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A "imprensa" se transformou em conglomerados multimídia que constituem, eles próprios, poderosos atores, tanto econômicos quanto políticos

O conceito de jornalismo como "quarto poder" surgiu no contexto das revoluções liberais, isto é, da luta da burguesia contra o Absolutismo e o poder da nobreza, especificamente na Inglaterra, ainda no final do século 18. O ideal liberal iluminista pressupunha, além da liberdade de expressão individual, uma imprensa independente, livre da censura do Estado, formadora da opinião pública e exercendo o papel de "contrapoder" em relação aos três poderes concebidos por Montesquieu — o Executivo, o Legislativo e o judiciário.

Muita coisa mudou, no entanto, nos últimos trezentos anos. O desenvolvimento tecnológico e a conformação dos sistemas econômicos fizeram com que as sociedades do século 21 se tornassem muito mais complexas do que aquelas dos séculos 18 e 19. Grande parte da comunicação humana foi, aos poucos, sendo intermediada por tecnologias e instituições.

Na antiga visão da imprensa como "quarto poder", sua independência era entendida como independência do Estado e seu vínculo com o poder econômico era considerado apenas parte da ordem natural das coisas. Hoje, nada pode ser mais distante da realidade.

A mídia, ou a indústria da comunicação, apesar de eventuais crises financeiras localizadas, transformou-se num dos principais negócios das últimas décadas. Exemplo de concentração da propriedade no mundo globalizado, o setor está reduzido a uns poucos megagrupos privados que tendem, cada vez mais, a controlar o que vemos, ouvimos e lemos. No Brasil, uma dezena de grupos familiares empresariais, alguns associados a conglomerados multinacionais, controlam praticamente todo o fluxo da informação, do entretenimento, da publicidade e, mais recentemente, da telefonia fixa e móvel.

Dessa forma, a "imprensa" se transformou em conglomerados multimídia que constituem, eles próprios, poderosos atores, tanto econômicos quanto políticos. No novo contexto, o antigo papel de "quarto poder" independente atribuído à imprensa pelo liberalismo simplesmente não existe. Até mesmo a censura, motivação inicial da defesa da liberdade de expressão contra o Absolutismo, passou a ser exercida, de forma mais ou menos explícita, dentro dos próprios conglomerados privados produtores de jornalismo. Ao lado de outras atividades anteriormente consideradas exclusivas do Estado, a censura também está sendo privatizada.

Desde a década de 1970 o chamado PICA-Index (Press Independente and Critical Ability), que avalia a liberdade de imprensa, incluiu as "restrições econômicas" entre seus indicadores. Por "restrições econômicas" são entendidas as conseqüências da concentração da propriedade ou de problemas que decorram da instabilidade econômica das empresas jornalísticas. O próprio Press Freedom Survey, publicado anualmente pela Freedom House americana, trabalha com uma definição de liberdade de imprensa que inclui variáveis econômicas.

Por outro lado, as Constituições nacionais de democracias liberais como a Alemanha, a Espanha e Portugal, além de conter normas que impedem a censura estatal, trazem provisões para que a ação do próprio Estado garanta a existência de uma imprensa livre e diversa; ou impeça a concentração da propriedade; ou garanta acesso a todos os grupos sociais e políticos e assegure a diversidade na mídia. No Brasil, ao contrário, "o mercado" continua absoluto como única forma admitida pela legislação e pelos grupos de mídia como critério e medida das liberdades de expressão e de imprensa.

Independentemente do eventual papel de resistência e vigilância democrática que a mídia possa exercer em determinadas circunstâncias históricas —sobretudo em relação ao Estado autoritário —, o conceito de jornalismo como "quarto poder" livre, desvinculado de interesses econômicos e porta-voz da opinião pública está totalmente superado pela realidade histórica. 0 "quarto poder" se transformou em uma grande ilusão.

Venício A. de Lima é sociólogo e jornalista, autor de Mídia: Crise Política e Poder no Brasil e Mídia nas Eleições de 2006.