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O cinema capta um fenômeno sem paralelo na nossa cultura: a temática da culinária

I Panorama

A voga da culinária em nosso tempo é um fenômeno sem paralelo. Na televisão, sucedem-se os programas, vários por dia e em muitos canais. De um lado os programas light, em que carismáticas cozinheiras ou chefs malabaristas insistem em como é fácil cozinhar, e com isso abrir caminho para ser amado e valorizado pelos próximos. Tudo isso numa casa e num mundo cor de rosa. De outro lado, os programas hard, em que chefs internacionalmente famosos lideram concursos que atormentam e aviltam os candidatos.

Para ter uma ideia de como o fenômeno é recente, basta comparar o pequeno número de filmes que tratam do assunto no passado com a avalanche de hoje em dia.

No acervo há filmes sérios e compatíveis com muita crítica, enquanto hoje a culinária como tema central da comédia romântica substituiu outras áreas que já foram cenário do gênero, como o jornalismo, os esportes, o show business etc., e as oportunidades que abrem para o embate entre mulheres e homens. Dos dias dos filmes da Metro para cá, muita coisa mudou.

Em meio a uma infinidade de realizações bem tolinhas surgem algumas em que há algum interesse. Entre as inúmeras comédias românticas tendo a culinária como pretexto para os ritos de acasalamento, algumas abrem propostas mais sagazes. Entre elas estão:

Julie & Julia (direção de Nora Ephron, EUA, 123 min), em que Meryl Streep faz a introdutora da cozinha francesa nos Estados Unidos, Julia Child. Com seu programa de TV e mostrando-se tão desastrada quanto qualquer dona de casa, Julia postulou que a culinária sofisticada estava ao alcance de todos, ou todas. Julie é a nossa contemporânea que resolve executar as receitas da mentora, relatando diariamente seu progresso num blog que criou e que depois se tornará livro publicado.

 

 

No japonês Tampopo – Os Brutos Também Comem Espaguete (direção de Juzo Itami, Japão, 1985, 158 minutos), a dona de uma modesta cantina quer encontrar a perfeita receita para sua sopa de macarrão (ramen/lamen), para isso procurando a ajuda e o palpite de muita gente.

Em Chocolate  (direção de Lasse Hallström, Reino Unido/EUA, 2000 121 minutos) , Juliette Binoche, mãe solteira com sua filha, chega a uma aldeia francesa presa nas garras da repressão e dos preconceitos, reintroduzindo o prazer com sua lojinha de chocolates – onde vamos acabar encontrando o potentado local e fonte de todo o controle social refocilando-se nos doces da vitrina.

Em Comer Rezar Amar (direção: Ryan Murphy, EUA, 2010, 140 minutos), um estágio na Itália dá conta abundante do primeiro verbo da sequência. Em Shirley Valentine (direção: Lewis Gilbert,Inglaterra/EUA, 1989, 109 minutos), o cotidiano insuportável de uma esposa de meia-idade é acentuado pelas exigências do marido, que, num lance inesquecível, estipula que “bife só às quintas-feiras!”

 

 

Em Como um Chef (direção: Daniel Cohen, França, 2012,84 minutos), o foco reside nos atritos entre um profissional famoso, vivido por Jean Reno, e outro promissor mas de linha teórica diferente, e ambos às voltas com vários problemas, como o financiamento da haute cuisine e o advento da comida molecular, abalando posições. Em Jet Leg (direção: Danièle Thompson, França, 2002,91 minutos), novamente Jean Reno dá aulas de bem cozinhar mesmo com os recursos mínimos de um hotel de aeroporto, devido ao atraso do avião.

 

 

Destacam-se ainda, por exemplo, Soul Kitchen (99 minutos, 2009), originário da Alemanha, com Birol Ünel, o maravilhoso ator turco-germânico do premiadíssimo filme Contra a Parede (2004), e com o mesmo diretor, Fatih Akin. Embora se trate de uma comédia (e não de uma tragédia, como aquele), também cuida de examinar as dificuldades dos imigrantes na Europa, no caso turcos na Alemanha, com discussão do papel da comida para mitigar o expatriamento.

Outro caso é o irlandês O Guia Culinário do Amor   (direção: Dominic Harari e Teresa de Pelegri, Espanha/Irlanda, 2012, 105 minutos), meio ingênuo, mas com guinadas instigantes. Inicialmente parece ser uma comédia romântica tola. Mas de repente, quando o rapaz que não se prende a ninguém se rende ao casamento, como é fatal no gênero, a novidade é que é a namorada que não quer, preferindo fazer trabalho humanitário na África. Reencontram-se dez anos depois, ele divorciado com filho, ela com filha de cor – pois afinal não se casou, como ele previa, com seu guru das causas sociais, com quem partiu para a África.

No alemão Simplesmente Marta (direção: Sandra Nettelbeck, Alemanha, 2001, 109 minutos), a novidade é que o chef é uma mulher, dedicadíssima a seu ofício num restaurante chique, sem tempo para nada, e que ganha inesperadamente a guarda de uma sobrinha que ficou órfã. Vão abrandá-la e fazer pensar que a vida tem outras facetas tanto a sobrinha problemática quanto um chef rival, italiano irreprimível, vivido por Sergio Castellito. Há um remake americano muito menos inspirado, Sem Reservas (direção: Scott Hicks, EUA, 2007, 109 minutos), com Catherine Zeta-Jones, Aaron Eckhart e uma grande atriz infantil, Abigail Breslin, de Pequena Miss Sunshine. (2012), que vêm da Alemanha, temos adultos mal resolvidos às voltas com crianças difíceis de lidar enquanto são perspicazes e charmosas. O sucesso desse filme, que garantiu uma continuação, deve muito à atriz que faz o papel da menina que tem dois pais.

Em Coq au Vin 1 (direção: Til Schweiger, Alemanha, 123 minutos, 2011) e 2 (2012), que vêm da Alemanha, temos adultos mal resolvidos às voltas com crianças difíceis de lidar enquanto são perspicazes e charmosas. O sucesso desse filme, que garantiu uma continuação, deve muito à atriz que faz o papel da menina que tem dois pais.

No francês O Amor Está na Mesa (direção: Jean-Yves Pitoun, 1998, 94 minutos), Jason Lee, depois de ser cozinheiro da Marinha, onde seus requintados pratos não eram nada apreciados, vai tentar a sorte trabalhando na cozinha de um restaurante em Dijon, França. O interesse está menos no romance que na aprendizagem de uma arte e na fricção entre duas culturas.

O tema acabaria chegando à animação, quando Ratatouille (direção: Brad Bird, EUA, 110 minutos), uma graça de filme, trouxe a história de um rato provinciano cuja única ambição é ser chef de cozinha em Paris. Ganhou o Oscar de melhor filme na categoria, em 2008.  E também chegaria ao cinema brasileiro, com Estômago (direção: Marcos Jorge, 2007, 113 minutos), em que as habilidades como cozinheiro de um migrante nordestino – como é sabidamente o caso de muitos chefs brasileiros – são de valia até na cadeia: a elas deve seu prestígio e até a sobrevivência em meio tão inóspito. O filme, com o grande ator João Miguel, recebeu vários prêmios no Brasil e no exterior.

Há, igualmente, filmes em que há esplêndidos banquetes, incidentais ao enredo, e não centrais. Um é Maria Antonieta (França/EUA/Japão, 2006, 122 minutos), dirigido por Sophia Coppola, e outro é um dos mais visualmente belos filmes que já foram feitos, Satyricon (Itália, 1969, 135 minutos), de Fellini, no qual o exagero dos banquetes (já presentes no livro de Petrônio) encarna a tremenda decadência romana, que se traduz em excessos de toda ordem.

Entre os que tratam de diásporas, destacam-se os que se seguem. Em Mayrig (França, 1991, 157 minutos) e 588 Rue Paradis (França,1992, 130 minutos), ambos autobiográficos e dirigidos por Henri Verneuil (pseudônimo afrancesado do cineasta de ascendência armênia), temos uma família armênia que foi expulsa da Turquia quando dos grandes massacres que exterminaram 1,5 milhão deles. Alguns escapam e vão parar na França. Feito do ponto de vista do menino, mostra as humilhações a que é submetido, sempre salvo pelos fortes laços de afeto de sua família, em que a comida de suas origens tem um lugar especial e simboliza esses laços. Com Claudia Cardinale e Omar Sharif.

Outro é O Tempero da Vida (direção: Tassos Boulmetis, Grécia, 2003, 108 minutos), a respeito do abismo que se cria entre gregos que permaneceram e gregos que foram expulsos da Turquia. O laço privilegiado entre o menino que emigra e seu avô, que fica em Istambul, tem por base a comida e as especiarias, longamente apreciadas e discutidas. O avô costumava dizer que não é à toa que a palavra “astronomia” está contida em “gastronomia”: ambas dão lições de vida. O neto vai ser astrônomo, cumprindo os presságios do avô.

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH da USP e integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate.