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O consenso sempre reclama a compreensão da unidade na diversidade, unidade sempre sob o manto da democracia. Passo a passo, podemos chegar a tal compreensão

A Linguagem do Terceiro Reich (LTI) pretende privar cada pessoa de sua individualidade, anestesiando as

personalidades, fazendo do indivíduo peça de um rebanho conduzido em determinada direção, sem vontade e

sem ideias próprias, tornando-o um átomo de uma enorme pedra rolante. A LTI é a linguagem do fanatismo de

massas. Dirige-se ao indivíduo – não somente à sua vontade, mas também ao seu pensamento –, é doutrina, ensina

os meios de fanatizar e as técnicas de sugestionar as massas. [...] A maior incógnita do Terceiro Reich, para mim,

é entender como esse livro [Mein Kampf] conseguiu penetrar na opinião pública,  como permitiu que Hitler dominasse

como dominou e como foi possível que essa dominação tenha durado doze anos. 

KLEMPERER, Victor, 1881-1960. LTI: A Linguagem do Terceiro Reich. 

Tradução, apresentação e notas Miriam Betina Paulina Oeslsner. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009, p. 66.

 

Victor Klemperer, judeu assimilado, sobrevivente do nazismo, escreveu um diário sob terríveis condições, e transformou-o em livro, LTI: A Linguagem do Terceiro Reich. Nos registros do dia a dia, constata o fato de até mesmo as vítimas de Hitler usarem a linguagem do Terceiro Reich. O poder exercido pelo inconsciente. Nós, na maioria das vezes, desprezamos Freud, erro de consequências graves. Como diz César Benjamin, autor da orelha do livro, “quem controla as maneiras como nos expressamos também controla as maneiras como pensamos”. Ao publicá-lo no pós-guerra, o filólogo pretendeu chegar a alunos na Alemanha, onde a linguagem nazista ainda predominava, e o país tentava se afastar daquele passado.

O livro nos fala aos dias atuais. Quem puder, leia-o. Serve à compreensão dos fatídicos dias vividos sob Bolsonaro. Ajuda a entender aquele passado recente. Inacreditável, mas tal passado tentou nos revisitar sob a forma de um golpe no dia 8 de janeiro de 2023, após a posse do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva. Nesse plano, diria histórico-filosófico, a publicação ajuda. O autor, ao falar de Hitler, lembrava o fato de ele não se sentir seguro nem mesmo em uma situação de triunfo, não tinha compostura, a voz não possuía musicalidade, o ritmo da voz dele “açoitava a si mesmo e aos demais”. Não fala ao nosso passado recente? Não fala à existência do personagem grotesco, cuja presença na Presidência da República nos angustiou, nos deixou perplexos durante longos quatro anos?

Escapo da tentativa de resenhar o livro. E tento, apenas tento, desvendar o enigma, chegar ao Brasil. Volto a Gramsci, a quem me referi em outras ocasiões lembrando essa reflexão. A crise, dirá o dirigente comunista, intelectual italiano, vítima do fascismo, consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, irrompe uma enorme variedade de sintomas mórbidos, ou monstros, se quiserem. E, assim, em meio à crise vivida pelo país, e logo depois de um golpe dirigido pelas classes dominantes e levado adiante pelas nossas instituições e aparelhos de Estado, o monstro adequado apareceu.

Apenas ridicularizar Bolsonaro adianta pouco. Ele é expressão da crise enfrentada pelo Brasil naquele momento, fruto de uma decisão de nossas perversas classes dominantes, incapazes de aceitar quaisquer governos de tendência democrática e reformista. E é expressão, também, de uma espécie de subsolo da sociedade brasileira, e digo subsolo pelo fato de até ali ela ter evitado se expressar de maneira tão nítida: o pensamento conservador de extrema-direita. Deixou de ser subsolo ao optar por colocá-lo na Presidência da República. Como foi possível eleger um sujeito tão medíocre, semianalfabeto? – essa pergunta sempre nos visitou, não é?

Foi possível porque havia na sociedade brasileira um pensamento, inconsciente que fosse, vindo das profundezas de nossa história. Pensamento presente no coração e nas mentes de vastas parcelas do povo brasileiro. É duro ouvir isso, sei. Mas, necessário. Se não o fazemos, seguimos desconhecendo realidades aparentemente submersas. Preferimos, ao agir como avestruzes, deixá-las no subsolo. A ascensão daquele cidadão veio no leito de uma absoluta sinceridade na exposição dos terríveis propósitos dele, ninguém há de negar, ele não escondeu suas ideias – o elogio da ditadura, a revelação da admiração por Carlos Alberto Brilhante Ustra, o racismo de variada extração, o ódio aos pobres, aos negros, às mulheres, aos homossexuais, e a proposta neoliberal.

De que profundezas ele surgiu? Certamente, um país não passa impune por séculos de escravidão. As marcas da servidão permanecem. Seja pela persistência do esforço das classes dominantes brasileiras, incapazes de abrir mão de qualquer privilégio vindo dos tempos da Casa Grande. Seja porque muito daquele tempo permanece na alma de nossa gente, muito conservadorismo, muito de uma religiosidade a fomentar a aceitação do modo servil de existir, o modo patriarcal, um jeito de ser família, um jeito de encarar autoridade, de requerer autoridade forte, educação rigorosa dos filhos, mulheres a aceitar o mando do marido, uma polícia repressiva, apesar de ser vítima diária dela.

