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Nem os turcos são árabes, embora no Ocidente costumem considerar preconceituosamente todos como a mesma coisa, nem a Turquia é politicamente igual

O mês de maio terminou com uma série de manifestações populares violentamente reprimidas pela polícia nas cidades turcas de Istambul, Izmir e Adana e na capital Ancara. A mídia criou uma série de estereótipos para tentar explicar sua motivação – em particular, uma suposta "Primavera Turca", como se a situação lá fosse igual à dos países árabes do Oriente Médio e do norte da África. Nem os turcos são árabes, embora os ideólogos ocidentais costumem considerar preconceituosamente todos como a mesma coisa, nem a Turquia é politicamente igual a países como Tunísia, Egito, Iêmen, entre outros, embora o funcionamento do Estado turco seja tradicionalmente autoritário.

A Turquia atual é o Estado remanescente do Império Otomano, que ascendeu, chegou ao seu auge e decaiu entre os séculos 14 e 20, tendo ocupado diversas nações, desde as portas de Viena, passando por Bálcãs, Grécia, Norte da África, Oriente Médio, até Península Arábica. No seu período de declínio mais acentuado, entre os séculos 19 e 20, houve diversas disputas territoriais com outras potências da época, bem como enfrentamentos com movimentos nacionalistas e independentistas com extrema violência, levando, por exemplo, ao genocídio armênio que durou do final do século 19 até 1917.

O regime de sultanatos que governaram o Império Otomano e posteriormente a Turquia foi substituído definitivamente pela república em 1923, dirigida por Kemal Ataturk, que governou o país por quinze anos. Embora seja considerado o "pai" da Turquia moderna e do Estado laico, nem de longe foi um democrata e em torno de seu governo estabeleceu-se uma burocracia estatal defensora dos interesses da burguesia turca e garantida pelas forças armadas.

O sistema pluripartidário só foi inaugurado no início dos anos 1950, mas introduziu regras de funcionamento que estimularam o bipartidarismo e a legislação que, até hoje, permite ao governo limitar sobremaneira a liberdade de imprensa. A liberdade sindical foi estabelecida formalmente apenas na década seguinte. Entre os anos 1960 e 1980, houve vários golpes militares, sempre sob o argumento de defesa da democracia e do Estado laico. Além disso, a Turquia foi uma peça importante no enfrentamento do comunismo durante a Guerra Fria, tornando-se membro da Otan e aliado importante dos EUA. Nas duas guerras do Iraque permitiu o uso de suas bases aéreas pelos americanos.

Outra característica do país é a existência de cerca de 15 milhões de curdos (20% da população da Turquia) politicamente reprimidos e proibidos de cultivar seu idioma e cultura. Eles reivindicam a autonomia de seu território, inclusive por meio de luta armada, até recentemente.

Nesse quadro, tornou-se muito difícil a implantação de partidos representativos de esquerda. E o atual primeiro-ministro, Recep Tayyup Erdogan, e seu Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), de direita e defensor de valores conservadores islâmicos, assumiram o governo no final da década de 1990 como uma reação dos setores mais conservadores da população – compostos por pequenos agricultores, comerciantes e burguesia financeira – à burocracia estatal, supostamente defensora do Estado laico kemalista, mas na verdade enterrada na corrupção e defesa de interesses privados.

Os dois mandatos de Erdogan se popularizaram até determinado momento por promover alto crescimento da economia, comprometer-se a respeitar as tradições políticas e culturais da Turquia, dar início a negociações com as organizações curdas e a uma política externa de ampliação da influência turca na região e de "zero problema" com os países vizinhos, mas o fato é que há vários retrocessos e medidas autocráticas que ajudam a explicar os atuais protestos.

Erdogan classifica os manifestantes de bêbados, terroristas e vândalos e há também afirmações de que o Partido Republicano Popular (CHP), que tem base na burocracia estatal mencionada anteriormente, estaria por trás das manifestações. No entanto, tudo indica que a origem delas está no somatório de uma série de descontentamentos com o governo e com a maneira autoritária e centralizadora como Erdogan governa – em particular, sua intenção de alterar a Constituição para ampliar os poderes da Presidência da República, cargo ao qual pretende se candidatar quando terminar seu mandato como primeiro-ministro. Mesmo a política externa se tornou agressiva, principalmente em relação à Síria, podendo levar a uma intervenção armada direta contra o país vizinho e não apoiada pela maioria da população.

Entre as medidas impopulares que adotou recentemente estão a proibição do consumo de bebidas alcoólicas após as 22 horas e restrições ao aborto, o que levanta suspeitas de, na verdade, Erdogan pretender impor costumes conservadores e fortalecer os laços entre o Estado e a religião islâmica. Na celebração do 1º de Maio deste ano, os sindicatos foram proibidos de se reunir na Praça Taksim, em Istambul, um local simbólico, pois nas comemorações da data em 1977, com a presença de 500 mil pessoas, uma ação de franco-atiradores matou 38 trabalhadores e feriu centenas de outros. A atual alegação governamental foi a de falta de segurança na praça, e houve dura repressão contra a tentativa dos sindicalistas de ocupá-la. Poucos dias depois, no entanto, foi liberada para uma comemoração da torcida de um dos clubes de futebol mais populares da Turquia.

O estopim dos atuais protestos foi o início da derrubada de árvores do Parque Gize promovida pelo governo para construir um shopping center. Próximo da Praça Taksim, esse parque é a única área verde no centro de Istambul e serve de área de lazer para muitas pessoas.

As manifestações que duram quase duas semanas, com dois participantes mortos e milhares de feridos e presos, vêm sendo reprimidas pela polícia turca com muita violência e gás lacrimogêneo – aliás, made in Brazil –, realimentando a revolta da sociedade. Essa violência não é novidade na Turquia, pois o comportamento histórico da polícia local frente a manifestações faria o Batalhão de Choque da PM paulista e a Rota parecerem dois grupos de escoteiros. A mídia turca, por sua vez, sempre escondeu e continua escondendo essa parte. A omissão atual, porém, tem sido superada pela comunicação nas redes sociais, e a repressão policial/governamental foi colocada a nu.

Como as manifestações não se limitam a Istambul, fica claro que o problema não é apenas a preservação do Parque Gize. Diversos setores sociais, como organizações feministas, republicanas, sindicatos, estudantes, ambientalistas, grupos de esquerda, entre outros, exigem a renúncia de Erdogan. O primeiro-ministro, porém, vem brandindo o argumento dos mais de 50% dos votos obtidos na eleição parlamentar de 2011 não só para prosseguir com seu mandato como também para levar adiante as medidas impopulares que geraram os protestos.

Resta ver o resultado dessa queda de braço, se trará algum tipo de mudança e construção de alternativas políticas, pois uma parcela importante dos turcos está percebendo que uma burocracia estatal corrupta, autoritária e defensora de interesses privados foi meramente trocada por outra. Infelizmente, apesar do vigor dos protestos, a ausência de articulação entre os diferentes movimentos e de propostas políticas consistentes aponta, quando muito, para alguma "suavização" das iniciativas de Erdogan, e não para mudanças estruturais.

Kjeld Jakobsen é consultor de Relações Internacionais