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Como não tivemos força para fazer uma real justiça de transição, as feridas não cicatrizaram. Bolsonaro sabe, e por isso acena com mais e mais autoritarismo

Dói, dói muito. E provoca indignação. Nojo.

Claro, a ditadura é para todos nós, sobreviventes, os que a enfrentaram e conseguiram escapar vivos, esse misto de dor, repulsa, indignação.

Até porque ela terminou ontem. Ainda estamos vivos, dela nunca esqueceremos.

Por trágica presença na vida brasileira e na vida de cada um dos lutadores.

A dor, a repulsa, o nojo, a indignação são maiores quando a lembrança é de um ente com quem compartilhamos sonhos, luta comum.

Fernando Santa Cruz é da minha geração, nasci em 1946, ele em 1948. Fomos contemporâneos do movimento estudantil, os dois da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES). Fui preso, ele seguiu na luta.

E em 1974, foi assassinado pelos facínoras da ditadura no Rio de Janeiro, junto com Eduardo Collier Filho, também meu contemporâneo nas lutas do movimento estudantil em Salvador, eu já clandestino, nós três da Ação Popular (AP), organização revolucionária de combate à ditadura.

A AP defendeu a luta armada, sim, como direito de qualquer força política sob uma tirania. Não devemos nos esconder dessa condição.

É da melhor tradição política o direito sagrado de insurgir-se contra uma ditadura.

Nunca, no entanto, a AP foi sanguinária, como quer o presidente. Sanguinária e terrorista, a ditadura.

Quando Fernando Santa Cruz foi preso, dia 23 de fevereiro de 1974, eu cumpria pena na Penitenciária “Lemos Brito”, em Salvador, desde novembro de 1970.

Os dois, ele e Eduardo Collier Filho, foram presos, seus corpos jamais encontrados, na esteira de uma vasta operação destinada a eliminar os principais dirigentes da AP, levada a cabo com precisão cirúrgica, e de forma sanguinária, violenta, covarde.

Foram mortos vários dos principais quadros políticos da organização, entre os quais Gildo Macedo Lacerda, preso em Salvador no segundo semestre de 1973, levado para Recife, e lá, depois de violentas torturas no DOI-Codi da capital pernambucana, é morto no dia 28 de outubro, e desaparecido. Companheiro da jornalista Mariluce Moura, grávida quando presa junto com ele, cuja filha, Tessa, não conheceu o pai.

José Carlos Novaes da Mata Machado foi outro dos mortos na mesma operação, também no dia 28 de outubro de 1973, também em Recife.

Um banho de sangue.

Houve decisão da ditadura de matar os principais dirigentes da AP, em fase de reorganização depois de a maioria de seus militantes ter se incorporado ao PCdoB.

Médici era um assassino, como fartamente documentado. Dirigente de um regime genocida. A ditadura não permitiria a reorganização.

Paulo Stuart Wright, um dos principais dirigentes da AP, e uma das principais lideranças do processo de reorganização, foi preso no início de setembro de 1973 pelo II Exército e levado ao DOI-Codi de São Paulo, onde foi morto sob tortura, também desaparecido. Era irmão do pastor presbiteriano Jaime Wright, um dos parceiros do arcebispo Paulo Evaristo Arns na organização do levantamento sobre os crimes da ditadura “Brasil Nunca Mais”. A morte de Fernando Santa Cruz deve ser entendida nesse contexto. As forças de repressão vinham num crescendo, tentando eliminar todas as organizações revolucionárias, inclusive o PCB. A AP entre elas. Nesse caso, desencadeou uma espécie de caravana da morte. Fernando foi um dos últimos.

Nessa caravana da morte, mataram ainda outro de meus companheiros do movimento estudantil, ele na União Nacional dos Estudantes (UNE), eu na UBES, o brilhante Honestino Guimarães. Passou em primeiro lugar geral no vestibular para o curso de Geologia de 1964, da Universidade de Brasília, aos 17 anos. Foi preso em 10 de outubro de 1973 no Rio de Janeiro, morto sob torturas, desaparecido.

Dois dias antes, no Rio de Janeiro, prenderam outro meu contemporâneo do movimento estudantil, Umberto Albuquerque, como Honestino dirigente da UNE, paraibano, militância iniciada a partir de Pernambuco. Desaparecido. Todos da AP, organização oriunda, sobretudo, de fileiras cristãs, mas depois assumindo a perspectiva marxista.

Fernando Santa Cruz nasceu em 20 de fevereiro de 1948 no Recife. Sua mãe, Elzita Santos de Santa Cruz, desde que o filho foi morto fez uma incessante busca, encerrada apenas aos 105 anos, quando morreu, no dia 25 de junho deste ano.

Essa busca está fartamente revelada no livro Onde Está meu Filho, da Cepe Editora, escrito a várias mãos. Ali está a dor da mãe, dos filhos, entre os quais o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, a quem o presidente da República resolveu agredir, provocar, insultar ao dizer que sabia como Fernando Santa Cruz havia morrido.

A Marinha e a Aeronáutica já reconheceram a prisão de Fernando Santa Cruz, o que é uma confissão de que foi morto sob a guarda do Estado brasileiro, e o desaparecimento, obra desse mesmo Estado, obviamente. Isso foi largamente divulgado pela mídia empresarial, o que desmente de modo cabal a provocação do presidente.

No Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de São Paulo foi encontrada a ficha de Fernando, em 1992, na qual se afirma que ele fora preso no Rio de Janeiro em 1974, o mesmo acontecendo no relatório do Ministério da Marinha, onde consta que ele “[...] foi preso no RJ em 23/2/74, sendo dado como desaparecido desde então”.

O Brasil não conseguiu dar corpo a uma justiça de transição que punisse os criminosos do período da ditadura. Ficaram impunes. Não sou dos que desmerecem o extraordinário trabalho da Comissão Nacional da Verdade ou estaduais e algumas municipais.

A impunidade é decorrência de uma correlação de forças. O povo brasileiro não se envolveu na luta para punir os que cometeram crimes graves contra a humanidade. E seguimos adiante com nossa tradição conciliatória, com uma transição por cima, uma democracia frágil, tão frágil que elegeu um presidente claramente favorável à tortura, defensor do assassinato de adversários políticos pela ditadura, admirador de um criminoso como Carlos Alberto Brilhante Ustra. Ele nunca negou tais opiniões. Não temos sequer o direito de nos surpreender.

Resta saber por que razão Bolsonaro voltou à carga, estimulando a formação de uma frente contra ele, ao menos quanto a esse último ataque ao presidente da OAB, a envolver toda a mídia convencional, personalidades as mais variadas, políticos da direita liberal, sem contar, claro, todo o pensamento de esquerda e todos os que tenham algum apreço pela democracia.

Não gosto da ideia de recorrer à ideia da loucura, ao desatino, ao descontrole do presidente eleito pelo povo brasileiro. Por todas as razões, isso é um equívoco. Por uma questão de fundo, aquela que leva a naturalizar a existência dos manicômios, a justificar a luta contra Bolsonaro por sua doença mental, como alguns já chegaram a defender.

Besteira.

Destemperos, ele os tem.

Mas, ele é parte do sagrado projeto do neoliberalismo, foi escolhido pelo neoliberalismo como o que devia levar à frente seus objetivos, e ninguém negue que ele os defende com unhas e dentes. É tudo de assustador que se possa apontar do projeto neoliberal no Brasil desde que Michel Temer assumiu, com contornos tão destrutivos que não há exagero em afirmar-se a existência de uma caminhada destinada a destruir a Nação.

Não, não se trata de uma perspectiva, de coisas que podem ocorrer. Não se trata de delírio, catastrofismo. Tudo isso está ocorrendo aqui e agora na nossa cara. Outras nações foram pro ralo no Oriente Médio pela força das armas dos EUA. No Brasil, não haverá invasão. É a chamada guerra híbrida. Eles encontraram um ator para tanto. Ele cumpre a missão. É preciso contextualizar, para não simplificar e reduzir o presidente a um desatinado.

Jorge Amado fez uma novela notável: A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água.

Ali, naquelas fantásticas duas mortes, ou três, a depender do olhar, celebrava-se a vida, a alegria de viver.

A boemia como uma redenção, primeiro. A família, que o marginaliza, o mata. E depois, na morte, os amigos o tiram do caixão para outra noite de farras, até que afunde no mar. Não é doce morrer no mar?

Lembrei disso só como uma digressão suave, se é possível alguma suavidade no quadro atual.

O presidente, ao tentar matar Fernando Santa Cruz pela segunda vez, o faz com toda crueldade, nunca escondida na campanha nem ao longo de sua vida política.

Tensionar, deixar no ar o espectro da ditadura, algo que vá além desse regime neofascista encarnado por ele, eis o que acredito pretenda com as palavras dirigidas ao filho de Fernando Santa Cruz, Felipe Santa Cruz, presidente da OAB. Desviar a atenção do desmanche da Lava Jato diante das explosivas revelações do The Intercept Brasil. Sepultar o assunto do envolvimento das milícias com sua família. Dizer aos militares da possibilidade de um retorno ao passado e sinalizar para a atuação deles no caso de uma radicalização mais à direita, uma ditadura aberta, com destaque para um recado aos oficiais de baixa patente e às milícias, onde tem audiência.

Como não tivemos força para fazer uma real justiça de transição, as feridas não cicatrizaram.

Ele sabe, e por isso acena com mais e mais autoritarismo, e há uma parte de seus eleitores que o quer radicalizando ainda mais, com regressões de toda natureza.

Tenho dito que dia a dia as teorias da conspiração no Brasil de hoje são superadas pela realidade.

Eu não creio em bruxas, em bruxos, pero que las hay las hay.

É hora de uma chamada geral à democracia. Juntar todas as forças dispostas a enfrentar o que está em andamento.

Há urgência nisso.

Levantar-se para não permitir esse retrocesso democrático, e aí trata-se de buscar todas as forças políticas que compreendam o que pode significar um fechamento político ainda maior.

Para barrá-lo.

Defender a democracia, as liberdades políticas, o respeito à Constituição, o sagrado direito de informar e ser informado, a liberdade de expressão, a de imprensa.

Avançar contra o presidente para que seja constrangido a revelar o que sabe, descartar as mentiras e as fantasias disseminadas por ele – e aí as iniciativas já começam a se desenhar.

A OAB, depois de algum tempo, revive os seus melhores momentos de amor à democracia, à liberdade. E pode ser um elemento central de congregação. A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) também recupera seu protagonismo.

A OAB sofre o segundo atentado. O primeiro, sob a ditadura, quando mataram a secretária Lyda Monteiro. O Exército a matou: agentes do Centro de Informação do Exército, em 27 de agosto de 1980. A revelação é da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro. A bomba que matou Lyda Monteiro era destinada ao presidente Seabra Fagundes.

O segundo, agora, ao matar Fernando Santa Cruz pela segunda vez.

Felipe, o filho, não merecia isso.

O sono letárgico de parte considerável da sociedade brasileira parece terminado.

Parece.

A brutal retirada de direitos, o inigualável ataque à soberania nacional, a ousadia jornalística de Glenn Greenwald e a violência desencadeada contra ele pelo próprio presidente, o desrespeito à memória dos mortos e desaparecidos simbolizado no ataque a Felipe Santa Cruz e à memória de Fernando Santa Cruz, tantas outras ousadias à direita por parte do presidente vão demonstrando a pretensão dele de ir mais longe, na direção de um regime ainda mais autoritário.

A democracia só pode resgatada por nós, por aqueles que a cultivam como um valor universal.

Lembro-me de Waldir Pires: a democracia é um projeto inconcluso.

É.

A luta continua.

Fernando Santa Cruz cruzava lanças por uma sociedade justa, livre, democrática, sem ditadura.

Devemos ser dignos dele.

Fernando Santa Cruz, presente!

 

 

 

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros