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As questões relativas à educação no cinema, além de se mostrarem múltiplas, também exigem diferentes abordagens: nada que um desiderato totalitário possa satisfazer

Educadores brasileiros

A tradição de grandes pensadores da educação é motivo de orgulho para nosso país e com frequência encontra expressão no cinema. A série Educadores Brasileiros (2007) consta de dois documentários de 47’, realizados por Mônica Simões. O primeiro episódio, Anísio Teixeira, mostra a principal e revolucionária realização desse grande educador: o Centro Educacional “Carneiro Ribeiro”, mais conhecido como Escola Parque. O segundo episódio, Darcy Ribeiro, analisa as muitas facetas desse outro grande educador, criador da Universidade de Brasília, de currículo inovador, e dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps) do Rio de Janeiro, dentro do Sambódromo, destinados a fornecer escola de dia inteiro a crianças carentes. A propósito deste último, ver também O Brasil de Darcy Ribeiro (2014), dirigido por Ana Maria Magalhães, documentário da TV Brasil, com cinco episódios de 52’.

Mais conhecido nacional e internacionalmente, Paulo Freire suscita quantidade maior de material audiovisual, de que fornecemos uma amostra aqui. Em primeiro lugar, um vídeo de curta-metragem intitulado A Pedagogia de Paulo Freire (2019), contendo palestra de Lígia Chiappini, da Universidade Livre de Berlim, colaboradora de Paulo Freire em vários projetos.

Em seguida, Paulo Freire e a Educação para Mudar o Mundo, depoimento de Paulo Padilha, diretor do Instituto Paulo Freire, curta. Acrescente-se Paulo Freire – Contemporâneo (2010), dirigido por Toni Venturi: o método Paulo Freire em várias áreas, da música à saúde (documentário, 55’). Finalmente, de Alexandre Alencar, Os Silenciados Não Mudam o Mundo (2013), um filme de ficção: dois meninos (um sertanejo, outro recifense) mostram contrastes e semelhanças, do ponto de vista da aplicação do método Paulo Freire.

O cineasta Toni Venturi, ex-aluno, assina um documentário intitulado Vocacional – Uma Aventura Humana (2014). Experiência de escola inovadora, o Ginásio Vocacional de São Paulo foi ocupado, fechado e desativado pela ditadura, que encarcerou a diretora Maria Nilde Mascellani.

Afora esses, em torno de pessoas ou eventos mais notórios, há muitos filmes brasileiros, em geral documentários em curta-metragem, realizados em escolas espalhadas por todo o país às voltas com experimentos interessantes. Podem ser difíceis de obter, mas estão devidamente registrados no Google.

Nos extremos da vida

Quem ainda duvida da importância da educação precisa ver O Aluno ou Uma Lição de Vida – The First Grader (2014), do diretor inglês Justin Chadwick. Um filme encantador, que ficcionaliza ligeiramente a história de um queniano de carne e osso, Kimani Maruge, que aos 84 anos luta pelo direito de ir à escola para aprender a ler. Em 2003, ao ouvir no rádio o presidente do Quênia dizer que a educação é para todos, entende ao pé da letra que está incluído. Como mora no fim do mundo, lá só há uma única escola: primária, para crianças, uma única sala, sem água e sem eletricidade. Todos ficam contra ele, menos a dedicadíssima professora (vivida pela atriz Naomi Harris, que foi Winnie Mandela em outro filme de Chadwick, Mandela: Longo Caminho para a Liberdade), que por isso vai ser perseguida pelos burocratas e pelos vizinhos, até ser transferida de castigo para outra escola a 500 quilômetros de distância. Maruge fora Mau-Mau, guerrilheiro na luta contra o colonizador inglês, vira a mulher e os dois filhos executados na frente dele para obrigá-lo à delação. Passara mais de uma década em campo de concentração, porque se recusara a abjurar a promessa que fizera de libertar seu povo. Foi parar no livro Guinness de recordes por ser a mais velha pessoa do mundo a entrar numa escola primária. O filme termina com sua viagem aos Estados Unidos para falar na ONU e ser recebido na Casa Branca. Com muita graça, o filme comete o anacronismo de, antes da era Obama, fazer o locutor da rádio do Quênia dizer: “Quem sabe, ainda veremos na Casa Branca um queniano...” E acrescenta: “Yes, we can!”.

No outro extremo, ou seja, a importância da educação desde o início da vida, deve-se ver Nenhum a Menos (1999), China, direção Zhang Yimou, premiado com o Leão de Ouro de melhor filme em Veneza. Uma menina dos confins da China, encarregada de uma pequena escola rural, sai em peregrinação para recuperar um aluno que está faltando às aulas – o que ela não pode admitir.

O caso dos superdotados

O Jeremias – El Jeremías (2016), dirigido por Anwar Safa. Encantador filme mexicano sobre um menino de 8 anos que, descobrem, tem Q.I. de gênio. Faz carreira como enxadrista até ser descoberto por um médico pseudocientista, que quer fazer-se célebre (e celebridade de TV) à custa dele, com um reality-show de crianças-prodígio. O menino do interior é levado para a capital, e tudo vai bem até que o programa aparece na TV e ele percebe que, ao insistirem que o gênio não é hereditário (tese do médico) e que ele é filho de duas pessoas que têm Q.I. abaixo da média, estão afinal humilhando seus pais. Como ninguém ignora, a humilhação é meta de todo reality-show. Jeremias então rompe com tudo e vai embora para casa. O filme é bom, e bem filmado, com seus ângulos retos e cenas paradas, mas se não fosse o menininho... gênio é ele, e do desempenho. Moreno e magrinho, com cara de mexicano, Monteiro Lobato diria que ele tem “olhos de jabuticaba”, parte importante de sua fisicalidade. Ressuma autenticidade e veracidade.

Vitus (2009) – Suíça, direção de Fred M. Murer. Graciosíssimo filme suíço sobre um menino superdotado, pianista prodígio que sofre para corresponder às expectativas de todos. Como não aguenta mais sua condição, finge ter batido a cabeça numa queda, tornando-se “normal”, para desgosto de seus pais e mentores. Mas, com a ajuda do excelente avô pouco convencional e inventor (vivido pelo grande ator alemão Bruno Ganz), manobra na Bolsa, ganha um dinheirão e compra a empresa em que o pai tinha trabalhado a vida toda, só para ser despedido pelo filho do dono, que o invejava. Como a compra foi feita no nome do avô, quando este morre o menino a herda, naturalmente. E pode voltar a ser pianista, sem pressões.

Contestação de uma educação repressora

Apareceram vários desses filmes na década de 1960, quando tudo se contestava. Um deles ficou famosíssimo, o filme inglês Se... – If... (1968), dirigido por Lindsay Anderson. O filme toma emprestado seu título de um célebre poema de Rudyard Kipling, louvando a educação repressora inglesa ao tempo do imperialismo/colonialismo. A revolta dos alunos contra o sistema educacional que inclui espancamento como punição leva à destruição da escola. Foi ali que Malcolm McDowell, que em seguida estrelaria Laranja Mecânica, foi guindado à fama.

Outro desses filmes foi o americano À Procura da Verdade – Getting Straight (1970), dirigido por Richard Rush, em que Elliot Gould, no papel de um soldado que regressa da Guerra do Vietnã, vai fazer estudos superiores. No auge dos protestos estudantis, acaba, para escândalo geral, pulando repetidas vezes em cima da mesa do professor. Com Candice Bergen no papel de uma líder da categoria.

Mas as virtualidades positivas da tarefa pedagógica aparecem também em muitos filmes, desde o clássico Ao Mestre com Carinho – To Sir, with Love (1967), dirigido por James Clavell. Sidney Poitier, no papel do protagonista, ao encarregar-se de uma escola em comunidade pobre de Londres, com alunos problemáticos, enfrenta a inimizade deles até conseguir reverter o quadro. O Jarro, Irã, direção de Ebrahim Forouzesh (1992). O único jarro de água numa pequena escola no meio do deserto quebra e é preciso consertá-lo. Entra em jogo a solidariedade entre os alunos e de toda a comunidade a que pertencem, todos ansiosos por ajudar o professor a resolver o crucial problema, do qual depende a continuidade da escola. Madadayo (1993), do grande Akira Kurosawa, seu último filme e testamento, mostra o respeito que preside as relações entre mestre e discípulo, peça fundamental da cultura japonesa. Sociedade dos Poetas Mortos (1989), filme americano dirigido pelo australiano Peter Weir, fala de um professor que ensina literatura, tomando-a como fonte de inspiração para o exercício da liberdade; foi premiadíssimo por toda parte.

Outras perquirições

Por Favor, Vote em Mim, China (2012), documentário de 1h. É uma espécie de “educação ou treino para a democracia”. Numa escola, três crianças (dois meninos e uma menina) disputam a eleição para o cargo de monitor. Muito interessante e meio assustador: durante a longa campanha, vale tudo. Os pais treinam os filhos nas técnicas mais desonestas para vencer. A menina sem pai é prejudicada. Há choro, ranger de dentes e argumentos da maior baixaria. Um dos candidatos é visivelmente um bully, até pela linguagem corporal, além de ser hiperativo: não para de falar e de se mexer, ameaça os outros. Afinal, ganha aquele que, por instrução do pai, leva cartões-postais ordinários para presentear os eleitores no último minuto (para que não dê tempo de os outros candidatos copiarem o gesto). Dá o que pensar.

Menino Satélite – Satellite Boy, Austrália (2012), direção de Catriona McKenzie. Menino aborígene, miserável, diverge da mãe adaptada à sociedade branca e prefere viver no sertão com o avô, que repassa para ele as tradições de seu povo, e até é iniciado. Belo filme.

Les Profs, França (2013), direção de Pierre Martin La-Val. Anárquico filme, em que uma escola (por tramoia de um conselheiro que quer derrubar o diretor para usurpar-lhe o cargo) decide contratar os piores professores possíveis, para ver se assim os alunos melhoram e participam mais. Os resultados são engraçados...

Vermelho como o Céu – Rosso come il Cielo, Itália (2005), direção de Cristiano Bortone. Belo filme sobre um menino cego, cujo destino sem perspectivas muda radicalmente quando ingressa num internato só para crianças cegas.

Pequenas Flores Vermelhas, China (2006), direção de Yuan Zhang. Encantador filme sobre crianças pequenas, numa escola ou internato, e um menininho rebelde que tudo desafia.

Maria Montessori: Uma Vida Dedicada às Crianças – Una vita per i Bambini, Itália (2006), direção de Gianluca Tavarelli. Filme de ficção sobre os percalços a que se viu constrangida a grande educadora devido a sua concepção pedagógica avançada e liberadora, durante a Itália fascista de Mussolini.

Empecilhos materiais

Waiting for Superman, EUA (2010), direção de Davis Guggenheim. Documentário que analisa o sistema de ensino público primário e médio nos Estados Unidos, preocupado com sua contínua deterioração. Recebeu prêmios.

Quando Tudo Começa – Ça Commence Aujourd’hui, França (1999), direção de Bertrand Tavernier. Escola maternal na província, em região de antigas minas, hoje fechadas. O pai do protagonista foi mineiro. Num ambiente de desemprego e decadência, há falta de perspectivas e de esperança. Crianças que não comem, ou apanham, ou são negligenciadas, ou praticam vandalismo inclusive da escola – e os pais não têm ânimo para nada, claro, e do outro lado a indiferença ou fetichismo só da letra dos burocratas. O diretor se esforça até demais. Ótimo filme.

Primeiro da Classe – Front of the Class, EUA (2008), direção de Peter Werner. Rapaz com vocação para professor de crianças precisa vencer a síndrome de Tourette, problema neurológico que o faz emitir ruídos e agitar convulsivamente a cabeça.

Além da Sala de Aula – Beyond the Blackboard, Canadá (2011), direção de Jeff Bleckner. Emily VanCamp é a professora certinha que vai dar aula para crianças sem teto, todas com terríveis problemas, num local improvisado e sem quaisquer recursos. Fez muito sucesso e é lembrado por sua raridade no mundo desenvolvido – só o cinema francês se debruça sobre o assunto, e com insistência.

Apenas um Começo – Ce n´est qu´um Début, documentário, França (2010), direção de Pierre Barougier. Num experimento avançado, crianças de 4 anos têm aulas de Filosofia em escola pública francesa. O filme é maravilhoso: é ver o empenho com que aqueles mirins discutem grandes questões como o poder, a morte, a lealdade, o amor etc.

Entre os Muros da Escola, França (2008), direção de Laurent Cantet. Professor de liceu com alunos problemáticos, multirraciais. Escola na periferia de Paris, zona de pobreza, de desemprego, de drogas e de violência. As dificuldades de um professor de boa vontade. Palma de Ouro em Cannes.

Ter e Ser – Être et Avoir, documentário, França (2007), direção de Nicolas Philibert. Numa escolinha da zona rural francesa, que tem uma única sala de aula com 12 crianças de várias idades, um professor se esforça por fornecer uma educação de qualidade em meio a um panorama de dificuldades. Ganhou prêmios.

Crianças Invisíveis – All the Invisible Children (2005). Filme em sete episódios sobre crianças de diferentes regiões que enfrentam os piores obstáculos para poder ir à escola. Com vários diretores como Kusturica, John Woo, Ridley Scott, entre eles a brasileira Katia Lund. O de Spike Lee aborda uma menina aidética, vítima de preconceito na escola: filha de família funcional, mas pai e mãe aidéticos e drogados.

La Journée de la Jupe, França (2009), direção de Jean-Paul Lilienfeld. Professora de liceu, hostilizada por usar minissaia numa escola de periferia frequentada por alunos com carências, mantém dezessete deles como reféns na mira da arma. Prêmio César de melhor atriz para Isabelle Adjani.

Crianças fora da escola

Mutum, Brasil (2007), direção de Sandra Kogut. Adaptação bem-feita de Miguilim, do livro Corpo de Baile, de Guimarães Rosa. O título se refere ao nome do sítio em que vivem o menino de 8 anos e sua família. Temendo o pai violento e amando a mãe, o menino, que é míope, se vê envolvido pelas paixões e pelas relações complicadas dessa família, cujas consequências sofre sem entender direito os motivos. Filme delicado, feito de silêncios e de subentendidos. Foi premiado no Festival do Rio.

Tartarugas Podem Voar (2003), do diretor curdo Bahman Gobadi. Filme só com crianças curdas – o protagonista fala umas palavras de inglês e é fã dos americanos, como todos aliás, que aguardam a chegada deles para liberá-los de Saddam Hussein. O que de fato acontece, mas não melhora nada para eles. O enredo é terrível. As crianças sobrevivem desmontando minas pessoais (um deles, que já perdeu os braços), com os dentes, que vendem a intermediários que as revendem à ONU. Cenas com muralhas e mais muralhas, a perder de vista, erguidas com cartuchos de obuses empilhados. Ele se apaixona por uma menina que foi estuprada por soldados iraquianos e carrega o bebê (cego), que odeia e chama de bastardo; seu irmão, sem braços, a recrimina, mas a ajuda a carregar o bebê. Há cenas de distribuição de máscaras contra gases (“uma para cada família”). É lindo e tremendo.

Indomável Sonhadora – Beasts of the Southern Wild, EUA (2013), direção de Behn Zeitlin. Esse raro filme não realista (algo incomum no cinema americano) põe em cena um “povo das águas”, comunidade ribeirinha de gente expulsa da terra firme no sul dos Estados Unidos: ecos do furacão Katrina? Gente paupérrima, para lá de excluídos. Mas laços se formam, ainda assim, como a dedicação ao pai doente de uma menininha de 6 anos, Hushpuppy, encarnada por uma atriz-mirim de nome impronunciável (Quvenzhané Wallis), extraordinária, é a protagonista. Belas imagens de barcos improvisados que mais parecem instalações ou esculturas, singrando as águas, meio ao léu: só de longe veem a vida na terra.

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O exemplário acima evidencia que as questões relativas à educação, além de se mostrarem múltiplas, também exigem diferentes abordagens: nada que um desiderato totalitário possa satisfazer.

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH da USP e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate