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Com raras exceções, não houve nenhum movimento articulado propondo o afastamento desse presidente inepto, e que, apesar de tudo, ainda é aprovado por 33%

Um presidente da República para ser bem-sucedido em sua gestão precisa agir em sintonia com a agenda nacional em seu período de governo e reunir condições de governança, que podem ser resumidas em: capacidade financeira do Estado, capacidade institucional e instrumental e capacidade operacional. Bolsonaro não reuniu nem observou nenhum desses pressupostos, razão do fracasso de sua gestão.

A agenda nacional, por sua vez, é influenciada por três fatores: pelo momento histórico do país, pelas aspirações e demandas da sociedade e pelas prioridades do governo. Se analisarmos historicamente, o governante que não teve foco ou não agiu em sintonia com a agenda do país geralmente fez um governo medíocre ou mal-avaliado, quando não renunciou ou foi impedido. Há uma exceção nesse período, que diz respeito ao segundo mandato do governo Dilma, vítima de uma perseguição implacável dos tucanos e de um golpe promovido pela direita reacionária deste país.

Desde a Revolução de 1930, a agenda nacional tem sido razoavelmente clara, e alguns governantes souberam atuar em sintonia com ela, deixando seus legados em conformidade com o momento econômico, político social da Nação. Se analisarmos os governos de lá para cá, podemos destacar os legados deixados por alguns presidentes, inclusive no período militar. Vamos dividir as realizações governamentais em dois períodos: de 1930 a 1984 e da redemocratização até o governo Bolsonaro.

No primeiro período, registramos os legados governamentais mais importantes desse ciclo. Nos governos de Getúlio Vargas os principais legados foram a reforma política (1932) e a urbanização e industrialização do país, a partir de um projeto de Nação; no governo JK – Juscelino Kubitscheck, um dos legados relevantes foi a modernização do país, período em que trouxe a indústria automotiva para o Brasil; e nos governos militares houve a substituição de importação e o investimento em infraestrutura, com a criação várias estatais estratégicas para fomentar o desenvolvimento do país.

No segundo período, podemos mencionar, no governo Sarney, a redemocratização (anistia, constituinte, eleições diretas, remoção do entulho autoritário etc.); no governo Collor, que foi uma fraude, houve apenas promessa de reformas estruturais, mas teve início a abertura econômica, e cujo prosseguimento foi frustrado pela cassação de seu mandato por desvio de conduta; nos governos FHC e Itamar, os legados foram a estabilidade econômica e fiscal, a partir do Plano Real; destacando-se, no governo FHC, as mudanças na ordem econômica e as privatizações; nos governos Lula, a ênfase foi no enfrentamento das desigualdades (com políticas sociais, como o Bolsa Família e políticas afirmativas) e na retomada do crescimento, com o lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em 2007. Nos governos Dilma, deu-se continuidade aos investimentos em infraestrutura, através do PAC, no primeiro mandato, e à expansão do Bolsa Família (Brasil Sem Miséria); no segundo, e em seguida à sua reeleição, conforme já registrado, foi vítima de perseguição liderada pelos derrotados na eleição, que resultou no golpe parlamentar de 2016. O governo Temer foi um desastre na perspectiva dos trabalhadores e de quem depende da prestação do Estado, pois sua gestão resultou na destruição de direitos, como a reforma trabalhista, terceirização, teto de gasto etc. E, no governo Bolsonaro, além do aprofundamento do desmonte do Estado de proteção social, restou como legado, até aqui, quase 350 mil mortes por omissão no enfrentamento da Covid-19, além da dilapidação do patrimônio público por meio da política de “desinvestimentos”.

A boa governança, de outra parte, depende do bom funcionamento do governo e do Estado em três dimensões: a) da capacidade financeira, que pressupõe recursos suficientes para manter o funcionamento da máquina pública e atender às demandas da população, preferencialmente mediante um equilíbrio entre receita, despesa e dívida pública; b) da capacidade institucional e instrumental, cujo sucesso depende da eficiência da máquina pública e da adequada condução dos mecanismos de regulação e controle; c) e da capacidade operacional, isto é, da interação civilizada com a sociedade, com a política, particularmente com os demais poderes constituídos, e com o próprio mercado.

O governo Bolsonaro não cumpriu nenhuma dessas condições, nem em relação à agenda nacional, porque faz o oposto do que a Nação deseja, nem tampouco procurou criar as condições de governança, como demonstraremos nesta coluna. Pelo contrário, mostrou-se absolutamente disfuncional. Seu governo está sendo mais de demolição do que de construção de qualquer política pública relevante, além de criar toda sorte de dificuldade e manter uma relação sempre conflituosa e inconsequente com a sociedade, com o mercado, com a imprensa e, até recentemente, com o Parlamento.

Na dimensão financeira aprofundou a crise fiscal, de um lado negando-se a melhorar a arrecadação, e, de outro, promovendo corte de despesas, inclusive em despesas essenciais, prejudicando as políticas públicas direcionadas aos mais vulneráveis. Na dimensão institucional e operacional, aprofundou o desmonte da máquina pública iniciado no governo Temer, além de ter suspendido os concursos públicos e promovido o congelamento salarial dos servidores e ter avançado na desregulamentação de vários marcos regulatórios para favorecer o poder econômico, ainda propôs ao Congresso uma “reforma administrativa” altamente destrutiva. Na dimensão operacional, não apenas se revelou inapetente e omisso, mas também hostilizou os potenciais interlocutores na sociedade, no mercado, na mídia, na academia e nas relações internacionais. Apostou numa aliança, no plano externo, com o derrotado Donald Trump, sem que tenha colhido frutos benéficos aos interesses nacionais, e até mesmo semeou discórdia com parceiros estratégicos como China e Argentina.

A tragédia já era anunciada. Afinal, a agenda do Brasil no governo Bolsonaro era, no primeiro ano, a reconstrução do Estado e a retomada do crescimento econômico e do investimento na recuperação do emprego, parcialmente destruída durante o governo Temer, e nos dois anos seguintes, o enfrentamento da Covid-19, que assolou o Brasil e o mundo. Mas o governo, por razões políticas e ideológicas, fez o contrário. De um lado, com base no fundamentalismo fiscal de sua equipe econômica, defensora do lema “Mais Brasil menos Brasília”, em lugar de resolver os problemas da ineficiência da máquina, gerar emprego e renda, optou por aprofundar o desmonte do Estado, ampliar o desemprego e cortar benefícios sociais. E, de outro, com base no fundamentalismo e negacionismo do presidente, negligenciou a gestão da pandemia, resultando em centenas de milhares de mortes. Ora, se a gestão de uma crise sanitária da dimensão desta da Covid-19 já seria difícil com um governo ativo e responsável, com recursos e servidores em qualidade e quantidade, imagine sem essas condições?

O mais grave, porém, é que parece que o sofrimento do povo e essas centenas de milhares de mortes não significam nada. As lideranças políticas, econômicas e sociais do país estão omissas e nada fazem frente a esse genocídio nem diante do sofrimento das famílias, que choram seus mortos e sofrem com a ausência de meios para sobreviver nessa pandemia. Com exceção de algumas iniciativas do Congresso, graças à pressão dos movimentos sociais e sindicais, e manifestações pontuais da mídia, não houve nenhum momento articulado propondo o afastamento desse presidente inepto, mas que, apesar de tudo, ainda é considerado ótimo ou bom por 27% da população, e aprovado por 33%, segundo a Pesquisa XP/IPespe de 31/3/21. Foi preciso que o ex-presidente Lula tivesse seu processo anulado pelo Supremo Tribunal Federal e viesse a público denunciar esse estado de coisas, para que alguns setores da sociedade despertassem para a tragédia que vive esse país na gestão de Jair Bolsonaro. Acorda, Brasil!

Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, consultor e analista político, mestrando em Políticas Públicas e Governo na FGV/DF, diretor de Documentação licenciado do Diap e sócio-diretor das empresas Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais e Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas