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A leitura como protagonista nos filmes

Fahrenheit 451Fahrenheit 451  (Direção: François Truffaut, 1966, 112 minutos, Inglaterra) A grande revolução iniciada por Gutenberg embasa este filme. Isto é, as potencialidades democráticas da aquisição da leitura enquanto acesso ao conhecimento, antes restrita às elites que assim mantinham o povo na ignorância e na submissão. Num futuro próximo, o estado totalitário decreta o confisco e incineração de todo material impresso. A única maneira de preservar um tal acervo é cada pessoa “tornar-se” um livro, decorando-o para evitar sua perda para sempre.

 

linnocent.jpgL´Innocent - (O Ingênuo) (Direção: Pierre Boutron, 2012, 89 minutos, França) Homem simplório de habilidades limitadas, manipulado por dois malandros, vê-se envolvido em assalto no qual um policial é atropelado e morto pelo carro de fuga que ele dirige. Os dois assaltantes escapam mas ele é preso e condenado à morte. Sua evolução na cadeia começa por desenvolver a capacidade de leitura, quase de iletrado, para acompanhar o que dele dizem os jornais. Ganha um dicionário, primeiro o Petit Robert e depois o Larousse, e passa a aprender novas palavras, complicadas, dedicando-se a aplicá-las a seus sentimentos e ideias. Ênfase na aquisição da leitura como instrumento de libertação. Com Patrick Timsit como protagonista e Isabelle Gélinas como a advogada de defesa.

Memórias do Cárcere  (Direção: Nelson Pereira dos Santos, 1984, 185 minutos, Brasil) Bela filmagem, pelas mãos do pioneiro do Cinema Novo, do importante livro de Graciliano Ramos. O único trecho controverso do filme tem justamente a ver com leitura. Como ninguém ignora, o livro, que não é de ficção mas sim de memórias, foi escrito  enquanto o autor se encontrava preso na Ilha Grande, durante a ditadura Vargas. O filme mostra que, quando veio a ordem de soltura, para que o manuscrito não fosse confiscado os demais detentos de crime comum dividiram entre si as numerosas folhas do manuscrito e as esconderam dentro da camisa. Ora, isso nunca aconteceu. O próprio livro narra como o manuscrito foi perdido para sempre, obrigando Graciliano a escrever tudo de novo após ganhar a liberdade. Uma pequena falsificação idealizante – ou seja, tomara fosse assim...

Conrack (Direção: Martin Ritt, 1974, 106 minutos, Estados Unidos) Nos gloriosos anos 60, como parte integrante da campanha pelos direitos civis dos negros, que incluía alfabetização para registro como eleitor, um rapaz branco, vivido por John Voigt, vai dar aula numa escola primária para crianças negras, no Sul. Os percalços, as perseguições, a intolerância dos brancos são mostrados passo a passo. Nesta campanha histórica, muito voluntário de boa vontade perdeu a vida, assassinado pelos racistas. O mesmo Martin Ritt de Stanley & Iris dirige este filme.

Stanley & Iris (Direção: Martin Ritt, 1989, 104 minutos, Estados Unidos) Os americanos gostam de dizer que o analfabetismo foi erradicado no país, assunto delicado e tabu que justamente Martin Ritt – um dos poucos cineastas de esquerda que restaram em Hollywood, depois do expurgo operado pelo famigerado Comitê de Atividades Antiamericanas nos anos 50 -  adepto de mexer em vespeiro, aqui trata. Um operário (outra raridade no cinema americano) chegou à idade adulta sem saber ler e por isso sua vida vai de desastre em desastre, em meio à vergonha que sente. Outra operária resolve ajudá-lo e daí se desencadeiam as peripécias. Maravilhoso filme, que se detém nas pequenas dificuldades cotidianas dos pobres. Tal recorte merece dois extraordinários atores, como Robert De Niro e Jane Fonda.

La lectriceLa lectrice   (Direção: Michel Deville  1988, 97 minutos, França) Inspirada por um livro que fala de uma moça que se dedica a ler para quem precisa, uma garota adota por profissão ler textos para velhos e doentes.  Identificando-se com a protagonista do romance, começa a ter dificuldade quanto à própria identidade: não sabe mais se é ela mesma ou aquela do romance. Daí para a frente, a fusão entre realidade e ficção vai comandar o interesse narrativo do entrecho deste raro filme. Com Miou-Miou.

Minhas Tardes com Marguérite  (Direção: Jean Becker , 2012, 82 minutos, França) Filme encantador, lento e quase silencioso, em que as descobertas tardias trazidas pela leitura recebem tratamento de alto bordo graças ao enfrentamento de dois “monstros da cena”: Gerard Depardieu e Giselle Casadésus. Ele, um feirante inculto; ela, uma velhinha cientista que tinha trabalhado em missões humanitárias na África e que se dedica a convencê-lo do valor da leitura e do cultivo da mente. Ambos se encontram por acaso numa pracinha, onde ela, que vive num asilo para idosos, vem passear com seus livros. Ela lê para ele trechos de A Peste, de Camus, e aos poucos um novo mundo, o mundo da leitura, se abre para ele.

O Leitor  (Direção: Michael Daldry, 2008, 124 minutos, Alemanha/EUA) Dilacerante filme passado na Alemanha dos dias de hoje, que mistura a descoberta do sexo e do primeiro amor com as consequências a longo prazo de uma catástrofe histórica de proporções gigantescas: o nazismo. O fascínio pela literatura e pelas estórias que a constituem, como lenitivo para situações de destituição e desgraça. O compartilhar de outras experiências de vida como abertura existencial que a literatura propicia. Com Kate Winslet e Ralph Fiennes.

PreciosaPreciosa (Precious – Ainda Resta uma Esperança) (Direção: Lee Daniels, 2009, 110 minutos, Estados Unidos) Uma situação dramática de mundo cão: Precious, negra, obesa, e pobre, tem 16 anos e vive com a megera de sua mãe sádica, que a humilha e maltrata. Novamente grávida, já tem uma criança, portadora da síndrome de Down, que concebeu do próprio pai. A aprendizagem da leitura e da escrita vai abrir-lhe as portas da imaginação, deixando passar a luz neste inferno sem saída que é o quinhão de Precious. Com Gaborey Sidibe.

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH da Universidade de São Paulo, integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate