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Como escritores, editoras e Academia Brasileira de Letras apoiaram ditadura militar. Nomes como Rachel de Queiroz e Rubem Fonseca e editoras como Record ajudaram no roteiro do golpe e seus desdobramentos

Como escritores, editoras e Academia Brasileira de Letras apoiaram ditadura militar.
Este, o título de reportagem assinada por Sérgio Barbo, publicada pela Agência Pública. Abaixo, três linhas de apoio:
Nomes como Rachel de Queiroz e Rubem Fonseca e editoras como Record ajudaram no roteiro do golpe e seus desdobramentos.
A reportagem é provocativa, no melhor sentido. Necessariamente, chama à reflexão, concorde-se ou não com ela, e digo logo, de pronto, concordar no essencial, porque traz evidências históricas, e quanto a estas, não há como escapar.
Os nomes estão na reportagem, e não queria me ater a eles. Não será essa minha prioridade.
Há os entusiasmados, intelectuais empenhados na vitória do golpe e na manutenção da ditadura, e outros, levados pelo tsunami da propaganda contra Jango Goulart, não tão seguros, e depois arrependidos do apoio.
Necessário, portanto, de alguma maneira, fosse o caso de discutir nomes, separar o joio do trigo. Não vou fazê-lo. Se o fizer, se citar nomes, será apenas de passagem, e sem a pretensão de fulanizar um problema bem mais amplo. Talvez me refira apenas aos “intelectuais orgânicos” do golpe e da sustentação da ditadura, se for tentado a tanto, e é difícil não o seja.
Ressalto, num cuidado prévio, ser necessário separar a “obra de arte” do envolvimento político do intelectual. Às vezes, ao fazer a crítica política desse ou daquele, dessa ou daquela, parece estarmos condenando tudo, jogando fora o bebê junto com a água do banho.
Tentações, são tentações, e sou levado a lembrar a magistral obra de Vargas Llosa, tantos livros com viés nitidamente de esquerda, ou com personagens revolucionários, e ele, um político raivoso de extrema direita. Várias vezes, eu próprio, na luta política, usei-o para combater déspotas locais, ao valer-me, por exemplo, da “Festa do Bode”, onde desmonta Rafael Trujillo, para citar uma publicação apenas.
A obra de cada autor, assim, deve ser olhada em si mesma, procurando deixar de lado, se possível, as escolhas políticas dele. Senão, incorreremos em sérios equívocos, a correr o risco de ignorar autores extraordinários, de escolhas no mínimo equivocadas, às vezes para dizer o mínimo.

Tentações
Falo de um nome.
Jorge Luís Borges, um gigante.
Esteve ao lado do sanguinário Jorge Rafael Videla.
Não bastasse, também de Augusto Pinochet.
Talvez por isso, já no fim da existência, ao ser perguntado sobre qual mensagem deixaria aos jovens, respondeu melancolicamente não poder dizer nada a eles por não ter sabido administrar a própria vida, marcada, segundo ele próprio, por uma série de equívocos.
Não podia dar conselhos, enfatizou.
“Quando penso no meu passado, sinto vergonha”.
Não sei se tal confissão, se a vergonha face ao passado, dizia respeito ao seu apoio a duas das mais sanguinárias ditaduras da América Latina. De fato, uma série de equívocos. Tentava se defender das más escolhas políticas.
“Um escritor não deve nunca ser julgado pelas suas ideias, mas antes pelo prazer que proporciona e pelas emoções que provoca”. Tem razão. E a obra de Borges é inestimável.
Mas, acrescento, o cidadão envolvido no mundo, na história, será avaliado também, e nesse caso, no caso dele, não pode ser avaliado positivamente, por obviedade. Os heróis dele derramaram sangue dos povos, e isso não é metáfora.
Texto é assim: ele nos leva, e o risco é a gente se perder. Não saber voltar ao ponto de partida. Advertência em benefício próprio. Porque quase me perco em Borges. Agência Pública, matéria do início do texto. No lead, se dirá não ter sido apenas os militares a sustentar a ditadura brasileira. A fronteira literária, acrescentará, ajudou a manter o apoio ao regime. Voltemos.

Estados Unidos no jogo
Talvez, mais do que os nomes, importa a informação sobre a atuação do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, o IPÊS, organização patrocinada pelos Estados Unidos e com forte presença nacional. Fundado em novembro de 1961 por banqueiros, empresários, intelectuais e oficiais da Escola Superior de Guerra.
Desde lá, vamos combinar, a direita estava atenta à luta cultural. E procurava organizar os intelectuais orgânicos dela. E, ainda, procurar os não-orgânicos, os simpatizantes das ideias conservadoras. Vários, depois, irão se arrepender. Mas, aí Inês já era morta. Muita gente morta.
Não se sabe se já liam Gramsci. Talvez, para não subestimar, já o conhecessem. O certo é que a direita brasileira, antes do golpe, desenvolvia luta pela hegemonia, conceito desenvolvido por ele largamente. Aquela direita procurava influenciar corações e mentes, e muitos intelectuais cumpriram papel decisivo nessa luta de preparação do golpe.
Compreendeu não bastar apenas os fuzis, os tanques. Era preciso retaguarda – o apoio, senão de todo o povo, de uma parcela considerável dele. E trabalhou para isso, com dedicação e método.
Já se disse: havia os capitães, a expressão é de Gramsci ao se referir aos dirigentes essenciais do processo revolucionário. Capitães, aqui, aqueles intelectuais adepto das ideias conservadoras, convictos da necessidade de derrubar o governo Jango, sobretudo por ser um governo de ideias reformistas, como a reforma urbana, a agrária, a reforma educacional, e isso iria atingir alguns privilégios, coisa que a Casa Grande nunca admitiu.
Aqueles intelectuais consideravam que tudo valia a pena para pôr abaixo aquele governo. E procuravam de todas as maneiras criar as condições, juntar os meios capazes de convencer a população. Eram contistas, romancistas, cronistas, jornalistas, alguns de nomeada, famosos, alguns na Academia Brasileira de Letras, ocupando espaços. E com a palavra de ordem de ser aquele um governo comunista. Ontem como hoje.

Onde o comunismo?
Vamos combinar?
O governo Jango era um governo de esquerda, lato senso. Mas estava longe de ser um governo socialista, quanto mais comunista.
As reformas propostas por ele eram de natureza progressista, indiscutivelmente. Fariam o país avançar, desenvolver-se, distribuir renda.
Não propunha mudar o modo de produção, em nenhum momento. Queria distribuir renda, distribuir terra, garantir habitação, educação para o povo. Propostas de uma sociedade capitalista, diga-se, com algum grau de justiça social, na linha da social-democracia, quando esta tinha ainda algum significado, sobretudo a partir das experiências europeias. Aquela proposta, num Brasil avesso a reformas, a quaisquer reformas, implementada, seria um avanço extraordinário.
Os golpistas insistiam: governo comunista.
Através de intelectuais conservadores procurava criar o clima favorável ao golpe. Evidente, não eram apenas eles. Era uma estrutura a serviço daquele objetivo. O IPÊS estava intimamente articulado com as articulações golpistas, íntima relação com os generais, e com os nomes influentes do establishment norte-americano, presentes em toda a operação, como o general Vernon Walters e o embaixador Lincoln Gordon, figuras essenciais de todo o movimento contrarrevolucionário.

Luta pela hegemonia
O front principal do IPÊS era a luta cultural, a luta pela hegemonia, conquistar corações e mentes. Precisavam de escritores e de editoras, como diz a historiadora e editora Joana Monteleone, citada na matéria.
Com os intelectuais, os escritores, e com as editoras, e nem precisamos falar dos meios de comunicação, inteiramente controlados pelos golpistas, salvo o jornal “Última Hora”, juntando tudo isso estava criado o caldo de cultura capaz de desestabilizar o governo Jango, a partir da propagação de pautas próprias da direita, sobretudo, insista-se, procurando assustar a população, especialmente as camadas médias, a pequena burguesia, com o espectro do comunismo, de que fala o velho Marx na abertura do Manifesto Comunista.
Com propriedade, a matéria mostra a ênfase dada pelo IPÊS à publicação de impressos, tão essencial naquela quadra histórica. Anotem: entre os membros do instituto, estava o fundador Gilbert Huber Jr., dono das Listas Telefônicas e de um dos maiores grupos gráfico-editoriais do país.
Ainda Israel Klabin, do setor de papel e celulose.
Cândido Guinle, da editora Agir, voltada com ênfase à publicação de livros católicos.
Décio de Abreu, da Distribuidora Record.
E o general Propício Machado, da editora Ao Livro Técnico.
Além dessa monumental estrutura golpista, o IPÊS fez convênios com ao menos vinte companhias do setor editorial, “obtendo posição estratégica na supervisão do que se publicava no país”.
Os números compilados pela reportagem são assustadores: o instituto, de fevereiro de 1962 até junho de 1963, distribuiu para todo o Brasil um total de 2,24 milhões de livros e folhetos.
Luta cultural na veia.
Implacável luta pela hegemonia.
Conquista de corações e mentes.

Luta de classes
Uma ditadura não nasce assim como um raio caído num dia de céu azul. Não surge ao acaso. E como se vê, depende da atividade do pensamento, do desenvolvimento, no meio da população, de concepções de mundo.
E, necessário enfatizar, a ditadura, na preparação dela, requer intelectuais. Prontos a justificar as ações dos golpistas, por mais reprováveis que sejam, por mais violentas. Argumentos, há para tudo. Intelectuais não são seres à parte do mundo. Não são infensos à luta de classes. São parte dessa luta.
Enquanto criam, e podem desenvolver obras genais, tomam posição. Nesse caso, na caminhada dos golpistas rumo à ditadura, houve muitos intelectuais envolvidos, uns mais, outros menos. Capitães e soldados rasos.
Tais intelectuais podiam provir da Igreja Católica, da Academia Brasileira de Letras, ou de qualquer outra instituição da sociedade civil.
A luta de classes perpassa toda a sociedade e todas as instituições. Marx, o caluniado Marx, não inventou a luta de classes. Ela passou a existir desde o surgimento das classes sociais.
Os intelectuais não constituem uma casta à parte, não tocada pelas contradições da sociedade. São parte do mundo e sempre tomam partido, consciente ou inconscientemente, no mais das vezes, conscientemente. Muitos se consideram numa redoma, equivocadamente.
Intelectuais brasileiros, não poucos, homens e mulheres, envolveram-se na luta para viabilizar a ditadura. Alguns, assustados verdadeiramente com o fantasma do comunismo porque reacionários, conservadores, sem desconhecer às vezes algum grau de ignorância, quando não tocados pelo obscurantismo, ignorância e obscurantismo do qual não estão necessariamente livres.
Outros, temendo a radicalização do processo político brasileiro, a agitação. Quem sabe, imaginavam, talvez inocentemente, pudessem os militares arrumar a casa rapidamente, pudesse o Brasil encontrar a paz, anseio de acabar com as contradições. Paraíso perdido, recuperá-lo depois de chamar a espada.

Chamando a espada
Volto a Marx, confesso, gosto dele: a burguesia chama a espada. Depois, a espada a domina, está lá, no Dezoito de Brumário. Com muita gente, inclusive com muitos dos intelectuais envolvidos na preparação do golpe, ocorreu isso.
Como se dissessem, quando viram a posteriori tanta violência, não foi isso o combinado. Pareciam ter sido envolvidos, assim como pobres inocentes. A ditadura, sorria. E continuava a marcha implacável, espada em punho, sangrando quem encontrasse pela frente. Muitos deles, desapontados, passaram, cada um a seu modo, a combater a ditadura, felizmente.
Por isso, preferi não enfatizar nomes. Falou-se na Academia Brasileira de Letras, na matéria. Verdade. Instituição por instituição, por que não lembrar também a sacrossanta Igreja Católica? Os principais intelectuais dela, o colégio de cardeais a compor a CNBB, apoiaram o golpe de 1964.
Aqueles intelectuais, e como não vou chamar de intelectuais o sacro colégio de cardeais?, só vieram a fazer autocrítica, na prática, a partir do final de 1969, quando torturadores matam o padre Antônio Henrique, assessor de dom Hélder Câmara, de maneira brutal.
A partir dali, a intelectualidade da Igreja Católica, inclusive muitos leigos, envolve-se profundamente na luta contra a ditadura, sendo uma força absolutamente essencial. Despontou ali uma notável geração de bispos, arcebispos e cardeais, nem se fale em sacerdotes, comprometida profundamente com os direitos humanos, um cristianismo vindo das melhores páginas do Evangelho.
Houve editoras militantes, como a de Gumercindo Rocha Dórea, a GRD. Dórea, militante integralista. Lançou o primeiro romance de Rubem Fonseca, não tem jeito, aqui cabe citar. Fonseca era ex-comissário de polícia, executivo da Light, escritor iniciante, e um dos líderes do IPÊS.
A GRD, segundo a informação da matéria, foi tema do livro “Guerra Fria e Política Editorial – A Trajetória da Edições GRD e a Campanha Anticomunista dos Estados Unidos no Brasil”, de autoria da professora da Universidade Federal da Bahia, Laura de Oliveira.
O livro detalha o convênio entre a editora e a Agência de Informação dos Estados Unidos (USIA), responsável por financiar a publicação de obras de interesse cultural dos Estados Unidos, a dizer de maneira mais apropriada, agência responsável, entre outras, para o desenvolvimento da luta político-cultural nos países ao redor do mundo onde o império tivesse interesse, luta pela hegemonia, pela afirmação das concepções de mundo próprias do capitalismo.
Para se ter uma ideia, a USIA, entre 1953 e 1973, fomentou, a edição de mais de três mil livros no Brasil. Mais de sessenta editoras teriam se beneficiado de subsídios da agência, especialmente a Fundo de Cultura, da família de Olavo Bilac, a Lidador e a Record.

Revolução dos Bichos
Para derrubar mitos, a aliança IPÊS/USIA lançou no Brasil a clássica publicação anticomunista, sim, anticomunista, chamada A Revolução dos Bichos, de George Orwell. O tradutor, ninguém menos do que o capitão Heitor Aquino Ferreira, teria inspirado o título. Sabe nada, inocente: às vezes, vejo gente de esquerda elogiando o livro. A direita não se engana quando se trata de luta político-cultural, luta pela hegemonia, insisto.
Vamos combinar?
A luta pela hegemonia era prioridade da direita brasileira antes do golpe. Lutava, e bem, para preparar o terreno. A USAID produziu, via Bloch Editores, um milhão de folhetos da Aliança para o Progresso, um programa dos Estados Unidos, voltado à dominação dos países chamados subdesenvolvidos, chegado sempre sob a forma de ajuda.
Como disse, a matéria tem o mérito de provocar a discussão. Como próprio do jornalismo, lembrar os nomes esquenta a reportagem. O essencial dela, no entanto, mais do que lembrar pessoas, é revelar a luta de classes antes e depois do golpe, e aqui especificamente luta desdobrada no campo da cultura, das ideias, das concepções de mundo, luta encarniçada, da qual dependia a solução da crise vivida pelo país.
Tratava-se de saber qual o rumo do Brasil. Se persistia com as reformas progressistas, propostas por Goulart, ou se adotava o caminho do golpe, com a afirmação de outro rumo: capitalismo dependente, subordinado basicamente ao imperialismo norte-americano, à lógica dos capitais internacionais, principalmente dos Estados Unidos.
Houve golpe militar, disso não há dúvida. Ditadura militar, e ponto. Mas ela nasceu de uma articulação ampla, a envolver também a luta cultural, luta pela hegemonia, a provocar tantas mobilizações, tantas passeatas significativas dando apoio aos militares, em marcha.
Dessa luta, os intelectuais de direita, os mais empedernidos, os menos, participaram. Estando ou não no interior de instituições, como Academia Brasileira de Letras, ou quaisquer outras. Intelectuais não vivem à parte do mundo – vou insistir. Sempre têm posição. Como tiveram naqueles acontecimentos. Houve muitos, muitos mesmo, a combater a ditadura. E houve aqueles intelectuais a preferir o terror, o sangue derramado dos lutadores pela liberdade. E a história registra tudo. Uns e outros estão lá, no livro da história, implacavelmente.

Referências
BARBO, Sérgio. Como escritores, editoras e Academia Brasileira de Letras apoiaram ditadura militar. Agência Pública, 24/06/2025.
GODOY. O grande equívoco de Jorge Luis Borges. Poética de Botequim, 22/10/2017.
REVISTA Arara. Como Borges se tornou um dos mais importantes escritores de todos os tempos.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros