Um economista inglês chamado David Ricardo escreveu no início do século 19 sobre o comércio internacional, defendendo que os países seriam mais eficientes na produção e comércio de bens para os quais possuem vantagens comparativas. Dessa forma, mesmo que fosse capaz de produzir tecidos, um país como Portugal deveria se concentrar na produção de vinho, pois a eficácia e o ganho seriam maiores devido a algumas de suas vantagens, como capacidade tecnológica, solo, clima, entre outras. Segundo o mesmo Ricardo, a Alemanha, os Estados Unidos e outros países com grandes extensões de solo fértil deveriam se dedicar à plantação e ao comércio de trigo, já a Inglaterra com suas fábricas consolidadas teria vantagem em relação a outros na produção e comércio de bens industriais.
Um economista alemão, Friedrich Lizt, contemporâneo do formulador das “vantagens comparativas”, denunciou que essa teoria apenas visava preservar a hegemonia da indústria inglesa e, antes dele, o primeiro secretário do Tesouro dos Estados Unidos recém-independentes, Alexander Hamilton, defendia que o Estado deveria proteger a indústria nacional infante contra a competição com outros países até que ela estivesse devidamente evoluída e consolidada. Foi o que os EUA fizeram desde o início, principalmente, por intermédio da aplicação de altas tarifas externas sobre as importações para torná-las mais caras do que sua produção local ao longo do século 19, até a criação do Acordo Geral de Comércio e Tarifas (GATT) em 1948.
Embora as várias rodadas de negociações comerciais no âmbito do GATT, desde sua fundação até a Rodada Uruguai concluída em 1994, tenham reduzido de forma significativa as tarifas comerciais, no caso dos EUA para valores em torno de 2% em média, as reduções somente eram aprovadas e adotadas quando as indústrias dos países de maior economia, como os Estados Unidos, União Europeia, Japão e Canadá, estivessem preparadas para a competição internacional. Entretanto, em setores industriais como o têxtil, nos quais os países de custos de mão de obra menores levavam vantagens, a redução tarifária somente entrou em vigor em 2004, e o acesso de bens agrícolas dos países em desenvolvimento aos mercados dos países desenvolvidos até hoje é restrito por meio de tarifas protecionistas, subsídios e barreiras não tarifárias.
Na década de 1970, o governo estadunidense decidiu romper com o padrão ouro que regulava o valor de sua moeda, o dólar, o que lhe deu uma enorme vantagem na condução da economia e finanças mundiais. Porém, ao valorizar sua moeda frente às demais, passou a acumular déficits comerciais com a maioria dos países do mundo. Esse déficit chegou a alcançar mais de US$ 500 bilhões anuais em 2016 e 2017.
Entretanto, várias medidas legislativas foram adotadas para equilibrar a balança de pagamentos dos EUA, como uma série de medidas protecionistas no comércio que lhes permitem barrar importações quando querem, por meio de acusações, fundadas ou não, de dumping praticado pelos países exportadores, aplicação de sobretaxas e cotas quantitativas de entrada de produtos. Ao mesmo tempo, a estabilidade do dólar desde os anos 1970 atrai importantes investimentos externos e, por fim, a dimensão do mercado estadunidense estimula a instalação de empresas multinacionais de outros países em seu território. Por exemplo, as empresas alemães instaladas nos EUA têm ganhos maiores nesse mercado do que os bens importados de empresas situadas na Alemanha. Paralelamente, quando os produtos dos países de economia emergente, como por exemplo os pequenos e econômicos carros japoneses começaram a concorrer no mercado estadunidense com seus grandes e custosos cadilacs, houve várias campanhas “Buy American” (Compre Americano) para jogar a opinião pública do país contra bens importados.
Atualmente, um concorrente importante da economia estadunidense é a China, que não é apenas o principal exportador de bens para os EUA, mas ironicamente parte importante deles fabricada por multinacionais americanas em território chinês ou por joint ventures com empresas chinesas, como por exemplo os produtos da Apple fabricados pela Foxconn. Além disso, volumes significativos de títulos públicos dos Estados Unidos têm sido adquiridos por investidores chineses que assim controlam parte de sua dívida. Ambos os fatores têm provocado mal-estar político no país, e a presença econômica da China nos EUA tem constantemente servido de justificativa para as dificuldades que os trabalhadores do país enfrentam e de desculpa para o governo estadunidense adotar medidas protecionistas na economia e agressivas na sua geopolítica asiática.
Todas as vezes em que o mundo, ou parte dele, passou por crises econômicas e recessão durante as últimas décadas, o livre comércio entrou em crise devido a medidas protecionistas dos países desenvolvidos que tentam, inclusive, impedir que os países em desenvolvimento também as adotem.
No momento assistimos ao aprofundamento de uma dessas situações na medida em que o sistema multilateral de comércio está paralisado, pois a OMC não consegue aprovar novas medidas liberalizantes desde que substituiu o GATT em 1995, e o governo Donald Trump agora decidiu elevar as tarifas de importação de aço e alumínio com taxas de, respectivamente, 25% e 10%, além de retaliar importações chinesas no valor de US$ 50 bilhões. Canadá e México estão excluídos do aumento tarifário em função do Nafta e alguns outros países como o Brasil também, pelo menos até maio, prazo negociado para que se chegue a uma acomodação quanto às exportações de aço e alumínio brasileiro para os EUA, provavelmente, via imposição de cotas de exportação, o que somente reduzirá o prejuízo.
Os sindicatos e trabalhadores estadunidenses apoiaram a medida, pois acreditam que poderá gerar empregos, enquanto os trabalhadores e sindicatos em outros países a avaliam com preocupação pelo motivo inverso. Ela é, antes de tudo, uma medida política que reforça o discurso de campanha eleitoral vitoriosa de Trump, e, agora no governo, de “America First” (América Primeiro), e se volta, principalmente, contra a China com quem os EUA disputam a posição de principal potência mundial.
Tanto a China quanto a União Europeia anunciaram que aplicarão procedimentos de reciprocidade contra essas medidas protecionistas dos EUA, o que poderá iniciar uma guerra comercial internacional cuja escala ainda é difícil de dimensionar, pois há situações que demandam maiores avaliações, uma vez que não estamos mais falando de um mundo bipolar como era no final dos anos 1940, com os países capitalistas de um lado e os socialistas de outro, o que gerava uma relação de dependência de uns aos Estados Unidos e de outros à União Soviética. Ou então a substituição dessa bipolaridade no final dos anos 1980 pela unipolaridade liderada pelos EUA, que lhes permitia impor a sua política nos organismos internacionais como fez em conluio com a União Europeia na Rodada Uruguai do GATT impulsionando o acordo de maior liberalização comercial internacional até hoje e que incluiu medidas que sequer têm a ver com o comércio como propriedade intelectual e investimentos.
Hoje, com o fortalecimento das relações multipolares, não é fato dado que haja a mesma dependência dos demais países em relação aos Estados Unidos. Como afirmou recentemente o ex-ministro das Relações Exteriores do governo Lula, Celso Amorim, em evento da Fundação Perseu Abramo1, “os Estados Unidos, hoje, não têm projeto para o mundo, mas a China tem”.
Ou seja, os impactos dessa política comercial de Trump dependerão da capacidade ou não de a indústria estadunidense substituir as importações a custos semelhantes dos atuais, dependerão da força política de suas empresas multinacionais que exportam para os EUA desde outros territórios, particularmente na Ásia, de influenciarem o governo em sentido contrário, e dependerão também da capacidade dos exportadores prejudicados pelo protecionismo, chineses e outros de ocuparem nichos de mercado fora dos EUA, o que, por sua vez, poderá levar a disputa comercial para outras regiões.
Kjeld Jakobsen é consultor na área de Cooperação e Relações Internacionais