O candidato da extrema-direita de 2018 vinha com esse programa, exatamente com tal programa e quantas loucuras mais estivessem na cabeça dele, e ele sabia: os absurdos estavam também na mente de consideráveis parcelas do nosso povo. Sabia a quem falava, sabia-se ouvido e nunca deixou de dizer aquilo a ser rotulado de barbaridades. Tais barbaridades não eram exclusivas dele. 

E vamos combinar uma coisa? As últimas eleições significaram de um lado, uma extraordinária vitória de Lula, sobretudo considerando a desigualdade de condições da disputa. De outro, no entanto, revelaram a força da extrema-direita. Insisto: não propriamente de Bolsonaro. Da extrema-direita.

De um pensamento conservador anticivilizatório, avesso à democracia. Como se ouvíssemos ecos do nazifascismo entre nós, sem tirar nem pôr. Natural a existência do pensamento conservador, é da vida em sociedade. Mas o pensamento da extrema-direita não combina com democracia, com civilização. Hitler não combinava. Mussolini, também não. Bolsonaro, não. O fato: foi uma vitória de grande significado, por tudo, mas revelou uma sociedade quase dividida ao meio. O desafio do Brasil é enorme.

Não é desafio para ser enfrentado por um governo. Quatro anos não bastam. Há, de um lado, uma cultura conservadora, retrógrada, a impossível de ser desconsiderada. Há, de outro, os escombros dos quatro anos anteriores, dedicados a destruir, e isso, como tenho insistido, não é dito por nós, do pensamento de esquerda e progressista – foi proclamado pelo próprio presidente de então, logo ao início do mandato dele, em visita aos EUA: viera para destruir. E cumpriu.

Lula encontra um Brasil destroçado. Não será fácil. E mais ainda, como tarefa de hoje, mas, de duração maior, a luta político-cultural, ideológica, de modo a trazer para o pensamento democrático aqueles corações e mentes envolvidos por conservadorismo entranhado na alma. Insista-se: o conservadorismo capaz de prejudicar a convivência em civilização, não o pensamento conservador, parte da sociedade.

Lula sabia, tinha consciência: ele daria o primeiro passo na reconstrução. O primeiro grande passo do presidente, nesse terceiro mandato, foi o enfrentamento corajoso, decidido da tentativa de golpe de 8 de janeiro. Assumiu ali, mais do que no dia primeiro. Confrontou o espectro militar, suplantando indecisões do primeiro momento. Não aceitou a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), objetivo dos golpistas e de muitos militares envolvidos com o golpe. Interveio na Segurança Pública do Distrito Federal, com um civil de confiança. Recusou com nitidez a condição de poder moderador das Forças Armadas. Demitiu o comandante do Exército, substituindo-o por alguém com algum pendor democrático. Deu passos no sentido de dar a tais forças o lugar constitucional delas.

Não cultivo ilusões. Ainda há muito a fazer no sentido de os militares livrarem-se da trajetória intervencionista, golpista, de mais de um século. Inegavelmente, no entanto, um passo foi dado, o mais importante desses últimos tempos. 

Certamente, Lula tem consciência do tempo reduzido para dar conta da enormidade da tarefa de reconstrução. Outros virão, espera-se sejam do campo democrático, para dar sequência. Já estamos respirando outros ares. Nosso povo sente o quanto as coisas mudaram, especialmente a população mais pobre, com a recuperação das políticas públicas voltadas ao atendimento de direitos básicos e de distribuição de renda. A política reina, não o autoritarismo. O mundo sentiu a volta do Brasil à cena das grandes decisões. Mas, nós não podemos esquecer da cultura. Não podemos ignorar o mundo do pensamento.

Adotar, na reconstrução da democracia, o caminho do diálogo, inclusive e principalmente com aqueles envolvidos com o pensamento conservador, excluídos apenas os criminosos, os dispostos a confrontar a vida democrática, como a turba de 8 de janeiro. Políticas públicas voltadas à cultura, apoiando-se nos modelos inaugurados por Gilberto Gil e Juca Ferreira, serão essenciais. A democracia reclama muita conversa, muito esforço de convencimento, o respeito às diferenças, respeito inclusive ao pensamento conservador, insista-se, aquele comprometido com a civilização. A construção de hegemonia, pela política, esse grande instrumento civilizatório, se dá assim: convencimento, diálogo permanente. Lula sabe fazer isso, e todos nós podemos aprender com ele.  

Estamos assistindo o iniciar de uma nova fase no Brasil. De esperança, aquela capaz de vencer a tentativa de destruição da Nação, nascida das eleições de 2018. Sob um governo democrático, de frente ampla. Essa fase, de reconstrução, passa por esse governo, mas não só. O país precisa reencontrar-se, e para tanto necessita chegar à visão da essencialidade do caminho democrático para enfrentar os enormes desafios existentes, sobretudo a profunda desigualdade social, herança dos mais de três séculos de escravidão. Para tanto, impõe-se uma cotidiana luta cultural e política de modo a chegar a tal consenso. E o consenso sempre reclama a compreensão da unidade na diversidade, unidade sempre sob o manto da democracia. Passo a passo, podemos chegar a tal compreensão. Depende do avanço político e cultural do povo brasileiro.

Obs.: Título de mesa no Congresso da UFBA, dia 16/3/2023, no Centro Cultural Raul Chaves, na Faculdade de Direito, em Salvador, organizada por iniciativa do professor Ponciano de Carvalho, contando com as participações, além dele, dos professores Marcelo Neves, da UNB, e Marília Muricy, da UFBA, e minha. Para orientar minha intervenção, escrevi esse texto.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 v), entre outros