Colunas | Mundo

O não cumprimento da liminar pelo Brasil aumentará a velocidade rumo a uma triste situação de desprestígio internacional como a da época da ditadura militar

“O homem é o lobo do homem.” Era a visão sobre o mundo expressa por Thomas Hobbes (1588-1679) em sua obra Leviatã, impressionado pela destruição e mortes causadas pela guerra civil inglesa (1642-1649) entre os partidários do rei Carlos I e os do Parlamento inglês liderados por Oliver Cromwell, que levou Hobbes ao exílio na França de onde pôde acompanhar de perto as consequências igualmente terríveis da parte final da Guerra dos 30 Anos (1618-1648). Essa foi a primeira guerra com dimensão mundial ao estender o conflito europeu às colônias por meio das invasões holandesas no Brasil e no Ceilão. Para essa situação que Hobbes considerava uma consequência da anarquia mundial, ele propunha um “Pacto Social”, isto é, a negociação de contratos entre os homens das nações existentes para promover a paz como forma de preservar sua vida.

Essa proposta, embora com abordagens filosóficas diferentes, foi compartilhada por um jurista contemporâneo de Hobbes, Hugo Grotius (1583-1645), considerado o “pai” do direito internacional ao propor regulações jurídicas na época para diferentes temas como a navegação internacional, guerra e paz, entre outros. E, posteriormente, por pensadores como Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que falava de um “contrato social”, e Immanuel Kant (1724-1804), que defendia mecanismos para instaurar a “paz perpétua”.

No entanto, mazelas muito mais graves tiveram que ocorrer, como a Primeira Guerra Mundial, a crise de 1929, a Guerra Civil Espanhola e, principalmente, a Segunda Guerra Mundial e os milhões de vítimas, para que a humanidade se convencesse da necessidade de haver instrumentos internacionais eficientes para regular a convivência entre as nações e promover uma série de atitudes éticas comuns como forma de promover a paz e o bem comum dos habitantes de todas as nações. Dessa forma nasceram os acordos de Bretton Woods, que estabeleceram o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, o sistema da Organização das Nações Unidas (ONU), a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), fundada já em 1919, o Acordo Geral de Comércio e Tarifas (Gatt na sigla em inglês), posteriormente transformado na Organização Mundial do Comércio (OMC), entre muitas outras instituições e tratados internacionais, inclusive de alcance plurilateral, regional e bilateral.

De certa maneira, todos tiveram influência “grociana” ao se tornarem peças do direito internacional, “kantiana” pelo desejo de promover a “paz permanente” e “hobbesiana” por não ignorar a existência de interesses nacionais e o realismo representado pelo poder individual. Entretanto, o mecanismo que fundamenta a aplicação dos tratados e o funcionamento das organizações internacionais segue um princípio relativamente simples. Uma vez elaborados e aprovados nos devidos fóruns, são submetidos à ratificação individual dos Estados-membros da organização que os administrarão. Enquanto um determinado Estado não os ratificar, este não tem compromisso com seu cumprimento. Se os ratificar, compromete-se a cumpri-los, inclusive adequando sua legislação nacional ao seu conteúdo.

A decisão de aderir a um tratado internacional, seja qual for a sua natureza, significa voluntariamente ceder soberania nacional em troca de usufruir de uma regra comum benéfica para o conjunto da comunidade mundial. Nesse sentido, cada Estado avalia as vantagens ou desvantagens de assumir o compromisso de cumpri-lo. Por exemplo, a adesão de um país ao sistema multilateral de comércio por meio da filiação à OMC significa, entre outros aspectos, que poderá se utilizar de seu sistema de solução de controvérsias se, porventura, sentir-se prejudicado por outro membro e poderá ganhar ou perder a causa. O compromisso de ambos como membros da organização é respeitar e acatar sua decisão final sobre o tema em questão.

Não existe um poder coercitivo absoluto na esfera internacional. Mesmo a instituição mais poderosa, o Conselho de Segurança da ONU, que em tese pode aprovar intervenções armadas em outros países em defesa da “segurança e da paz”, isenta seus cinco membros permanentes e com poder de veto desse risco. O descumprimento dos regulamentos e compromissos por algum país, usualmente, implica sanções morais ou econômicas, no caso das instituições com implicações financeiras como o FMI e o Banco Mundial, que poderão recusar empréstimos, e a OMC, que poderá impor retaliações comerciais. Porém, desde que o país em questão seja membro deles.

A desconsideração pelos tratados de direitos humanos da ONU, das convenções sobre direitos dos trabalhadores na OIT, das normas internacionais de preservação do meio ambiente, entre outras de caráter civilizatório, tende a acarretar o isolamento político dos violadores na comunidade internacional e perda de influência nas instituições, que por sua vez geram, mais cedo ou mais tarde, implicações negativas nas relações internacionais, inclusive na área econômica.

É sob esse conjunto de fatores que deve ser vista a decisão liminar do Comitê de Direitos Humanos da ONU, que requer que o Brasil cumpra o Artigo 25 do “Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos” para que Lula desfrute e exerça seus direitos como candidato nas eleições de 2018. Esse pacto foi aprovado pela Assembleia Geral da ONU em 1966, ratificado pelo Estado brasileiro por meio de Decreto Legislativo em 1991 e por um Decreto Presidencial do governo Fernando Collor de Mello, em julho de 1992, que diz textualmente: “Artigo 1º O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, apenso por cópia ao presente decreto, será executado e cumprido tão inteiramente como nele se contém. Artigo 2º Este decreto entra em vigor no dia de sua publicação” (Fernando Collor e Celso Lafer, respectivamente presidente e ministro das Relações Exteriores). Em 2009, o Estado brasileiro assinou o Protocolo Opcional adicional aceitando submeter-se às decisões do Comitê de Direitos Humanos da ONU, que gerencia o cumprimento do pacto.

Portanto, o pacto foi ratificado pelo Brasil e o protocolo também. Cabe apenas cumpri-los. O restante que vimos publicado nos últimos dias, se seria uma recomendação, qual instituição jurídica deveria encaminhar a decisão, entre outras teses, é apenas tergiversação. Para o Itamaraty, “pimenta nos olhos dos outros é refresco”, pois se utilizou de um suposto descumprimento da Venezuela do Tratado do Mercosul para excluí-la do bloco e agora antecipa o descumprimento do pacto afirmando que é apenas uma recomendação.

É lamentável como uma instituição com o prestígio que possuía se deixou contaminar pelo “golpismo” e arbítrio vigente no Brasil defendendo no exterior um governo ilegítimo, uma reforma trabalhista que viola várias convenções da OIT (tratados internacionais ratificados) e justificando a prisão do ex-presidente Lula. O governo Temer e sua diplomacia só têm acelerado sua carreira abaixo no cenário internacional. O não cumprimento da liminar aumentará a velocidade rumo a uma triste situação de desprestígio internacional como a da época da ditadura militar.

 

Kjeld Jakobsen é consultor na área de Cooperação e Relações Internacionais