças na legislação norte-americana intensificadas durante o governo Clinton foram eliminando as amarras e todo o aparato regulatório que cuidava das operações financeiras no centro do sistema. Os lobbies, bem como a “porta giratória” que permuta diretores dos grandes bancos com membros do alto escalão dos governos e com acadêmicos da área econômica, jogaram papel decisivo nos EUA tanto na preparação do terreno para a “exuberância irracional” que inflou a superbolha de 2008 quanto na inundação de liquidez reparadora que a ela sucedeu.

Depois de demonstrarem com fartura de exemplos como os ideais das finanças degeneraram as ideias da dita ciência econômica, os autores se dedicam a refletir como a busca por algum caminho de desenvolvimento econômico no Brasil recente foi também inviabilizada pelo poder desmensurado das finanças, sobejamente infiltrado no mercado de notícias que impera por aqui. O rentismo não apenas estabeleceu os limites da política como cuidou dos instrumentos necessários (bancos, mídia e academia) para manter juros altos e câmbio flutuante – porém sempre valorizado –, amplificando os lucros das empresas transnacionais que operam no país, sem que fosse necessária uma efetiva e duradoura expansão da produção. Não por acaso, mesmo com muita boa vontade e engenharia política, chegamos a 2014 com a participação da indústria no PIB caindo a 10,9%, algo que não se via pelo menos desde 1947.

Por fim, no capítulo final, Belluzzo e Galípolo apresentam um painel sobre os prejuízos que o capitalismo financeirizado desse início de século impõe àquela enorme maioria da população a quem só resta obedecer. A colossal desigualdade de renda que concentra nas mãos de oito bilionários um montante de dinheiro equivalente ao que é distribuído à metade da população do planeta convive com uma capacidade produtiva excessiva que, por conta das gestões financeirizadas e de Estados capturados, não encontra razão para ser mobilizada. Ao mesmo tempo, enquanto a máquina de geração de renda segue empacada, os empregos somem e a renda do trabalho estaciona, a riqueza velha se valoriza de forma inaudita, apoiada pelas mirabolantes e inventivas finanças desreguladas e pelos vertedouros de títulos de dívida pública que garantem liquidez e paz ao sistema. Entre os obedientes, nem mais a alternativa do labor está ao alcance de todos. Enquanto podem, apenas assistem os nexos da “vida civilizada” serem dilacerados pelas vivas contradições do capital.

Marcelo Manzano é economista e professor nas Faculdades de Campinas (Facamp)