Uma pesquisa realizada pelo Observatório Brasileiro de Mídia (OBM), sob encomenda do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, analisou 972 matérias publicadas nos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo e 121 nas revistas semanais Veja, Época e IstoÉ 1.093 matérias, no total ao longo de oito anos, entre 1º/1/2001 e 31/12/2008.
A agenda da promoção da igualdade racial e das políticas de ações afirmativas foi acompanhada em torno dos seguintes temas: cotas nas universidades, quilombolas, ação afirmativa, estatuto da igualdade racial, diversidade racial e religiões de matriz africana. Alguns dos resultados:
1. Em graus diferentes, os jornais observados se posicionaram contrariamente aos principais pontos da agenda. As políticas de reparação ações afirmativas, cotas, Estatuto da Igualdade Racial e demarcação de terras quilombolas tiveram o maior percentual de textos com sentidos contrários: 22,2%.
2. As reportagens veicularam sentidos mais plurais do que os textos opinativos, que, com pequenas variações, se posicionaram contrários à adoção das cotas, à aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e à demarcação de terras quilombolas. A argumentação central é que promovem racismo. Os textos opinativos no Estadão (78,6%) e em O Globo (63,6%) criticaram o Decreto n.º 4.887/2003, que regulamenta a demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. O principal argumento foi que o critério da autodeclaração é falho e traz insegurança à propriedade privada.
3. A cobertura sobre ações afirmativas foi realizada, basicamente, em torno da política de cotas: 29,3% dos textos. Outros instrumentos pouco foram noticiados. A cobertura oferecida por O Globo merece um comentário à parte. O jornal carioca dedicou 38 editoriais aos vários temas pesquisados, dos quais 25, ou 65,8%, trataram especificamente de "cotas nas universidades". Ainda que os principais argumentos contrários "as cotas e ações afirmativas promovem racismo" (32%) ou "os alunos cotistas `baixariam' o nível dos cursos" (16%) não tenham se confirmado nas instituições que implementaram as cotas, a posição crítica de O Globo não se alterou nos oito anos pesquisados.
4. Embora a maioria dos estudos e pesquisas realizados por instituições como IBGE, Ipea, Seade, OIT, Unesco, ONU, UFRJ, Ibope e DataFolha, no período analisado, confirmem o acerto das políticas de ação afirmativa, apenas 5,8% dos textos publicados nos jornais noticiaram e debateram os dados revelados. Esses estudos e pesquisas trataram de assuntos como: menor salário de negros frente aos brancos; menor presença de negros no ensino superior; negros como maiores vítimas da violência; pouca presença de negros em cargos de chefia, entre outros.
5. O noticiário das revistas semanais teve características muito semelhantes às encontradas nos jornais. Os textos com sentidos contrários às políticas de reparação (26,4%) foram em maior percentual do que aqueles com viés favorável (13,2%). Da mesma forma, a cobertura se concentrou nos programas de cotas: 33,1%.
Os resultados da pesquisa realizada pelo OBM denunciam um estranho paradoxo. Enquanto a grande mídia tem se revelado cada dia mais zelosa com relação ao que chama de liberdade de imprensa (equacionada, sem mais, com a liberdade individual de expressão), o mesmo não acontece com a defesa de direitos fundamentais, como a reparação da desigualdade e da injustiça histórica de que padece a imensa população negra do nosso país.
Estaria a grande mídia mais preocupada com seus próprios interesses disfarçados sob a bandeira da "liberdade de expressão" do que com o interesse público e a defesa de direitos humanos fundamentais?
Venício A. de Lima é autor, com Bernardo Kucinski, de Diálogos da Perplexidade Reflexões Críticas sobre a Mídia; Editora Fundação Perseu Abramo, 2009