São Paulo já foi a cidade que não pode parar. Hoje, é a cidade que só pára.
São Paulo já foi a cidade que não pode parar. Hoje, é a cidade que só pára.
“A cidade não pára, a cidade só cresce,
o de cima sobe e o debaixo desce”
(“A Cidade”, Chico Science)
São Paulo já foi a cidade que não pode parar. Hoje, é a cidade que só pára. Todos os dias, em qualquer horário, nas grandes vias ou nos caminhos alternativos, esteja o cidadão de ônibus, de automóvel ou de moto, a cidade congestiona, estiola, morre. O trânsito deixou de ser um incômodo localizado e passou a ser a própria condição do deslocamento na cidade.
É um dado que permeia a vida cotidiana de todos que moram em São Paulo, invade as conversas, inferniza cada tentativa de circulação – e o que é a cidade, senão movimento? O trânsito, de certa forma, inviabiliza a própria idéia da cidade.
Até pouco tempo atrás, no entanto, São Paulo era, de certa forma, orgulhosa de ser uma cidade inviável. O slogan da “cidade que não pode parar” refletia a aposta na desordem de um crescimento cada vez mais desigual, o imperativo de um progresso de acumulação de riquezas – e de injustiças – tomado como natural e inevitável.
Esse que era considerado o “destino” da cidade – não por todos, claro, porque há e sempre houve vozes e, mais importante, atos dissonantes – acabou assim se impondo e, finalmente, parece estar se cumprindo, só que às avessas. Exatamente porque nunca pôde parar, ela agora simplesmente não consegue parar de parar.
Os números, alarmantes, apavorantes, arrepiantes, como que tentam acordar os cidadãos da barbárie: São Paulo licencia oitocentos carros contra quinhentos nascimentos por dia; a frota de automóveis particulares cresceu 25% nos dois últimos anos, chegando ao cúmulo de 6 milhões de veículos automotores na rua. Fosse esse um texto sério sobre urbanismo e poder-se-ia tirar conclusões mais inteligentes e propositivas, mas aqui se trata apenas de enfeixar algumas impressões sobre o que isso significa em termos do espírito que anima esse estado catastrófico.
Ou desanima, melhor dizendo. Porque a primeira coisa que os números dizem é que, tão cedo, ninguém quer nem vai parar de andar de carro. Sozinho, de preferência. E o escândalo mais recente é o fato de que, hoje em dia, esse “ninguém” inclui os pobres, aos quais o acesso ao transporte individual estava completamente vedado. Assim, quando se pensa nas soluções, muitas delas – o pedágio na região central, a fiscalização rigorosa contra carros em más condições – visam, entre outras coisas, voltar a restringir o uso do automóvel para essa gente, que, ora, deveria estar abafada nos ônibus igualmente parados.
A segunda, e de conseqüências ainda mais nefastas, é a desvalorização de qualquer projeto de transporte coletivo. Uma cidade que compra tantos carros rejeita, em massa e de maneira cabal, seus ônibus, seus trens, seus táxis e seu metrô. O sujeito quer o carro não apenas pelas razões racionais e objetivas (que não são poucas, deve-se dizer), mas também porque ele não quer se submeter a nenhum tipo de ordenação coletiva. E, dependendo da classe social, nem sequer admite essa possibilidade.
Mesmo o transporte coletivo limpo, eficiente, de “Primeiro Mundo”, como se costuma qualificar muito provincianamente, exige, mais do que uma disciplina, uma certa renúncia a atender a sua vontade em função de outras vontades. Há que esperar, há que se mover de acordo com a quantidade de pessoas, há que não chegar exatamente aonde se quer; há que circular em consonância com os outras, muitas outras necessidades.
O trânsito, em São Paulo, por suas proporções verdadeiramente alarmantes, tornou-se personagem de uma tragédia mais ou menos anunciada. Trata-se de, além de inventar as melhores (e, talvez, mais radicais) soluções urbanísticas e de mobilizar toda a coragem política necessária para implementá-las, meter o dedo na ferida do que significa, de fato, habitar democraticamente uma cidade.
Bia Abramo é jornalista