Não fôssemos antes, somos obrigados agora a olhar com mais atenção às movimentações militares. Dito de outra maneira, às manobras do atual presidente, sobretudo com a demissão do general Fernando Azevedo do Ministério da Defesa, causadora de turbulência nas três forças só comparável à demissão de Ednardo D’Ávila Melo, em 1976, e Sylvio Frota por Ernesto Geisel, em 1977, anos de mortes e turbulências. Nas últimas horas, os comandantes das três forças decidiram pedir demissão em nítido protesto contra a demissão de Azevedo. Colocaram seus cargos à disposição do novo ministro da Defesa, general da reserva Walter Braga Neto, Edson Leal Pujol (Exército), Ilques Barbosa (Marinha) e Antônio Carlos Bermudez (Aeronáutica).
O governo tenta mostrar autoridade, não fala em pedido de demissão, e sim em substituição de comandos, e o próprio noticiário oscila entre uma e outra interpretação. A Folha de S. Paulo mancheteia, “Comandantes das Forças Armadas pedem demissão em protesto contra Bolsonaro”. Já o Estadão segue outro roteiro: “Após reunião tensa, governo anuncia troca dos comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica”. Tudo nesse dia 30 de março. Não estamos diante de uma crise qualquer, e não se deve olhar como simples acaso o fato de ela ganhar intensidade exatamente às vésperas da data comemorativa, para as forças militares, do golpe de 1964. O que pretende o governo Bolsonaro com esse movimento?
Bolsonaro se viu acuado, e um sujeito como ele, acuado, aposta no confronto, não na negociação. Tentemos, muito rapidamente, demonstrar seu isolamento progressivo. Faço parênteses para dizer: essa crise foi gerada lá trás, pelo envolvimento das instituições com o golpe de 2016 contra a presidenta Dilma e com a eleição de Bolsonaro. Vontade é dizer, mas de nada adianta: quem pariu Mateus que o balance. Mas, não. Ela atinge o país, não obstante não estejam nítidos os seus desdobramentos. Agora, um pouco tardiamente, algumas instituições, parte de nossa superestrutura vai se dando conta da gravidade do rumo escolhido. Não só instituições, não só a superestrutura.
Nos últimos dias, o grande capital, ele mesmo, aquele cuja escolha era "tudo pode menos o PT", capital financeiro incluído, deu sinais de inquietação. O governo, com sua política negacionista, genocida, traz sérios problemas para os negócios, para as relações do país com o resto do mundo. Fez acender sinal amarelo. A água bateu na cintura, para não dizer de modo chulo. O Judiciário, cujo comprometimento com o golpe e com a eleição de Bolsonaro não pode ser ignorado, também começou a acordar para suas responsabilidades. Mantido o comportamento anterior, a imagem da instituição ia pro ralo. Deu inúmeros recados. Não estava disposto a endossar as políticas do presidente, e defendeu, por exemplo, o direito dos governadores e prefeitos de tomarem medidas baseadas na ciência, a autonomia dos entes federados. E, ainda, inocentou o presidente Lula, e de quebra jogou a Lava Jato na lata de lixo da história, ao menos por enquanto.
Pandemia recrudescendo, mais de 310 mil mortos, autêntico genocídio, Bolsonaro tentando aparentar ser a favor da vacina diante da tragédia, a fome voltando em ritmo acelerado nos lares dos pobres do Brasil, tentou pressionar o general Fernando Azevedo, ministro da Defesa, a agir como o general Eduardo Vilas Bôas, e pressionar o STF depois da recente decisão sobre Lula, agora liberado para ser candidato. Azevedo resistiu. Não abria mão de garantir as Forças Armadas como instituição de Estado, como disse em sua nota, ao sair. Foi o estopim da crise, razão da demissão, e da saída também dos três comandantes.
Há quem fale da “crise dos cotovelos”. Dia 30 de abril de 2020. Posse do novo comandante do Comando Militar do Sul, presença do presidente. Ao chegar, Bolsonaro estende a mão ao general Edson Pujol, comandante do Exército. Pujol, deixa-o com a mão no ar, oferece o cotovelo, e é correspondido, sem entusiasmo. O general Antônio Miotto também cumprimentou o presidente a cotovelada. Bolsonaro teria ficado muito contrariado. São gestos simbólicos, a contrariar toda a retórica dele. E a demonstrar posição diversa do Exército.
Aqui chegamos à instituição Forças Armadas. Não estou entre aqueles a insistir em encontrar agulha em palheiro: não acredito em nacionalistas nas Forças Armadas. Já existiram. Não mais. Não acredito também em ardorosos defensores da democracia nos seus quadros. Ora, ora: foram os promotores do capitão, não? Nenhuma dúvida. Talvez, creio nisso, imaginassem pudessem exercer domínio sobre ele. Qualquer cavalo chucro pode ser domado. Pode, mas isso às vezes leva um tempo superior a um mandato de quatro anos. Os generais tentaram até aqui, e não conseguiram. O cavalo continua corcoveando, sem parar, e cavaleiros sendo jogados fora da arena, generais inclusive.
