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Existe a possibilidade real de que o país se reduza ao território onde vivem os xiitas ao sul, e o restante seja dividido entre os curdos e o Estado Islâmico

A estratégia dos protagonistas da Primavera Árabe que varreu vários países do Norte da África e do Oriente Médio era sobretudo derrubar e substituir os governos autoritários do momento. Em alguns lugares visava-se simplesmente trocá-los de acordo com os interesses dos setores que se mobilizaram e, em outros, o objetivo era mais nobre ao também propor mecanismos democráticos para eleger novos governantes mais atinados com os interesses da maioria de suas populações.

Num balanço dois anos e meio depois, verifica-se que as transformações com caráter democrático foram extremamente modestas e praticamente só vingaram, com algumas dificuldades até hoje, no Marrocos e na Tunísia. Nos demais países houve desde a regressão ao status quo anterior, como no Egito e no Iêmen, até uma guerra civil com cerca de 100 mil mortos, como ocorreu na Síria, além do esfacelamento da nação, no caso da Líbia. Tal como este, o Iraque, que não esteve envolvido na “Primavera”, corre agora o risco de seguir um processo semelhante.

Para analisar o que acontece atualmente é necessário considerar alguns fatos históricos. Em primeiro lugar, o papel das grandes potências, em especial Inglaterra e França, que no final do século 19 e início do século 20 geraram as fronteiras que separam os atuais países árabes, sem considerar os territórios ocupados por diferentes etnias. Segundo, além da existência de etnias minoritárias, os povos árabes são divididos entre si por clãs e lideranças regionais. E, em terceiro lugar, a "unidade" existente em alguns países como Líbia, Síria e Iraque, desde que alcançaram a independência após a Segunda Guerra Mundial, somente foi mantida por meios autoritários.

Todos esses elementos são encontráveis no Iraque, somados a uma divisão de classes entre, pelo lado da maioria da população, pequenos agricultores extremamente conservadores e os pobres das zonas urbanas, cujo número aumentou sobremaneira com as sanções econômicas aplicadas contra o país ao término da Guerra do Golfo, em 1991, e após a invasão americana e inglesa, em 2003. Pelo lado da elite, há sobretudo os comerciantes e funcionários do governo, incluindo os membros das Forças Armadas.

A principal etnia minoritária no Iraque são os curdos. Essa população se distribui entre quatro países da região – Turquia, Iraque, Síria e Irã. As grandes potências vencedoras da Primeira Guerra Mundial lhes havia prometido um território após a derrota e esfacelamento do Império Otomano, mas nunca cumpriram essa promessa. A criação do "Curdistão" vem sendo reivindicada de lá para cá e, com o fim do governo de Saddam Hussein em 2003, surgiu a possibilidade de instalação de um governo curdo autônomo no norte do Iraque, além de os curdos possuírem uma milícia armada chamada Peshmergas.

A religião predominante no país, inclusive entre os curdos que são sunitas, é o islamismo, mas a população majoritariamente árabe se divide entre sunitas e xiitas, sendo que estes últimos são mais numerosos e vivem, grande parte deles, no sul do país, incluindo a capital Bagdá. O governo de Saddam Hussein era razoavelmente laico, mas ele próprio e seus auxiliares mais próximos eram sunitas e do clã de Tikrit, uma região situada no centro norte do Iraque. Ele submetia curdos e xiitas com mão de ferro para assegurar a unidade do país e promoveu vários massacres dessas comunidades, inclusive com utilização de armas químicas.

Dessa forma, a queda de Saddam Hussein após a invasão americana e inglesa, bem como sua posterior execução, deu novas perspectivas para essas duas comunidades, embora não tivessem apoiado o ataque estrangeiro. Os curdos alcançaram certa autonomia regional e, em 2006, o Parlamento do Iraque elegeu Jalal Talabani, um curdo, presidente do país, assim como os xiitas, na mesma ocasião, conseguiram eleger o primeiro-ministro, Nuri al-Maliki, reeleito em 2010 e 2014. Apesar de algumas tentativas, o bloco sunita no Parlamento não aceitou se incorporar ao governo devido às iniciativas que este promoveu para eliminar ex-partidários de Saddam do governo e das Forças Armadas, o que o levou para a oposição.

A resistência à ocupação estrangeira desde o início partiu desse setor e suas ações armadas prosseguem até hoje. Os americanos pressionaram o governo para que fizesse concessões aos sunitas e, diante da recusa de Maliki, retiraram suas tropas do Iraque em 2011 como forma de chantageá-lo.

Esse quadro deu margem para o que está ocorrendo agora. Originalmente vinculado à Al Qaeda, um dos grupos que lutavam na Síria pela derrubada do governo de Bashar al Assad mudou de estratégia. A partir de um território sírio que dominava na fronteira com o Iraque, lançou um ataque contra este último sob a consigna de criar um "Estado Islâmico do Iraque e Levante" – EIIL, ou ISIS, na sigla em inglês –, em vez de prosseguir na tentativa de mudar o governo sírio. Atualmente a denominação é apenas "Estado Islâmico" (EI).

Apesar de contar, de início, com no máximo 6 mil combatentes, a ocupação da área central do Iraque se deu rapidamente e enfrentou pouca resistência, uma vez que os sunitas iraquianos estão ressentidos pela perda de influência sobre o governo e as tropas regulares tampouco se sentiram motivadas para enfrentar os invasores – muitos inclusive desertaram, pois os milicianos do EI se mostraram taticamente violentos e cruéis. Ao proclamar um "Estado Islâmico" fundamentalista, puderam também contar com a simpatia dos conservadores agricultores iraquianos da região. Os curdos, por sua vez, aproveitaram a situação para fortalecer sua autonomia. Não permitiram que o EI ocupasse a cidade de Kirkuk e passaram a comercializar com o exterior o petróleo extraído no "Curdistão iraquiano".

Para barrar o avanço dos invasores, o governo central conta com algumas tropas ainda fiéis e com a formação de milícias xiitas que têm pouca experiência em combate. Há também apoio externo da Síria e do Irã, além de armamento russo, embora nenhum deles vá intervir diretamente em território iraquiano. Um dos movimentos diplomáticos que estão sendo feitos é pressionar a Arábia Saudita a suspender seu apoio ao EI e também convencer outros países da região a se opor ao grupo, tendo em vista que o termo "levante" não se refere apenas à Síria, mas também aos atuais territórios palestino, israelense, jordaniano e libanês.

Segundo anunciou o líder do EI, Abu Bakr al-Baghdadi, o Estado Islâmico se transformou em um califado, regime de governo que existiu no Império Otomano até a proclamação da República na Turquia, onde o governante era ao mesmo tempo o mandatário civil e religioso, pois supostamente descendia de Maomé, o profeta de Alá.

É possível que o governo Maliki consiga reverter a situação aos poucos, mas existe a possibilidade real de que o Iraque se reduza ao território onde vivem os xiitas no sul do país, com o restante do país dividido entre os curdos e o Estado Islâmico. Se esse esfacelamento ocorrer, é mais um problema a ser depositado na conta das grandes potências.

Kjeld Jakobsen é consultor de Relações Internacionais