Em janeiro de 2003, quando Lula foi alçado pela primeira vez à presidência da República, os índices de queimadas e desmatamento no Brasil eram os maiores da nossa história. Naquele ano, tão logo foi empossada ministra do Meio Ambiente, Marina Silva instituiu um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), envolvendo nada menos do que dezessete ministérios, sob a coordenação da Casa Civil, para enfrentar a questão. O resultado não deixou dúvidas sobre a eficácia dos esforços: em oito anos houve redução de 70,3% nas taxas de desmatamento.
Uma das ferramentas mais importantes naquele processo, foi a criação do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAM), lançado logo no segundo ano de governo e que até 2012 havia desempenhado um papel fundamental na redução das taxas de desmatamento, que chegaram a atingir 80%. A média dos dois primeiros mandatos de Lula ficaria um pouco abaixo disso (70,3%), devido aos altos índices de 2003 e 2004, que ainda refletiam a política adotada na gestão anterior, de Fernando Henrique Cardoso.
Até 2016, quando a então presidenta Dilma sofreu um processo de impeachment, os índices de desmatamento no país permaneciam estáveis, ainda que ligeiramente acima do resultado obtido em 2012, o menor de toda a série histórica segundo o Projeto de Monitoramento do Desmatamento (Prodes). A partir da gestão de seu sucessor, o até então vice-presidente Michel Temer, os índices de queimadas e desmatamento passariam a indicar claramente uma tendência de alta.
Quando Jair Bolsonaro assume a Presidência em 2019, o aumento das queimadas e do desmatamento deixa de ser uma tendência e passa a ser uma triste realidade. Sob sua gestão, os índices bateriam recordes atrás de recordes, especialmente pela atuação do deputado Ricardo Salles no Ministério do Meio Ambiente. Salles acabou com o Fundo Amazônia, que captava e destinava recursos para preservar e recuperar a maior floresta tropical do mundo, além de extinguir a secretaria a qual o PPCDAM estava vinculado e ocultar os dados de desmatamento dos três primeiros anos da sua gestão. Não foi nenhuma surpresa quando, em novembro de 2022, os números divulgados pelo Prodes apontavam uma alta de 73% no desmatamento.
O aumento meteórico dos desmatamentos no Brasil, no entanto, não foi resultado apenas da extinção da secretaria que abrigava o PPCDAM. Os esforços de Jair Bolsonaro e Ricardo Salles em acabar com o principal órgão fiscalizador do governo na área ambiental, o Ibama e com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) também surtiram grande efeito. Um levantamento inédito feito pela Agência Pública, em agosto de 2020, mostrou que houve aumento do desmatamento em oito de cada dez municípios onde as multas ambientais haviam sido reduzidas. Ainda segundo o levantamento, apenas em 2019 o governo federal diminuiu significativamente a aplicação de multas ambientais relacionadas à flora, que incluem infrações decorrentes de desmatamento e queimadas ilegais em nada menos do que 234 municípios.
Além disso, ao final de seu governo, Jair Bolsonaro anulou bilhões de reais em multas que teriam sido aplicadas pelo Ibama entre 2008 e 2019, antes mesmo de sua gestão. Não é preciso nem dizer como que o universo dos criminosos ambientais reagiu à benevolência do então presidente da República com este tipo de violação. Somam-se a estas medidas antiambientais a relação de Salles e Bolsonaro com madeireiras, mineradoras e com o garimpo ilegal; a liberação recorde de venenos agrícolas (agrotóxicos); a expansão da fronteira agrícola sobre terras indígenas e Unidades de Conservação; a tentativa de retirada de direitos dos povos indígenas e quilombolas sobre seus territórios; a criminalização de movimentos sociais, de luta pela terra e por um meio ambiente equilibrado e até o discurso negacionista climático, que ignora a responsabilidade do ser humano com relação à crise climática.
Em agosto de 2019, ainda no primeiro ano do governo Bolsonaro, alguns produtores rurais do Pará se sentiram “amparados” pelos discursos antiambientais do então presidente, mas também pela notória ausência de fiscalização e controle sobre crimes ambientais. Nos dias 10 e 11 daquele mês, o estado registrou quase 2000% focos de calor a mais do que no mesmo período do ano anterior. Após o ocorrido, quatro inquéritos foram instaurados para apurar a coordenação dos incêndios criminosos, mas apenas um previa busca e apreensão. Ao final do processo, não houve indiciamentos ou prisões e os inquéritos foram todos arquivados.
Segundo levantamento da ONG GreenPeace, as 478 propriedades que registraram fogo naquele fatídico dia já haviam recebido 662 multas aplicadas pelo Ibama. O valor total das cobranças chegava a R$ 1,2 bilhões, dos quais apenas R$ 50 milhões (4,16%) foram pagos até hoje. Em setembro daquele mesmo ano, novas queimadas na Amazônia foram tão intensas que a fumaça produzida por elas chegou até o estado de São Paulo, onde o dia virou noite. Análises das imagens de satélite apontavam que a maior parte da fumaça também era proveniente do estado do Pará.
Durante o governo Bolsonaro a Amazônia não pegou fogo sozinha, porque os incêndios não foram gerados por causas naturais e também porque outros importantes biomas, como o Pantanal, também foram vitimados pelas chamas. Em 2020, a exemplo do que aconteceu na Amazônia no ano anterior, o Pantanal teve queimados 3,4 milhões de hectares, o que corresponde aproximadamente a 23% do seu território.
Tudo isso em meio ao desmonte do Sistema Ambiental Brasileiro, aos discursos negacionistas climáticos do chefe do Executivo nacional e ao aumento dos conflitos fundiários, seja com agricultores familiares, trabalhadores sem terra, indígenas, quilombolas, ribeirinhos ou caiçaras. Como é de conhecimento público, povos e comunidades tradicionais são grandes parceiros da conservação, mas desde que não estejam privados dos seus territórios. No governo Bolsonaro a demarcação de terras ficou congelada e até as terras já demarcadas estiveram ameaçadas.
A destruição ambiental, no entanto, não ficou restrita a Amazônia e ao Pantanal, mas se estendeu pela Caatinga, pelo Cerrado, pela Mata Atlântica e pelos Pampas. Todas estas medidas geram efeitos devastadores a curto e médio prazo, ao passo que, revertê-las é sempre muito mais difícil. Enquanto uma floresta leva minutos para queimar, pode levar dezenas de anos para que uma única árvore atinja a vida adulta. O que dizer então da recuperação de todo um ecossistema, ou até de um bioma e todos os serviços ecossistêmicos que ele presta?
O estrago da gestão Bolsonaro foi intensificado em parte pelo próprio Congresso, que deveria funcionar como um sistema de freios e contrapesos, mas que falhou, graças a uma composição extremamente reacionária. Hoje, embora as queimadas e o desmatamento continuem na ordem do dia e a composição do Congresso não tenha melhorado, há uma grande diferença no que tange o Executivo.
Ao tomar posse em 1º de janeiro de 2023, Lula nomeou Marina Silva mais uma vez ministra do Meio Ambiente. O presidente sabia da competência e do compromisso de Marina na defesa intransigente da pauta socioambiental, mas também se lembrava do sucesso que lograram juntos, de 2003 a 2008. A posse de Marina novamente no Ministério do Meio Ambiente, com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, chefiado por uma mulher indígena e o comando da Funai nas mãos de outra mulher indígena, também eram sinais para o Brasil e para o mundo de que a agenda ambiental voltaria a ter uma centralidade no novo governo.
Dito e feito. Novamente Marina esteve à frente da construção da agenda ambiental do governo federal quando, ao lado da ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, ressaltou a transversalidade da pauta, envolvendo agora 23 ministérios. Dentro das prioridades de ações específicas voltadas para a agenda ambiental, no entanto, foram engajados dezessete ministérios com 33 programas, 82 objetivos, 291 entregas e 125 medidas institucionais.
Reconhecidos no mundo todo pelo êxito no combate aos desmatamentos em seus primeiros governos, Lula e Marina conduziram o Brasil ao protagonismo mundial no enfrentamento à crise climática. Além do compromisso legítimo com o meio ambiente, o presidente Lula sabe que o tema abre uma janela de oportunidades para o Brasil, seja pelas nossas condições ambientais ou pela experiência pregressa de preservação e recuperação ambiental.
A participação do presidente brasileiro e da reconhecida ministra do Meio Ambiente em fóruns internacionais durante o primeiro ano do novo governo logo começou a render frutos: após o Ministério do Meio Ambiente retomar o Fundo Amazônia este passou a receber mais recursos de ainda mais países. A comunidade internacional reconhecia a competência e importância da gestão de Lula e Marina não apenas para o Brasil, mas para os desafios que estão colocados para o mundo no enfrentamento às emergências climáticas.
De volta ao jogo
Em pouco tempo, o governo federal resgatou o Ibama e o ICMBio da situação de penúria deixada por Jair Bolsonaro. O PPCDAM foi revitalizado e criado um sistema semelhante, o PPCerrado, para garantir a preservação de outro bioma de fundamental importância para o equilíbrio ecossistêmico brasileiro. Ao lado do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino; dos povos Indígenas, Sônia Guajajara; da Gestão e Inovação, Esther Dweck; dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida e da Advocacia Geral da União, Jorge Messias, Marina divulgou uma série de medidas emergências para enfrentar a crise que assola há tempos o povo Yanomami, vítima em grande parte do garimpo ilegal e da contaminação por mercúrio. Parte dos recursos do Fundo Amazônia foi destinada ao socorro deste povo especificamente.
O resgate do Incra e da Funai também foram medidas relevantes adotadas pelo governo Lula logo em 2023. O Brasil estava voltando a consolidar seu Sistema Ambiental, como podemos notar no audacioso plano de transição ecológica anunciado pelo ministro da economia, Fernando Haddad. O plano prevê mudanças na produção de energia, na atividade industrial e na mobilidade, entre outras. Para o ministro, a transição ecológica pode levar o Brasil ao protagonismo de uma globalização sustentável e inclusiva.
Segundo dados do MapBiomas, divulgados em 2024, os índices de desmatamento da Amazônia em 2023 caíram 62,2% em comparação com o ano anterior. No território Yanomami houve redução de 92% das novas áreas de garimpo. Os números foram celebrados pela equipe do governo, que colhia os resultados de um árduo trabalho de reconstrução do sistema ambiental brasileiro, que começava a dar frutos. Agora, no entanto, além das ações em todos os biomas, a equipe também teria que se dedicar a preservação e recuperação do Cerrado, para onde o desmatamento conduzido pelo avanço da fronteira agrícola havia migrado.
Em julho deste ano o presidente Lula sancionou a Política Nacional de Manejo do Fogo, após sobrevoar uma área do Pantanal devastada por incêndios que assolaram o Mato Grosso do Sul pelo segundo ano consecutivo. É nesse contexto que, em agosto, o Brasil ficou tomado pela fumaça. Num episódio que trazia muitas semelhanças com o Dia do Fogo, o país registrou mais de dez mil pontos de queimadas, o maior número desde 1998. Parte do Amazonas foi encoberto por uma mancha de fogo, conforme captado pelo satélite europeu Corpenicus. O problema também afetou Acre, Rondônia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e o Pará, formando uma espécie de 'cinturão do fogo'. As queimadas ainda tomaram conta do estado de São Paulo e tudo acontecia ao mesmo tempo.
A falta de chuvas, o baixo nível dos rios, dos reservatórios e o ar seco, intensificados pela falta de cuidado com o meio ambiente e pelas emergências climáticas, se tornaram agravantes para a tragédia. Ambientalistas afirmam que o avanço das queimadas e do desmatamento ao longo dos anos interfere negativamente na própria capacidade de regeneração das florestas. Segundo a ministra Marina Silva, o governo trabalha com a suspeita de uma ação criminosa articulada, como foi o Dia do Fogo, em 2019. A hipótese se fundamenta em depoimentos de suspeitos ouvidos pela Polícia Federal e no curto espaço de tempo entre uma queimada e outra, ainda que tenham acontecido a centenas ou milhares de quilômetros de distância.
A ministra lembrou que eventos como este não fazem parte do nosso histórico de combate à incêndios porque, até o Dia do Fogo, nunca haviam acontecido. Durante uma entrevista coletiva, Marina lamentou os impactos destes crimes para o meio ambiente e a vida, mas também lembrou que se estes crimes tivessem ocorrido na gestão anterior, as consequências teriam sido ainda piores. Segundo o diretor geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, há hoje 31 inquéritos em andamento para apurar condutas criminosas ligadas aos incêndios na Amazônia e mais vinte relacionadas ao Pantanal, além de duas investigações abertas para apurar a situação em São Paulo. O quadro é muito grave, mas bem diferente do passado, quando além de estimular tais crimes, o governo federal abafava as investigações.
Um estudo recente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com dados do INPE apontou que, no Pantanal, 95% do fogo tem origem em propriedades privadas e quase nenhum deles tem indícios de ignição por causas naturais. Segundo a Defesa Civil, 99,9% dos incêndios no interior de São Paulo foram causados por ação humana, um método conhecido e tradicionalmente utilizado especialmente por usinas sucroalcooleiras, entre outras culturas no estado. Segundo o levantamento, poderíamos deduzir que são basicamente incêndios criminosos para fins de agropecuária. Além disso, é grande a chance de que estas queimadas também tenham, como objetivo secundário, abalar a imagem de um governo que colocou a centralidade na pauta ambiental.
Diante da tragédia, alguns estados chegaram a proibir o uso do fogo, mesmo em propriedades privadas. Além disso, se há indícios de que criminosos estão provocando incêndios coordenados, seja para limpar seu terreno ou tensionar as relações com o governo, é preciso que haja investigação e punição dos responsáveis. A prática é muito comum entre latifundiários e grileiros de terras, por isso, em 2020, apresentei na Câmara dos Deputados um projeto de Lei (PL 5014/20) que prevê a proibição do uso de terras desmatadas ilegalmente, seja para fins de urbanização ou de agropecuária. Não podemos admitir que um criminoso que destrói o meio ambiente e coloca em risco as condições de vida de milhões de pessoas, sejam beneficiados com o resultado dos seus crimes e possa fazer o que quiser da terra desmatada.
Ainda que o ritmo de tramitação de um projeto de lei seja lento, isso não pode servir de justificativa para a omissão da Câmara dos Deputados e do Senado Federal em meio à esta grave crise que estamos atravessando. O Congresso tem não apenas a obrigação de pautar projetos e programas de proteção e recuperação ambiental, como também uma parcela da responsabilidade sobre a tragédia. Quem não se lembra de um Projeto de Lei que colocava em risco a preservação dos Pampas tramitando na Câmara dos Deputados enquanto o Rio Grande do Sul era castigado pelas chuvas?
A Frente Parlamentar Ambientalista, da qual sou o coordenador, divulgou uma lista de 40 projetos capazes de ajudar no enfrentamento às consequências das emergências climáticas, mas estes infelizmente tramitam muito mais lentamente do que aqueles que flexibilizam as leis ambientais. Estas são algumas das consequências de uma composição cada vez mais reacionária do Congresso, onde as maiores bancadas, ligadas essencialmente ao agronegócio, defendem interesses particulares, ainda que para isso transformem o País num inferno.
O governo Lula acertou ao sancionar a Política de Manejo do Fogo, que precisa ser fortalecida e o projeto de Transformação Ecológica, capaz de conduzir o Brasil no caminho do desenvolvimento sustentável. Além disso, o enfrentamento aos incêndios criminosos demanda outras ações urgentes. É preciso participação articulada das polícias Federal e Rodoviária, das polícias Civis e Militares, das brigadas de incêndio e Corpos de Bombeiro, além é claro do trabalho indispensável do Ibama e do ICMBio, suportados pelos sistemas de monitoramento de queimadas e desmatamento. O julgamento de crimes ambientais graves também precisa de maior celeridade, dando consequência aos atos praticados.
Nilto Tatto é deputado federal (PT-SP), coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista e do NAPP Meio Ambiente da Fundação Perseu Abramo