O Exército, principal força, sentiu, é visível, ser necessário evidenciar algum distanciamento do presidente, sob pena de a imagem da instituição ir pro ralo, como pesquisas já indicavam. Não foi só a crise dos cotovelos. O querido amigo José Genoíno me lembrou recente entrevista do general Paulo Sérgio, responsável pelo departamento-geral de pessoal do Exército, sobre medidas para preservar os integrantes da força face à Covid, deixaram nítido esse esforço de distinção com Bolsonaro.
A taxa de mortalidade pela doença entre as 700 mil pessoas da Arma é de 0,13%, bem abaixo dos 2,5% registrados no restante da população brasileira. O segredo: o Exército adotou rigoroso lockdown, enviando todas as pessoas de risco para trabalhar de casa. Novos recrutas, colocados em regime de internato, alguns passam semanas sem ir para casa para evitarem contaminação pelo novo coronavírus. Cerimônias militares suspensas em todos os quartéis e campanhas massivas foram realizadas a favor do isolamento social e do uso de máscaras. Tudo isso foi revelado pelo general Paulo Sérgio, em linha oposta à do presidente da República. Houvesse essa compreensão, fossem adotadas as medidas preconizadas pela Organização Mundial da Saúde, a situação do país seria bem melhor. Este, o recado do militar.
Bolsonaro percebeu o movimento das Forças Armadas, de modo especial do Exército, sentia o afastamento. E resolveu reagir. Não estavam sob suas ordens, ao menos sob aquelas mais disparatadas. Não parece restar dúvida da aposta no confronto, e não falamos apenas no confronto direto com as Forças Armadas. O óbvio estímulo às hordas bolsonaristas para insuflarem rebeliões nas polícias militares foi outro dos movimentos. Um manifesto de governadores nas últimas horas denuncia isso, reunindo dezesseis deles das mais variadas forças políticas. Se a essas hordas se juntam as milícias, vai se formando uma tempestade perfeita, e essa movimentação a insuflar polícias militares obviamente desagrada as Forças Armadas.
A aposta no confronto, feita por Bolsonaro, neste momento, querendo confrontar instituições, inclusive o Judiciário, parece não agradar às Forças Armadas. Pela primeira vez, no governo dele, elas parecem querer demarcar terreno, querendo garantir autoridade como instituição de Estado, e não como órgão de governo, ao contrário do que pretende o presidente. Se conseguirão, só os fatos seguintes dirão.
Se até agora foi impossível domar o capitão, será possível a ele controlar as Forças Armadas, particularmente o Exército, tê-las sob seu tacão? Até onde irá sua autoridade, ao nomear os novos comandantes?
As Forças Armadas farão uma nova aposta de ir às cegas com o atual presidente, neste momento enfraquecido, furioso e disposto a medidas autoritárias, como o estado de defesa, voltado ao ataque a quem considera seus adversários políticos, particularmente os governadores dedicados a um combate sério à pandemia?
Várias instituições, e estamos nos limitando apenas a elas nessa análise, fizeram uma aposta contra o PT, e contra o partido valia qualquer coisa, e agora observam o monstro criado e não sabem como lidar com ele.
É um momento de profunda instabilidade política, não fosse a tragédia da pandemia e da aprovação de um Orçamento com sinais a trazer mais ingovernabilidade ainda, como me foi apontado também por José Genoíno.
Quem sabe, as Forças Armadas, depois de aderirem corretamente às regras da ciência e do bom combate à pandemia, depois de se recusarem a adotar a política golpista do general Vilas Bôas, finquem pé na atitude de serem, como constitucionalmente o são, instituições de Estado, e se recusem a qualquer aventura fora dos quadros democráticos.
De parte da esquerda, cabe resistir, como vem resistindo, à política genocida, defender a vida. Apoiar, estar junto de todas as iniciativas voltadas às orientações da Organização Mundial da Saúde, e de todas as forças políticas envolvidas na luta pela vacinação em massa da população, simultaneamente ao esforço para garantir renda mínima a milhões de necessitados do país, de modo a poderem ficar em casa e garantir o indispensável distanciamento social nesse quadro de colapso dos serviços de saúde em praticamente todo o país.
Na crise militar, combater a atitude do atual presidente em tentar atribuir às Forças Armadas o papel de milícia do Planalto, contrariamente às suas missões constitucionais. Às Forças Armadas, desejar que compreendam o barco furado em que entraram com Bolsonaro, e possam manter-se no exclusivo território da democracia. Desejar, podemos. Lutar, também. E torcer, aos incréus, aqueles incapazes de rezar, por não saberem, como o autor dessas linhas, torcer para que de tal crise não irrompam quaisquer medidas autoritárias, das quais o país está farto. Encostado ao dia 1º de abril, data do golpe de 1964, lembrança de 21 anos de autoritarismo, queremos insistir: ditadura, nunca mais!
Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 vol.), entre outros