As eleições municipais serão disputadas num momento em que o problema do desemprego se torna a principal preocupação do brasileiro
As eleições municipais serão disputadas num momento em que o problema do desemprego se torna a principal preocupação do brasileiro
A atual crise do desemprego resulta da atuação de fatores há muito conhecidos numa conjuntura em que os remédios já testados não funcionam mais. A demanda por trabalhadores está se contraindo em setores beneficiados por inovações tecnológicas, entre os quais se destaca a indústria, mas que incluem indubitavelmente boa parte do terciário. Os robôs, o computador e a comunicação por satélite estão eliminando milhões de empregos no mundo inteiro e nada adianta lamentar-se por eles. Estes ganhos de produtividade do trabalho beneficiam a todos e seria uma luta inglória tentar barrar o progresso técnico para manter seres humanos fazendo coisas que máquinas fazem mais barato ou melhor.
Além disso, a globalização da economia está modificando a divisão internacional do trabalho. O perverso nisso é que os capitais estão se deslocando para as áreas em que o custo da força de trabalho é menor, onde não existem os benefícios sociais já consagrados em convênios internacionais, o que agrava a perda de empregos nos países em que os direitos trabalhistas existem e são respeitados.
No passado, a perda de lugares de trabalho em função do avanço tecnológico ou das mudanças na divisão internacional do trabalho foi compensada por redução da jornada e por aceleração do crescimento econômico, que implica sempre aumento da demanda por força de trabalho. Atualmente, é improvável que este tipo de medidas possa ser implementado com êxito, embora seja indispensável continuar lutando por elas.
A redução da jornada é difícil de ser conquistada por causa do número crescente de trabalhadores que estão perdendo o gozo dos direitos trabalhistas, em função não só do desemprego mas também do desassalariamento. As empresas estão empenhadas em economizar encargos trabalhistas mediante a transformação de empregados em prestadores de serviços ou autônomos subcontratados. Isso desmotiva os que ainda se acham formalmente empregados a reivindicar novos direitos, inclusive o encurtamento da jornada de trabalho. E, ao mesmo tempo, a concorrência nos mercados de trabalho informal, precário, subcontratado etc. obriga os trabalhadores que estão neles a fazer jornadas muito longas, o que naturalmente os polariza em dois grupos: um que trabalha demais e outro que não encontra trabalho suficiente.
O fato é que o crescimento do desemprego e a deterioração das relações contratuais de trabalho desequilibraram a correlação de forças a favor do capital e debilitaram as classes que têm interesse em acelerar o crescimento da economia mediante a aplicação de políticas de expansão da demanda efetiva e de fomento da acumulação de capital. Em nome da globalização, a movimentação internacional dos capitais é liberada, o setor público produtivo é privatizado ou desmantelado e a política monetária prioriza a estabilidade dos preços em detrimento do crescimento econômico. A economia mundial parece atualmente condenada a um crescimento estável de 2% a 3% ao ano e as economias que se integram crescentemente a ela, mediante a abertura de seus mercados, dificilmente podem crescer muito mais.
Neste contexto, as soluções propostas para o desemprego se limitam em geral a oferecer ao desempregado treinamento profissional e algum financiamento se ele se dispuser a começar um negócio por conta própria. E preciso que fique bem claro que a maior qualificação dos trabalhadores, insistentemente reclamada pelos empregadores, não é solução para o desemprego. O aumento da qualificação não induz os capitais a ampliar a demanda por força de trabalho, pois esta depende basicamente do crescimento dos mercados em que as empresas vendem seus produtos. Se todos os trabalhadores desempregados incrementassem seu nível de qualificação, o único resultado seria uma concorrência mais intensa entre eles, com provável queda dos salários pagos. A qualificação maior interessa ao trabalhador individual para obter uma vantagem na luta por emprego, mas só traria vantagens aos trabalhadores em conjunto se fosse possível negociar escalas de salário que remunerassem melhor os de mais qualificação, sem reduzir o ganho dos menos qualificados.
