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Nossas classes dominantes não querem enxergar as ruínas que provocaram. Querem matar a memória, ficar na zona de conforto apenas dos ônus impostos aos trabalhadores

Adelmo Oliveira lança no dia 19 de setembro, na Reitoria da Universidade Federal da Bahia, em Salvador, o livro A Metáfora Incendiada, com ilustrações de Caó Cruz Alves. Uma edição primorosa, pela combinação de qualidades – um extraordinário poeta, um notável ilustrador. O que me impressiona é que seja lançado no momento em que estamos mergulhados nessa metáfora, transformada em trágica realidade – a de um país em chamas, marcado pela acelerada destruição de direitos sociais e políticos, pela tentativa de apagar da memória lideranças históricas do nosso povo, como Getúlio Vargas e Lula, sobretudo as contribuições que deram à Nação, especialmente as destinadas a melhorar as condições de vida do povo.

Nada mais simbólico dessa metáfora incendiada do que o incêndio do Museu Nacional. Penso, reflito, tento capturar os significados dessa tragédia, o que não é fácil quando feito a quente, no calor da hora, e que calor.

Somos um país de classes dominantes originárias do modo de produção escravista, acostumadas à exploração brutal da força de trabalho. A escravidão no Brasil perdurou por quase quatro séculos, marcando a ferro e a fogo a nossa história, sem que as classes dominantes tenham aprendido quaisquer lições civilizatórias ou democráticas – ao contrário, sempre que podem, que a correlação de forças permite, elas provocam retrocessos, tentando sufocar conquistas duramente alcançadas pelas classes populares.

Quaisquer mudanças, quaisquer reformas eventualmente realizadas em favor dos trabalhadores, na primeira oportunidade são golpeadas pelos de cima. O golpe de abril de 2016 representou um desses momentos, um dos maiores retrocessos de nossa história, ao menos se pensarmos o período dos anos 40 do século passado até os dias de hoje. De um golpe, pretendeu-se mudar radicalmente as relações de trabalho, precarizando-as violentamente, atingindo desde a Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943, até as conquistas mais recentes, alcançando, sobretudo, o governo Lula.

Além disso, tudo na esteira da afirmação do neoliberalismo, se quis, com a aprovação da Emenda 95, caminhar para a destruição dos serviços essenciais de responsabilidade do Estado, tornando-os todos privatizados, ao congelar investimentos públicos por vinte anos, medida de um potencial destrutivo impossível ainda de se medir – de consequências trágicas para a população mais pobre especialmente.

A educação pública é uma das mais afetadas com a tal emenda. Antes, no entanto, de chegar a isso, ao plano específico das consequências para a educação e a cultura, registro que nossas classes dominantes não suportam a memória, não aguentam mirar-se no espelho da história, são incapazes de olhar para o rastro de violências que deixou para trás.

Só por analogia me recordo da interpretação que Walter Benjamin faz do quadro de Paul Klee, Angelus Novus, que me parece nos dar lições. O anjo parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente, olhos esbugalhados, boca dilatada, asas abertas – esse o aspecto do anjo da história para Benjamin.

O rosto está voltado para o passado, vê uma catástrofe, uma acumulação de ruína sobre ruína, aos seus pés.

O anjo gostaria de deter-se para despertar os mortos e reunir os vencidos, mas uma tempestade sopra do paraíso, prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las, é impelido irresistivelmente para o futuro, ao qual ele dá as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade, concluirá o profeta visionário, o marxista heterodoxo, ou marxista da melancolia, essa tempestade é o que chamamos progresso.

Sempre que o nosso progresso quis deixar de ser esse monte de ruínas, sempre que se pretendeu compartilhá-lo com os de baixo, nossas classes dominantes agiram contra, e violentamente na maioria das vezes, sempre retirando direitos, independentemente da forma com que davam golpes – o último foi jurídico-midiático-parlamentar, dispensando-se os tanques.

Só que diferentemente do anjo da história, nossas classes dominantes não querem de modo algum enxergar as ruínas que provocaram, não querem ver as trágicas marcas da história, não querem se confrontar com seu passado de exploração e de sangue.

Querem matar a memória, ficar na zona de conforto apenas dos ônus impostos aos trabalhadores nos dias de hoje, ônus que ela naturaliza como necessários ao progresso. A memória é para morrer de morte matada. Assim tem ocorrido com a ditadura de 1964, cujos crimes ainda estão longe de serem devidamente revelados, e esse acobertamento não se dá por acaso, mas por uma ação deliberada dos de cima.

O incêndio do Museu Nacional, o mais antigo do país, completados dois séculos este ano, centro de cultura, pesquisa, fundamental à educação, não é um acidente. É consequência de uma política deliberada de abandono das universidades públicas, do corte de verbas, neste caso da Universidade Federal do Rio de Janeiro, à qual está vinculado o museu, que não estava recebendo mais sequer as verbas integrais para sua manutenção – ao que se sabe, R$ 520 mil mensais.

O ajuste fiscal, as políticas destinadas a privilegiar o capital financeiro, a chamada austeridade, a política neoliberal do governo Temer incendiaram um dos maiores museus de antropologia e história natural das Américas, quase 20 milhões de itens perdidos. Não tem acaso – insista-se. Logo ao chegar, o golpe extinguiu o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, e o Ministério da Cultura, este só mantido depois devido a pressões, e só simbolicamente porque não tem qualquer política cultural.

O incêndio carrega em si a marca de classes dominantes incapazes de suportar a carga da história. Grande parte de nossa memória histórica consumida pelas chamas. Poderíamos falar em irresponsabilidade, descaso com o patrimônio histórico e cultural – que são reais. Mas, mais do que isso, é resultado de uma política deliberada. Um crime anunciado. Melhor, para nossas classes dominantes, que nossa memória esteja sob as cinzas, relegada ao esquecimento. Não perder a esperança: há de surgir por decisão da maioria, um governo capaz de repor políticas culturais democráticas, considerar a educação e a cultura como fundamentais para o povo brasileiro, valorizar a ciência e a tecnologia, a soberania nacional, respeitar o povo, sua história, preservar zelosamente sua memória.

Inescapável lembrar de Luzia. Morrera aos 23, 24 anos aproximadamente 13 mil anos atrás. O fóssil foi localizado na gruta Lapa Vermelha, no município de Pedro Leopoldo, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, por uma missão francesa no início dos anos 70 do século passado. Talvez a primeira brasileira. Estava no Museu Nacional. Resistira a tudo durante todos esses milênios. O incêndio a sepultou definitivamente. A morte e a morte de Luzia. Perdemos uma referência de nossa ancestralidade. Nossa memória virando cinzas.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, de Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros