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Ou a violência contra as mulheres retratada em várias culturas

dormindo_com_o_inimigo.jpgDormindo com o Inimigo (Sleeping with the enemy) (Direção de Joseph Ruben, Estados Unidos, 1991, 98 minutos) - Quando examinamos filmes que tratam da violência contra a mulher, surpreende-nos que quase sempre focalizem árabes, negros e pobres, ou relações irregulares. É raro encontrar filmes que mostrem brancos abastados espancando suas mulheres dentro do casamento, alvo da Lei Maria da Penha. Um deles é este, com Julia Roberts, em que, num casal perfeitamente normal, o marido é tão abusivo que a única solução encontrada pela esposa é fingir um acidente mortal e esconder-se bem longe. Semelhante é Nunca mais (Enough), com Jennifer Lopez, em que a protagonista foge do marido espancador levando a filha pequena. Vale a pena ver, na mesma linha, o espanhol Pelos meus Olhos (Te Doy mis Ojos), dirigido por uma mulher, Icíar Bollaín, e premiado com o Goya, o Oscar da Espanha. Por outro lado, é de notar que a violência contra a mulher seja frequente nos seriados televisivos de detetives, como as várias CSI. Já houve até um episódio glosando o escândalo do presidente francês do FMI, que no ano passado atacou sexualmente num hotel de Nova York uma arrumadeira negra e muçulmana.

parasemprelilya.jpgPara Sempre Lilya (Lilja 4 Ever) (Direção de Lukas Moodysson, Suécia/Dinamarca, 2002, 109 minutos) - Filme sueco que aborda de frente um dos piores problemas relacionados a mulheres atualmente: o tráfico de corpos. Entre as originárias dos países do Leste estima-se em 100.000 pessoas só nos últimos dez anos, enganadas sob o falso pretexto de obter emprego nos países ricos. Vendidas, drogadas, estupradas e subjugadas, são forçadas a se tornarem prostitutas profissionais, em redes dominadas pelos piores criminosos, que as escravizam e punem a recalcitração com morte. É o caso de Lilja, que no auge do desespero ante as tentativas frustradas de se libertar, acaba por suicidar-se aos 16 anos. O caso é verídico e comoveu o mundo, quando ocorreu na Escandinávia. Outros grandes fornecedores para os países ricos são as Filipinas e o Brasil.

MoolaadéMoolaadé  (Direção de Ousman Sembene, Burkina Faso, Senegal, França, Camarões, Marrocos e Tunísia 2004, 124 minutos) - O diretor senegalês que é considerado como o pai do cinema africano trata de um problema gravíssimo. Numa aldeia no Senegal, as meninas aterrorizadas não querem mais ser submetidas à excisão ou clitoridectomia. Por isso, as mulheres mais velhas acolhem-nas em sua parte da aldeia, pondo em prática o “direito de asilo” (Mooladé), impedindo que os homens ultrapassem os limites territoriais para executar essa horrível cirurgia. Vê-se o embate entre duas tradições, ambas ancoradas no passado e sancionadas, sem que uma predomine sobre a outra. Já o filme Flor do Deserto mostra uma menina que não conseguiu escapar dessa sina, fugindo, aos 13 anos, de sua família de pastores nômades na Somália.

Monstro - Desejo AssassinoMonstro - Desejo Assassino (Monster)  (Direção de Patty Jenkins, Estados Unidos, 2003, 109 minutos) - Prostituta branca nos Estados Unidos, após ser maltratada, estuprada, assaltada, etc., volta sua ira contra os clientes e passa a assassiná-los. É um caso célebre, em que a mulher na vida real foi condenada à morte e executada, após matar sete homens. Deu o Oscar de melhor atriz a Charlize Theron, que, bela e elegante modelo de Christian Dior no intervalo entre seus filmes, desfigurou-se para viver a personagem e despertou muita admiração. A mesma atriz encarnou, no filme Terra Fria, uma trabalhadora branca numa mina nos Estados Unidos que, estuprada ao labutar nos subterrâneos, resolve denunciar e processar seu algoz. Consta que, na vida real, seria o caso jurídico pioneiro no país.

Poesia - ShiPoesia (Shi) (Direção Chang-dong Lee, Coréia do Sul, 2010, 139 minutos) - Filme sulcoreano que se dedica a denunciar o machismo de uma forma sutil, conforme três níveis do entrecho. O começo é sensacional: vê-se um grupo de crianças brincando no meio do capim de beira-rio, ao sol e com passarinhos cantando. Quando o espectador pensa: “Mas que clichê mais piegas”, lá vem o cadáver da garota boiando rio abaixo. O filme é feito pelo ponto de vista da avó, triplamente oprimida: por um neto dentro de casa que a explora e humilha; por um inválido de quem é empregada doméstica, única fonte de renda para sustentar o neto e o filho; e pelo filho doente que vive às suas custas e de quem cuida. O neto é cúmplice no estupro coletivo da garota de 14 anos, que, repetido durante meses, levara-a ao suicídio. Os pais dos rapazes estupradores juntam-se para encobrir o crime e a avó é a única mulher no grupo. Notável atuação da protagonista, notável conjunto de problemas. Premiado no festival de Cannes, entre outros.

A Separação (Direção de Asghar Farhadi, 123 minutos, Irã, 2010) - Se a menina Malala foi baleada pelos talibãs só porque queria ir à escola, a violência contra a mulher aparece sob outras formas naquelas paragens do mundo. Em Teerã, o divórcio no seio de um casal moderno em que a esposa tem uma carreira provoca ondas de choque. O foco do filme é a empregada doméstica, cuja vida é alterada de repente, enquanto as coisas vão piorando numa sucessão de pesadelo. Premiadíssimo, inclusive com o Oscar e em Cannes. O diretor, que passou longo tempo na prisão por causa de seus filmes, também fez Procurando Elly, em que, mesmo num ambiente moderno, o machismo se manifesta e vai crescendo ao ponto de culpar a moça desaparecida por vários crimes. Mas também pode chegar ao assassinato em defesa da honra da família, como no filme turco Quando partimos, no qual nem fugindo para Berlim a mulher estará a salvo. Ainda ficam nos devendo um filme sobre a lapidação de esposas, quase sempre falsamente acusadas de adultério pelo marido, recurso mais barato que o divórcio.

A vida secreta das palavrasA Vida Secreta das Palavras (The Secret Life of Words) (Direção de Isabel Coixet, 117 minutos, 2005, Espanha) - Nas guerras balcânicas que devastaram a ex-Iugoslávia, calcula-se que 40 mil mulheres foram sistematicamente vítimas de estupro coletivo e repetido, com o objetivo de “limpeza étnica”, ou seja, impregnar a raça inferior com a raça superior. Uma sobrevivente, exilada em outro país e com um emprego humilde, leva a vida avante carregando na lembrança os horrores por que passou. Premiado com o Goya, o Oscar espanhol. Em segredo, filme bósnio dirigido por Jasmila Zbanic, trata das mulheres estupradas em Sarajevo, com delicadeza e reticência. Uma menina cresce pensando que é filha de herói tombado na guerra, para descobrir que sua mãe é uma daquelas mulheres. Urso de Ouro no festival de Berlim, em 2006.

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH da USP e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate