Cultura

É na zona de intersecção entre o melodrama familiar e o drama social que aflora o inconsciente político do filme de Walter Salles Jr.

Grande vencedor do Festival de Berlim deste ano, Central do Brasil é hoje penhor de orgulho nacional, empolgando bravamente os ursos maiores, de melhor filme e de melhor atriz. Por conta desse sucesso merecido, já vem se acumulando em jornais e revistas uma pequena fortuna crítica, no todo reluzente, vez por outra apenas, rara, e como que de passagem, arranhada em seu brilho.

Sem desmerecer seus triunfos externos e internos, sobretudo em tempos de forçosa auto-estima pátria, e sem desvalorizar essa pequena fortuna arrecadada, podemos pelo menos começar a desdobrar suas implicações políticas mais visíveis.

Central do Brasil é evidentemente um melodrama, história de um menino de 9 anos, Josué, que perde a mãe brutalmente, atropelada por um ônibus, e história de uma escrevedora de cartas pública, dessas que escrevem pelos analfabetos do país, Dora, a qual, desaparecida a mãe de Josué, ficava sendo sua única conhecida, e testemunha de seu anseio primordial, conhecer o pai. Levando-o para casa e ludibriando-o, depois de trocá-lo por uma tevê moderníssima, vendendo-o a um segurança da Central, Dora se arrepende, sob instâncias de uma amiga ingênua, Irene, para quem até o mal tem limite, e resgata o menino das mãos dos traficantes de órgãos, em operação arriscada.

Envolvendo-se com o drama do órfão perdido na cidade grande, Dora decide levá-lo ao pai no sertão de Pernambuco e empreende uma acidentada viagem, ao longo da qual cumpre um rito de purificação gradativo, pelo amor, até conquistar a redenção pessoal, tocada que é, primeiro, do amor materno pelo menino; depois, do amor de mulher por um caminhoneiro que conhece na estrada, e finalmente do amor divino, aquele capaz da renúncia mais absurda e absoluta. Chegando a seu destino, Dora deixa o menino a salvo com os irmãos, Moisés e Isaías, ambos à espera também do pai, que viajara ao Rio para encontrar a mãe de Josué.

O percurso pessoal de Dora, e ascensional, é simetricamente oposto ao de Josué, que vai endurecendo, desconfiando de tudo e todos, com as experiências cruéis por que passa desde a perda da mãe, a ponto de mentir o nome ao conhecer o irmão Isaías, exemplo comovedor de candura cristã. Seu resgate todavia está no horizonte do filme, assegurado pela convivência regeneradora, fraterna, com os irmãos.

Não é preciso dizer que o filme apela para a simpatia universal, e que o leite da bondade humana continua a irrigar os olhos mais duros. Choramos.

Em torno desse núcleo, rodeando-o, atravessando-o, reconhecemos nosso drama social. São pobres e mais pobres, nossa única abundância, a desfilar copiosamente na tela. Da pobreza da cidade grande à miséria dos fundões do Brasil, reconhecemos nosso pesado legado colonial, e tão eterno, parece, quanto o leite da bondade humana.

O descortino da paisagem social brasileira faculta-o a viagem ao interior do país. Saindo da pobreza da Central, vamos deparando os viajantes pobres de rodoviária, os pobres de beira de estrada, os pobres dos vilarejos perdidos, os pobres de pau-de-arara, os pobres do fervor religioso, os pobres das cidades pequenas, os pobres das pobres feiras, os pobres dos confins habitacionais.

Em cada extremo do filme, nos depoimentos iniciais e finais, reunificando-o, e como que reunificando o país, histórica e geograficamente, deparamos tanto na estação da metrópole quanto na feira do sertão, os mesmos pobres a desfiar as mesmas pobres contas de sempre, na luta sem trégua por escapar ao império da necessidade. (No capitalismo nosso de cada dia, os pobres, desgraçadamente, vão ficando cada vez menos originais.)

Nesse trajeto da cidade ao sertão, Central do Brasil se converte visivelmente numa viagem de reconhecimento do país. Do país e de sua situação semimilenar, aquela mesma que vem imortalizando Os sertões. Mas, em que pesem as belas lapas da paisagem, não era esta sabidamente uma viagem de turismo, era uma viagem em busca de pai.

Tivessem encontrado Jesus... Mas não. Era Jessé. Tivessem encontrado Jesus... Mas não. Jesus já descera ao Rio. Tivessem encontrado pelo menos um pai menos caminhoneiro e mais evangélico...

Mas não. Este desencontro sistemático porém é decisivo para compreendermos que pai é este a que aspira o filme e que país é este que desenha ele. Em outras palavras, qual seu lugar ideológico, sua posição social. Pois é nesta zona de intersecção entre o melodrama familiar e o drama social, marcada pela ausência do pai, que aflora o inconsciente político do filme.

Os dois dramas, o melo e o histórico, poderiam ter corrido paralela e perfeitamente sem se cruzarem. Mas se cruzaram, e do modo aparentemente mais banal. Selando definitiva e simbolicamente a união de Dora e do menino, reencontramos, no centro do pacto de não esquecimento mútuo, o padroeiro dos pobres do Brasil, Padim Ciço, e por trás dele, naquele pobre mas revelador monóculo, nossa legião de esquecidos...

O pai querido e jamais encontrado, que vinha contraindo contornos cada vez menos carnais e cada vez mais etéreos, abrangentes, não era apenas do menino, mas de todos. Órfão, logo, não é apenas Josué, ou Dora, ou Isaías e Moisés, órfão é o país inteiro.

É o pai ausente, pois, necessariamente ausente, que integra as duas histórias, a familiar e a nacional, irmanando os dois dramas, identificando aspirações pessoais e nacionais, e desocultando de Central do Brasil sua inclinação política mais recôndita.

A par desse inconsciente político, que revela o exame mais detido do melodrama, a opção estética pelos pobres, seu consciente político, portanto, com a conseqüente exclusão das parcelas da população organizadas em instituições, sindicatos, partidos, movimentos sociais, ajuda a conferir ao país, por contaminação, aquela mesma feição melodramática que o aproxima da condição dos milhões de deserdados nossos.

O filme aspira com isso, inegavelmente, ao paternalismo, mas, verdade seja dita, do mesmo modo que repugna um pai "cachaceiro", um "bispo" em casa e um "Pimbão" na rua, aspira ao paternalismo sério, honesto, digno, trabalhador... Para fazer-lhe justiça, e nos marcos da teoria política nossa conhecida, seu inconsciente trai uma autêntica vocação populista. Não um populismo de esquerda, que seria um acinte à ordeira desorganização em massa dos pobres que retrata o filme, nem - pelo amor de Deus! - um populismo de direita, que seria uma injustiça aos mais altos sentimentos humanos que mobiliza a película - um populismo assim, digamos, puro... de centro.

Nos termos de nossa experiência histórica, é como se o filme ansiasse por uma terceira via milagrosa, anatemizando tanto o duo trágico Vargas-Jango quanto a dupla bufa Jânio-Collor. Pai dos pobres, sim, é o seu desejo mais profundo e inconsciente, não à imagem daqueles antigos, de linhagem nobre, nem destes mais recentes, de desalinho farsesco, mas um pai dos pobres criado à semelhança dos seus filhos, sério, honesto, digno, trabalhador etc., ordeiro e cordeiro.

Esse melodrama, esse populismo... de centro, que pode constituir grave problema para a teoria política e a teoria de cinema (o que não faz a grande arte!), alcança ainda outra façanha, por um curioso passe de dialética negra: consegue ficar à esquerda da era FHC.

No exato momento em que, com desfaçatez de classe conhecida até então apenas entre seus súditos mais subalternos, declara publicamente o presidente que o novo modelo econômico globalizado não é para os excluídos, vemo-lo comicamente desancado por um melodrama inocente, mas cuja história obrigava a comparecer na tela, em fotografia impecável, digna do Primeiro Mundo, nosso drama histórico, a procissão sem fim dos "abestalhados".

Tal feito estético e político, obra exclusiva do genial FHC, mereceria da parte de nosso ministro da Cultura, queremos crer, mais consideração, ou condecoração, pelo menos, igual àquela que já adorna a outra sigla irmã.

Airton Paschoa é poeta e jornalista.