A transformação de desempregados em microempresários ou operadores autônomos está em sintonia com a atual tendência descentralizadora, mas não dá aos entrantes em mercados, em geral já muito competitivos, uma chance razoável de sucesso. Falta aos novos competidores experiência profissional, conhecimentos de como operar um negócio independente, além de reconhecimento junto à clientela potencial. Por estas razões, apenas uma minoria dos que tentam este caminho obtêm êxito. Não é fatal no entanto, o alto grau de fracasso de pequenas empresas, entendidas como o conjunto de formas organizacionais (microempresas, operação individual autônoma, empresa familiar, comunitária, cooperativa de produção etc.) caracterizadas por capital inicial limitado, compatível com poupanças familiares e financiamentos proporcionais a este montante de recursos próprios. Para cada uma delas que consegue um lugar no mercado, há um acréscimo correspondente da demanda, representado pela renda que a pequena empresa gera e faz com que seja gasta. Em outras palavras, se pequenas empresas criadas por desempregados tivessem desde o início eficiência e clientela que as viabilizassem, a sua atividade geraria uma demanda adicional de mesmo valor que a oferta adicional de mercadorias que elas suscitam. A economia sofreria uma expansão sem risco de superpopulação, a não ser que as pequenas empresas novas se concentrassem em apenas um ou em poucos ramos.
Ao contrário de mercados dominados por grandes empresas, em que boa parte da renda foge ao exterior através da compra de fatores em outros mercados, muitas vezes geograficamente distantes - fato que a globalização vem acentuando -, os mercados em que prevalecem pequenas empresas apresentam elevado grau de realimentação, mediante a compra local de insumos e de bens de consumo final. Esta característica é muitas vezes deliberadamente organizada, pois a complementaridade entre pequenas empresas aumenta fortemente sua eficiência e competitividade. Em outras palavras, é possível organizar economias locais de razoável complexidade, a partir da competição e cooperação de grande número de pequenas empresas, como o demonstram distritos industriais prósperos na Itália, Espanha, Alemanha etc.
Os complexos econômicos constituídos por pequenas empresas têm grande capacidade de crescimento, sobretudo se puderem se basear no mercado formado pelos seus próprios trabalhadores. Mas eles têm esta virtude apenas por não adotar a lógica capitalista, que equaciona eficiência e competitividade com lucro e confere o poder supremo de decisão a respeito da existência ou não da empresa às mãos dos possuidores do capital.
Nos mercados dominados pelo capital, as pequenas empresas funcionam em geral como subsidiárias ou subcontratadas das grandes firmas. A expansão do número e da produção das pequenas empresas depende, nestes casos, do crescimento das grandes firmas. A multiplicação de pequenas empresas além deste limite aguça a competição entre elas, envolvendo-as num jogo de soma zero: cada avanço obtido por uma pequena empresa representa uma perda igual de outra ou outras. A competição aniquiladora entre elas só traz vantagens às grandes, que obtêm os serviços das primeiras a custos menores.
Historicamente, a solução extracapitalista para o desemprego foi a emigração. Países assolados por desemprego em massa, como a Itália e a Irlanda, no século passado, organizavam a emigração de parte de sua população redundante a países novos, como os Estados Unidos, Austrália, Argentina, Brasil etc., onde estes trabalhadores tinham oportunidade de se organizar em pequenas empresas formando mercados locais. O dinamismo destes dependia do fato de serem protegidos da concorrência do grande capital pelo seu relativo isolamento. As colônias italianas e alemãs que estão na origem da prosperidade do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina são exemplos deste processo.
Na atual crise de desemprego, a solução emigratória não está mais disponível, mesmo num país relativamente vazio como o Brasil. A reforma agrária pode proporcionar o reassentamento de centenas de milhares de famílias, mas isso não é suficiente para resolver o problema de milhões de pessoas que não têm possibilidade de se inserir na divisão social do trabalho. Será necessário formular uma outra solução capitalista para o desemprego, que substitua o deslocamento geográfico por estruturas organizacionais que ofereçam a pequenas empresas a proteção necessária para poderem se desenvolver.
Para resolver o problema do desemprego é necessário oferecer à massa dos socialmente excluídos uma oportunidade real de se reinserir na economia por sua própria iniciativa. Para criar esta oportunidade, é preciso constituir um novo setor econômico, formado por pequenas empresas e trabalhadores por conta própria, composto por ex-desempregados, que tenha um mercado protegido da competição externa para os seus produtos. Esta condição é indispensável porque os ex-desempregados, como se viu acima, necessitam de um período de aprendizagem para ganhar eficiência e angariar fregueses. Para garantir-lhes este período de aprendizagem, os próprios participantes do novo setor devem constituir o mercado protegido para suas empresas.
Uma maneira de criar o novo setor de reinserção produtiva é fundar uma cooperativa de produção e de consumo, à qual se associarão a massa dos sem-trabalho e dos que sobrevivem precariamente com trabalho incerto. Quanto maior o número de empresas da cooperativa, tanto melhores suas chances de sucesso.
Numa grande cidade como São Paulo, em que moram centenas de milhões de pessoas que estão subocupadas ou desempregadas, o novo setor poderia conter milhares de pequenas empresas, operando em ampla gama de indústrias e serviços, da confecção de roupas, alimentos, material de construção até a reparação de automóveis e aparelhos domésticos, reformas e manutenção de edificações, creches, clínicas, escolas etc. Atualmente, é alto o desemprego entre ex-administradores de empresas, engenheiros, planejadores e outros profissionais especializados, que poderiam desde o início dar às novas pequenas empresas a base gerencial e técnica de que precisam. Em cidades menores, o novo setor poderia alcançar envergadura mediante consórcio abrangendo um conjunto de municípios.
O compromisso básico dos cooperados será o de dar preferência aos produtos da própria cooperativa, no gasto da receita obtida na venda de seus produtos a outros cooperados. Para garantir este compromisso, as transações entre cooperados deveriam ser feitas com uma moeda própria, diferente da moeda geral do país, digamos um sol (de solidariedade) em vez do real. O uso desta moeda, que só terá validade para pagar produtos do novo setor, dará a proteção de mercado que as pequenas empresas precisam para poder se viabilizar. Quanto maior e mais diversificado for o novo setor, tanto maior será o mercado à disposição de cada empresa especializada que o compõe. Será importante que haja várias empresas competindo pelos consumidores em cada ramo de produção dentro do setor, para que cada uma delas seja estimulada a melhorar a qualidade e baixar os custos. Só que a nova pequena empresa, criada por ex-desempregados, estará competindo com outras de mesma origem, sendo protegida da concorrência da grande empresa capitalista, do produto importado e mesmo de pequenas empresas estabelecidas há tempo, porque as mercadorias destes concorrentes externos não poderão ser comprados com sóis, mas apenas com reais.
Seria importante que a cooperativa de economia solidária contasse desde o início com apoio e patrocínio do poder público municipal, dos sindicatos de trabalhadores, das entidades empresariais progressistas e dos movimentos populares. Este patrocínio conferirá à cooperativa o prestígio necessário para atrair a adesão de um número grande de desempregados, sem o qual o novo setor não terá o vigor necessário para levantar vôo. Além disso, o apoio do poder público será crucial para erguer instituições de ajuda à cooperativa, entre as quais a mais importante será um banco do povo, para garantir crédito às pequenas empresas e aos trabalhadores por conta própria, que não têm propriedades para oferecer em garantia. Em lugar destas garantias, o banco do povo organiza grupos solidários, que poupam em conjunto e se responsabilizam solidariamente pelo pagamento de juros e dos créditos concedidos a seus membros.
Alternativa à lei do mais apto
O mercado protegido será uma condição necessária mas não suficiente para que o novo setor de economia solidária dê certo. Seu êxito não consistirá apenas na mera sobrevivência das empresas e pessoas que o constituem, embora esta no tempo já represente a solução para o desemprego, ou seja, a reintegração econômica e portanto social dos hoje marginalizados. Mas, o objetivo almejado deve ser a criação de novas formas de organização da produção com lógica incluidora, ou seja, capacitada e interessada em acolher sem limites novos cooperados. E que ofereça a estes uma chance real de trabalhar com autonomia e de ganhar um rendimento suficiente para ter um padrão de vida digno.
Para alcançar este objetivo maior, será preciso adicionar ao mercado protegido o crédito solidário, a formação profissional e o aperfeiçoamento técnico continuado, além de serviços comunitários, como instâncias de arbitragem de disputas, câmaras que facilitem o entrosamento de empresas complementares das cadeias produtivas (por exemplo, entre confecções de produtos e varejistas dos mesmos), centros de pesquisas e de projetos, incubadoras de novas empresas etc.
Em outras palavras, o ponto de partida da economia solidária é o reconhecimento de que a causa maior da debilidade da pequena empresa e do autônomo é o seu isolamento. O pequeno só o é porque está sozinho. Quando muitos pequenos se unem, formam um gigante. Estas verdades são há muito conhecidas, mas elas só são aplicadas conseqüentemente pelas firmas capitalistas, mediante a centralização do capital, ou seja, pela contínua absorção de firmas menores por maiores. Atualmente, a centralização do capital não exige a absorção das pequenas empresas, bastando que sejam subcontratadas ou franqueadas. O problema com as novas formas de centralização de capital é que elas são tão excludentes como as precedentes. Para cada pequena firma organizada pelo grande capital, várias outras são expulsas do mercado, simplesmente porque não cabem na demanda efetiva, determinada pela acumulação do grande capital. A idéia de criar uma economia solidária significa organizar unidades de produção em geral pequenas em função delas mesmas e não de um grande capital centralizador. Em outros termos, a cooperativa desempenhará o papel de uma grande franqueadora múltipla, atuando em qualquer setor, mas que será possuída e comandada pelos próprios franqueados.
A cooperativa deveria aceitar em princípio qualquer membro que queira se associar, inclusive empresa com assalariados, porque ela também gera emprego e portanto serve a seu fim maior, qual seja, o de resolver o desemprego. Possivelmente, o assalariamento não corresponderá às preferências da maioria dos cooperados, mas desde que ele seja espontâneo não deveria ser vetado. Em outras palavras, se a economia solidária der certo, ninguém será obrigado a se tornar empregado para sobreviver, já que sempre terá oportunidade de tentar a sorte como sócio de uma empresa pequena ou de qualquer tamanho ou ainda como autônomo. Se, nestas condições, pessoas preferirem trabalhar como empregados, elas não deveriam ser impedidas de integrar a economia solidária, o que significa que o patrão deverá ser cooperado, se assim o desejar. Esta é uma questão de princípio, pois o mais provável é que a grande maioria dos cooperados seja de coletivos de trabalho, cujos membros repartirão responsabilidades, poder de decisão, ganhos e prejuízos.
A economia capitalista é de fato um espaço livre para a experimentação organizacional, o que possivelmente é uma das causas de seu inegável vigor. Mas o jogo competitivo capitalista tem um claro viés a favor do grande capital: é ele que usufrui de ganhos de escala, é ele que tem acesso privilegiado a novo capital, é ele que exerce influência sobre decisões de política econômica que promovem seus interesses. A economia solidária deve ser um outro espaço livre para a experimentação organizacional, porque só a tentativa e o erro podem revelar as formas que combinam o melhor atendimento do consumidor com a auto-realização do produtor. Se estas formas organizacionais forem encontradas - e elas certamente serão muito diferentes da empresa capitalista - haverá boa probabilidade de que elas sejam a semente de um novo modo de produção.
As próximas eleições municipais serão disputadas num momento em que o problema do desemprego se toma a principal preocupação do brasileiro. Os candidatos do Partido dos Trabalhadores e de outras agremiações de esquerda não deveriam se limitar a denunciar a política econômica do governo federal, que sem dúvida contribui para o agravamento do desemprego. Este tem por causa a lógica da competição capitalista, potenciada pela globalização, mas terá de ser enfrentado não apenas por políticas econômicas mas por inovações institucionais mais audaciosas, que mobilizem os próprios desempregados e lhes permitam tomar iniciativas que os reintegrem à economia. Essa proposta deveria integrar o programa dos candidatos petistas, inclusive porque ela é a resposta certa aos que defendem o Plano Real e sustentam que o desemprego agravado é o preço a ser pago pelo povo pela estabilização dos preços.
Paul Singer é economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e membro do Conselho de Redação de T&D.