A estrondosa repercussão do filme Tropa de Elite desafia a interpretação sobre o gosto do povo
A estrondosa repercussão do filme Tropa de Elite desafia a interpretação sobre o gosto do povo
Não há nada mais escorregadio, hoje em dia, do que interpretar os sinais que vêm da mídia a respeito do que o "povo" gosta e quer. Os meios de comunicação, mediante operações cada vez menos sutis de manipulação, têm primado por atribuir às reações populares as projeções de sua própria agenda política.
A repercussão do filme Tropa de Elite, por exemplo, é eloqüente a esse respeito. Antes mesmo de ser lançado, o filme já era best-seller nas bancas de DVDs pirata. Até agora, ninguém sabe exatamente como aconteceu, mas o fato é que o filme já teve seu primeiro teste de popularidade nesse enorme mercado em que, com certeza, está boa parte do consumo de música e cinema dos mais pobres e dos mais jovens.
Nos cinemas, fez uma trajetória de blockbuster americano – levou mais de 2 milhões de espectadores e tornou-se o filme brasileiro mais visto do ano. Na seqüência, a trilha do filme se espalhou pela internet, o capitão Nascimento virou sinônimo de herói, expressões do filme (como "pede para sair") incorporaram-se à linguagem coloquial.
Qualquer que seja a interpretação que se faça a respeito de Tropa de Elite, não se pode escapar da constatação de que há ali alguma coisa que "pegou geral". O problema consiste em desvendar qual é essa coisa.
Nas leituras mais conservadoras, para dizer o mínimo, o filme fez sucesso por que "trata bandido como bandido". A máxima, como é do costume das máximas, pára por aí, numa frase que aparentemente não admite contestação, mas está carregada de ilações — se o "povo" gosta de ver isso na tela, segue-se imediatamente que apoiará qualquer tipo de medida mais violenta e radical que se tome em relação ao tráfico.
Essa leitura, entretanto, ignora de propósito que existe uma função catártica na representação, em qualquer uma. Se o filme provoca uma reação emocional intensa — e Tropa de Elite, nesse sentido, é bastante perturbador —, isso não implica necessariamente que essa emoção se transforme nem em consciência, nem em ação, nem mesmo em algum tipo de conclusão racional, elaborada a respeito do que se está vendo. O perigo é que essa emoção à deriva pode ser capturada, traduzida, transcriada na medida do desejo de cada qual que assim se arrogue o direito ou se sinta no dever de fazê-lo. E, está claro, isso foi feito, quase à exaustão.
Entre as dezenas de artigos publicados a propósito do filme de José Padilha, o de Bernardo Carvalho, publicado na Folha de S. Paulo (edição de 6 de novembro), foi dos poucos a captar, com argúcia e muito pessimismo, esse movimento: "Um mundo sem reflexão, onde a violência da realidade obriga o sujeito a deixar de pensar para agir, cedendo ao senso comum, ao simplismo e ao pragmatismo cínico, recorrendo ao preconceito e a ações impensadas que antes ele condenava, quando essa mesma realidade ainda não o atingia diretamente e ele podia repetir belas teorias da boca para fora, não é um mundo menos hipócrita (como alguns gostariam), é um mundo pior. ( ... ) É desse mundo (o do fracasso do pensamento) que trata Tropa de Elite: onde só é permitido escapar à violência (e deixar de ser violento) fora da realidade — tudo o que o capitão Nascimento quer, ou diz querer, é sair desse mundo (onde quem pára para pensar morre), para poder cuidar em paz do filho e da família. (...) Com o desbaratamento das idéias, este passa a ser um mundo de polarizações em torno de questões simplistas e indiscutíveis. Não se produz pensamento; tomam-se partidos".
O que pode ser interessante, e talvez aponte para uma perspectiva menos apocalíptica que a de Carvalho, é investigar como se produzem esses "partidos", para tomar distância e poder parar para pensar sem correr o risco de levar uma bala perdida.
Bia Abramo, jornalista