Nos últimos dois anos, a reação ao desemprego e à eliminação dos direitos sociais provocou mobilizações como não se viam há tempos. A greve geral na França, ocorrida ao final do ano retrasado, sinalizou a retomada de lutas até certo ponto, surpreendentes nesses tempos de refluxo do sindicalismo. Desde então, já se registraram importantes mobilizações em outros países da Europa Ocidental, América Latina e Ásia. Neste ano, o confronto tende a se acirrar, como resposta dos trabalhadores à dinâmica excludente de internacionalização das economias nacionais. Essas lutas, contudo, ainda expressam a resistência dos setores organizados à redefinição, em níveis mais baixos, do compromisso social que sustentou o desenvolvimento econômico no período anterior à globalização, principalmente nos países industrializados. Revelam ainda a falta de um projeto alternativo em nível nacional e internacional capaz de se contrapor ao atual modelo de globalização econômica. Há sinais, no entanto, de que, o sindicalismo começa a construir alternativas solidárias e retomar a ofensiva, sobretudo no plano da ação internacional.
Um balanço das grandes mobilizações ocorridas desde a greve geral francesa demonstra a reação dos trabalhadores face a regimes globalitários. Segundo Ignacio Ramonet, editor-chefe do Le Monde Diplomatique, em sua edição de janeiro de 1997, "chamávamos regimes totalitários os regimes com partido único que não admitiam nenhuma oposição organizada, subordinavam os direitos da pessoa à razão do Estado e nos quais o poder político dirigia soberanamente a totalidade das atividades da sociedade dominada. Esse sistema é sucedido, neste final de século, por outro tipo de totalitarismo - o dos regimes globalitários. Repousando sobre os dogmas da globalização e do pensamento único, eles não admitem nenhuma outra política econômica, subordinam os direitos sociais do cidadão à razão da competitividade e abandonam aos mercados financeiros a direção total das atividades da sociedade dominada".
Tais regimes promovem a precarização do mercado de trabalho e a eliminação de barreiras aos fluxos de capitais (sobretudo o especulativo), bens e serviços. Agem em consonância com as determinações dos organismos financeiros internacionais e já não resistem à chantagem das empresas transnacionais, que ameaçam se deslocar para países com baixo custo de mão-de-obra; promovem a redução de custos (custo Brasil, custo Itália etc.); praticam a renúncia fiscal e eliminam barreiras tarifárias que possam restringir o livre-comércio mundial, constituído majoritariamente pelas transações entre as próprias transnacionais. Sob o domínio da lógica globalitária, os custos da internacionalização são lançados sobre os trabalhadores sob a forma de desemprego crescente, precarização dos -contratos de trabalho, informalidade, corte dos gastos sociais e constantes ataques aos direitos de organização sindical. Por trás da globalização, se esconde uma economia altamente concentrada e desigual: 23 países desenvolvidos, com apenas 15% da população mundial, concentram 80% do PIB do planeta. Cerca de 350 bilionários detêm uma riqueza equivalente à renda de 45% da população mundial mais pobre, segundo da,dos oficiais das Nações Unidas.
Essa ofensiva sobre os direitos sindicais é acompanhada de estratégias empresariais que buscam cooptar os trabalhadores e torná-los parceiros face ao acirramento da competitividade internacional. Inúmeros programas de participação visam diluir a identificação de classe e convencer os trabalhadores de que seus interesses estão associados aos da empresa, não só no plano econômico mas também em nível da realização pessoal e emocional. Na realidade, essa lógica tem demonstrado que o aumento da competitividade acima da capacidade de crescimento das economias nacionais acaba se traduzindo na diminuição de empregos formais. Ou seja, o fenômeno de inclusão dos trabalhadores por meio dos programas de participação empresariais está associado à expansão da exclusão social.
Há tempos, o mercado de trabalho dos países desenvolvidos, sob o impacto da reestruturação produtiva e introdução, nos anos 70, de novos métodos organizacionais, vem se tomando mais parecido ao dos países em desenvolvimento. Informalidade, trabalho temporário, contratos precários, ampliação da jornada já não são exclusividades dos países periféricos. Ao mesmo tempo, a modernização das transnacionais e grandes empresas nacionais que operam nos países em desenvolvimento coloca os trabalhadores diante de problemas relacionados à introdução de novas tecnologias, enfrentados nos países desenvolvidos há pelo menos duas décadas. Esta tendência é ainda mais evidente face aos processos de integração econômica e comercial, sobretudo em iniciativas como o Nafta e o Mercosul, que privilegiam um modelo exclusivamente comercial. A expansão das maquilas, a imigração clandestina e o desemprego provocado pela falência de empresas expostas à concorrência externa, que não contam com o suporte de políticas regionais nos setores industrial e agrícola e nenhum instrumento de proteção social, têm resultado em altos custos para os trabalhadores. Numa palavra: os mundos do trabalho estão mais parecidos do ponto de vista das estratégias empresariais. Os problemas enfrentados pelos trabalhadores dos países industrializados já não são tão distintos. Mas essa padronização de estratégias não inclui a uniformização de direitos, salários e condições de vida. Existe, ao contrário, a ameaça do nivelamento por baixo, estimulando reações nacionalistas e xenófobas por parte dos trabalhadores que vêem o seu emprego ameaçado pelos de outros países menos desenvolvidos. As propostas empresariais de equiparação dos padrões de qualidade e produtividade do setor automotivo brasileiro em níveis de Primeiro Mundo, no decorrer das negociações da câmara setorial, não previam a equiparação dos salários, conforme proposto pelo sindicato do ABC. Se, por um lado, essa uniformidade facilita a atuação sindical internacional, por outro, as desigualdades estruturais do mercado de trabalho internacional dificultam a formulação de reivindicações concretas. Compete ao movimento sindical internacional buscar alternativas que unifiquem os trabalhadores na busca de soluções conjuntas.
As grandes mobilizações estão de volta?
Nos países da Europa Ocidental, a retomada das mobilizações teve como pano de fundo o agravamento da crise social provocada pelo desemprego e a eliminação dos direitos sociais conquistados no pós-guerra. Os ataques aos direitos dos trabalhadores adquiriram uma nova dinâmica a partir das metas macroeconômicas estabelecidas pelo Tratado de Maastricht, que define critérios para a adoção da moeda única - o euro - em 1999. De acordo com o tratado, os países da União Européia devem promover a redução do déficit e da dívida pública até alcançar os limites estabelecidos pelos acordos de convergência monetária. Na prática, isto tem representado a eliminação de postos de trabalho no setor público e cortes sociais, principalmente nas áreas da saúde e da previdência, provocando reação dos sindicatos.
Não foi apenas na França onde se registraram reações às conseqüências negativas da política de convergência. Na primeira metade dos anos 90, ocorreram greves gerais pelo mesmo motivo na Espanha e, posteriormente, na Itália. Mas, foi a greve geral francesa que revelou a extensão do descontentamento com um tipo de integração e modernização das economias nacionais que têm aprofundado a exclusão social. Curiosamente, a França é o país de menor nível de organização sindical na UE. As cinco centrais existentes reúnem, em seu conjunto, menos de 10% dos trabalhadores. Isso torna ainda mais expressivo o movimento de apoio aos grevistas e de solidariedade com as reivindicações dos trabalhadores franceses.
Após a greve geral francesa, já ocorreram mobilizações em outros países contra os cortes sociais. Na Holanda, contra a diminuição do seguro para incapacitados de trabalho; na Itália, contra a eliminação de direitos dos aposentados; na Alemanha, contra o desemprego e pela manutenção dos direitos sociais e, mais uma vez na França, por uma melhor regulamentação das jornadas de trabalho e pela aposentadoria antecipada dos caminhoneiros. As mobilizações do ano passado na Alemanha foram extremamente expressivas: a primeira reuniu 300 mil trabalhadores contra o desemprego e pela manutenção do estado de bem-estar; a segunda, ao final de outubro, reuniu 350 mil metalúrgicos contra a redução do auxílio-doença de 100% para 80% do salário.
Estas iniciativas têm um caráter defensivo, visam a preservação de direitos adquiridos na fase de construção do estado de bem-estar e reafirmam o papel tradicional dos sindicatos. Ao mesmo tempo, elas revelam importantes sinais de mudança da ação sindical no contexto da globalização. No plano nacional, estas mobilizações reafirmam o caráter solidário da luta pelo emprego e pela inclusão social, indicam a superação dos marcos economicistas que pautaram a ação sindical durante grande parte do pós-guerra e demonstram a revitalização da presença política do sindicalismo na sociedade. As lutas pela preservação dos benefícios da previdência e direito à educação (França) e pelo emprego (Alemanha) superaram as fronteiras da empresa e do contrato coletivo por categoria profissional para adquirirem uma importante dimensão política nacional, exigindo do governo a definição de políticas públicas para o enfrentamento da crise social. Isso demonstra o protagonismo político dos sindicatos, independentemente dos partidos de esquerda que não conseguiram diferenciar substancialmente as suas políticas quando estiveram no governo, a exemplo do que ocorreu na Espanha com o distanciamento da União Geral dos Trabalhadores (UGT) em relação ao Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE). No plano internacional, observa-se um dinamismo (ainda insuficiente mas cada vez maior) por parte das organizações sindicais supranacionais. A Confederação Européia de Sindicatos (CES), que agrupa as centrais dos países da União Européia (UE), é chamada a jogar um papel muito mais ativo face aos organismos comunitários que definem os critérios da integração européia. Este ano, a CES planeja realizar manifestações, reunindo as centrais dos países da UE, exigindo políticas de geração de emprego, durante, a Conferência Governamental de Amsterdã, em junho, quando serão revistos os termos do Tratado de Maastricht, especialmente a unificação monetária. Da mesma forma, as federações européias que agrupam os sindicatos por setores industriais começaram a elevar a atuação frente às empresas multinacionais. As autoridades européias, preocupadas em legitimar o processo de unificação por meio de um maior consenso social, acabaram dando um apoio fundamental ao obrigar as multinacionais, que operam em mais de dois países da UE, a instalar (e financiar) uma comissão de representantes dos trabalhadores, com direito a informação e consulta a serem definidas nas respectivas legislações nacionais. Ainda que limitada à UE, essa medida está fortalecendo de forma inédita a atuação de sindicatos em nível internacional.
Alca e Mercosul
Sinais de fortalecimento da atuação sindical internacional podem ser igualmente observados nas mobilizações ocorridas em 1996 na América Latina, particularmente nos países do Cone Sul. Por aqui, o aumento do desemprego e os ataques aos direitos dos trabalhadores fazem parte dos programas de estabilização que vêm definindo os termos da inserção subalterna da região à nova realidade da economia mundial. Principalmente no Brasil e na Argentina, os efeitos negativos das políticas de estabilização se confundem com as conseqüências perversa de um programa de integração regional em bases exclusivamente comerciais. Em que pesem particularidades políticas nacionais, as três greves gerais na Argentina, bem como as greves gerais no Brasil e Paraguai e as inúmeras greves por empresa e categoria ocorridas no Uruguai, Chile e Bolívia no ano passado, foram uma reação a tais políticas. Ao final de 1996, a realização do Dia Internacional de Luta pelos Direitos dos Trabalhadores do Mercosul, com manifestações simultâneas nos diversos países, traduziu seu caráter supranacional e as perspectivas favoráveis para a ação sindical internacional na região.
É no plano internacional que se observam os principais elementos de mudança e dinamismo do sindicalismo da região. Abaladas pelas políticas de ajuste econômico e reestruturação produtiva - que ampliam o desemprego e o mercado informal e debilitam o poder de pressão sindical em nível nacional -, as organizações sindicais do Cone Sul buscam formas de ampliação da sua atuação internacional para promover a preservação de direitos no plano nacional. A Coordenadora de Centrais Sindicais do Cone Sul que, além das centrais brasileiras, reúne a CGT/ Argentina, a CUT/Paraguai, o PIT-CNT/Uruguai, a CUT/ Chile e a COB/Bolívia, e conta com o apoio da Ciosl/ Orit (Confederação Internacional de Organizações Sindicais Livres/Organização Regional Interamericana de Trabalhadores) vem consolidando seu papel de articulação do sindicalismo na região. Por meio desse organismo, as centrais sindicais atuam junto ao Mercosul defendendo um modelo de integração com base na complementação produtiva e na justiça social. Lutamos sobretudo pela implementação de uma carta de direitos fundamentais dos trabalhadores do Mercosul; por políticas industriais ativas, incluindo a constituição de um fundo de reconversão produtiva, requalificação profissional e criação de emprego; pela democratização e participação de atores privados nos organismos, de consulta e decisão do Mercosul; e pelo respeito ao direito de organização e negociação dos sindicatos no âmbito regional. As manifetações convocadas pela Coordenadora, em dezembro passado, coincidindo com a realização da XI reunião do Conselho do Mercado Comum, reuniram 3 mil manifestantes no Brasil; mil na cidade fronteiriça de São Borja; 3 mil em Montevidéu e 2 mil em Buenos Aires. E a primeira vez na história do sindicalismo latino-americano que manifestações unitárias são realizadas concomitantemente.
Greve na Coréia
Na Ásia do Leste, 1997 se iniciou com a mais prolongada greve geral da história da Coréia do Sul, onde centenas de milhares de trabalhadores promovem manifestações diárias nas principais cidades e, no momento que escrevemos esse artigo, completavam-se mais de cinco semanas de uma paralisação contra a lei do governo que facilita demissões em massa, amplia a jornada de trabalho para 56 horas semanais sem o pagamento de horas-extras e permite a substituição de grevistas por trabalhadores temporários. O governo justifica a medida argumentando que é necessário recuperar a competitividade da economia sul-coreana. A repressão aos grevistas, a amplitude da mobilização e a duração da greve, que afetou principalmente os setores metalúrgico, de saúde e transporte, atestam o acirramento do conflito social numa região considerada, até há pouco tempo, uma das principais vitrinas das políticas industriais voltadas para exportação, e modelo a ser seguido pelos outros países em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, a participação da oficialista central FKTU traduz os dilemas das centrais que optaram por apoiar as políticas governamentais e agora, sob pressão dos trabalhadores, se vêem forçadas a voltar atrás, ampliando as perspectivas de unidade dos sindicatos. Em 1996, ocorreram mobilizações na Indonésia e na Tailândia e é bastante provável que a nova onda de greves na Coréia venha repercutir nos países vizinhos. Estas mobilizações têm em comum a recusa à ideologia predominante segundo a qual os trabalhadores devem arcar com o ônus da globalização. Desta forma, a greve na Coréia adquiriu uma evidente dimensão internacional.
As cláusulas sociais
Alternativas à globalização passam pelo fortalecimento do movimento sindical internacional e de suas organizações mais representativas: a Ciosl, no plano mundial; a Orit, no plano continental, e os secretariados profissionais internacionais, que reúnem os trabalhadores do mesmo ramo de atividade econômica. Fóruns regionais, como a Coordenadora de Centrais Sindicais do Cone Sul e a Confederação Européia de Sindicatos, adquirem uma importância estratégica na defesa dos trabalhadores.
Esses organismos internacionais necessitam, no entanto, de mudanças para enfrentar a nova realidade mundial, refletindo em suas instâncias de direção e na definição de suas políticas um maior equilíbrio entre as concepções sindicais dos países do Norte e do Sul, pois só assim podemos encontrar alternativas solidárias para problemas comuns como o desemprego. A campanha da Ciosl em favor do reconhecimento da dimensão social do comércio internacional e da introdução da cláusula social na Organização Mundial do Comércio, com base nos direitos fundamentais da OIT (proibição do trabalho escravo e infantil, direito de organização e negociação sindical e fim da discriminação de gênero e raça no mercado de trabalho), é um passo importante, embora insuficiente, diante dos desafios colocados pela globalização. A CUT reconhece os riscos protecionistas que a medida contém, sobretudo para os países em desenvolvimento. Por isso, defendemos que o combate à prática do dumping social implique sanções positivas, a participação da OIT e do movimento sindical na denúncia das violações dos direitos fundamentais e a transferência de recursos técnicos e financeiros para a busca de soluções envolvendo os trabalhadores e o movimento sindical onde aqueles direitos são violados. As sanções comerciais negativas seriam aplicadas somente aos países que persistissem com as práticas de superexploração do trabalho para enfrentar competitividade internacional. Reconhecemos ainda que cláusula social estaria limitada aos setores integrados ao comércio externo, o que reduz a sua eficácia e, por isso, a luta pelo emprego e pelos direitos sociais não pode se restringir a essa importante iniciativa. Apesar de grande esforço antes e durante a Conferência da OMC, em Singapura, o movimento sindical internacional não conseguiu superar a resistência da grande maioria dos governos que relutam em enfrentar os problemas sociais relacionados ao livre comércio no interior da OMC.
Ações solidárias
Compete ao movimento sindical internacional coordenar as lutas dos trabalhadores diante dos principais problemas colocados pela globalização e pelo acirramento da competitividade. Isso deve passar pelo reconhecimento das desigualdades da economia internacional e a necessidade de colocar a distribuição de renda em nível mundial novamente na agenda política, não só dos governos nacionais, mas também de instituições internacionais como Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial de Comércio e órgãos das Nações Unidas. Trata-se de formular alternativas capazes de superar os limites do livre-comércio. Alternativas solidárias que unifiquem as lutas dos trabalhadores dos países desenvolvidos e em desenvolvimento; que incorporem os países desconectados da dinâmica de uma globalização cada vez mais excludente; que consolidem o protagonismo político do sindicalismo.
Os organismos multilaterais precisam assumir suas responsabilidades sociais. Compete ao movimento sindical internacional, à Ciosl, às centrais afiliadas e à CUT, em coordenação com outras forças progressistas, canalizar as mobilizações e reivindicações concretas dos trabalhadores e da sociedade civil para exigir mudanças no tipo de atuação desses organismos. As Conferências da ONU sobre meio ambiente, desenvolvimento social, mulheres e habitação revelaram a incoerência dos governos que nesses fóruns reconhecem a gravidade da crise social mundial, mas não assumem a mesma responsabilidade no FMI, no Banco Mundial e na OMC. É impossível encontrar soluções para esses temas sem uma reforma profunda dos organismos financeiros internacionais e sem o estabelecimento de sólidos compromissos com o desenvolvimento social. As grandes mobilizações de 1996 demonstraram o nível de descontentamento da sociedade com relação à política dos regimes globalitários. A persistir a mesma lógica de exclusão, elas deverão se ampliar ainda mais.
Kjeld Jakobsen é secretário de Relações Internacionais da Central Única dos Trabalhadores.