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Agora a reforma é indispensável não apenas para simplificar o complexo sistema tributário, mas para adequar-se à nova realidade dos arranjos produtivos e comerciais pós-pandemia

Sempre que há troca de governo, crise fiscal, concentração de recursos em poder da União ou surgem inovações e transformações nos arranjos produtivos, o tema da reforma tributária ganha força na agenda legislativa. Para além desses problemas, alguns dos quais presentes na atual conjuntura, o país está passando por uma pandemia, que, além de ter exigido isolamento social e praticamente paralisado a economia, provocou mudanças comportamentais e procedimentais em pessoas físicas e jurídicas com forte impacto nas relações econômicas, tecnológicas, comerciais e de trabalho, que terão reflexos negativos na arrecadação de tributos.

Frente a essa realidade, a reforma tributária – que já era um mantra que se acreditava poderia resolver todos os problemas do país – agora se impõe não apenas para simplificar o sistema tributária brasileiro, um dos mais complexos do mundo, mas para adequar-se à nova realidade dos arranjos produtivos e comerciais do pós-pandemia, e, principalmente, como necessidade premente da mudança de fonte de tributação, considerando que a sobrecarga apenas sobre os mais pobres não irá mais arrecadar o suficiente para manter a máquina pública nem para assegurar que o Estado cumpra sua missão institucional de combater desigualdades territoriais e de renda, prestando serviços públicos, garantindo segurança e fornecendo proteção social.

De fato, antes mesmo da pandemia já estava evidente, por exemplo, que haveria necessidade de instituir novas receitas em substituição à tributação sobre a folha, que perdera a capacidade de arrecadação após a reforma trabalhista, e que era a principal fonte de custeio da previdência social. Agora, com as transformações tecnológicas, com a automação e o uso intensivo de plataformas digitais, é fundamental uma revisão do desenho tributário capaz de tributar essas novas formas de negócio, que estão livres de impostos ou com baixas alíquotas, como o comércio eletrônico e os serviços uberizados.

Embora o mercado sempre tenha reivindicado uma reforma tributária, tanto para simplificar quanto para reduzir a carta tributária sobre o setor produtivo, o fato é que esta deve ser uma pauta prioritária dos partidos e dos movimentos que defendem os interesses coletivos, pois sem uma profunda reforma no sistema, que tribute essas novas modalidades de relações produtivas e comerciais e também reveja a forma injusta de tributação, os mais pobres serão triplamente prejudicados. Em primeiro, porque continuarão arcando com a maior parte da carga tributária, através de tributos indiretos. Em segundo, porque sem uma reforma ampla e justa o Estado não arrecadará o suficiente para manter serviços públicos, universais e de qualidade. E, em terceiro, porque os programas sociais, assistenciais e previdenciários, que são responsáveis pela paz social no Brasil, serão drasticamente reduzidos, tendo o governo neoliberal o argumento de falta de recursos.

É verdade que existem muitas disputas sobre o tema, especialmente em quatro dimensões: 1) entre os agentes econômicos e sociais versus agentes públicos, este querendo aumentar sua receita e aqueles desejando pagar menos tributos; 2) entre os três níveis de governo – União, estados/DF e municípios – cada um querendo ampliar suas prerrogativas e aumentar sua participação no bolo tributário; 3) entre as regiões, as pobres querendo ampliar ou manter os atuais incentivos, renúncias e isenções e as mais ricas querendo eliminar essa medida distributiva; e 4) entre os setores da atividade econômica, já que não existe mudança tributária neutra – se um setor ganhar é porque outro perde. Mas é fundamental enfrentar essa realidade, até porque a ausência da reforma tributária levará ao aprofundamento das desigualdades e da miséria, já que o sistema atual não dará mais conta de arrecadar o suficiente para manter o que existe hoje, muito menos para atender à legião de desalentados no período pós-pandemia.

Entretanto, mesmo estando evidente a necessidade de recomposição das fontes de receitas tributárias da União, é estarrecedora a postura do presidente da Câmara e do governo federal. O primeiro, pela decisão de extinguir a comissão especial de reforma tributária, tendo como pano de fundo uma disputa com o presidente do Senado e o desejo de se livrar do relator da reforma, numa dupla retaliação: ao ex-presidente da Casa, que designou o relator, e ao relator, seu colega de partido, mas que apoiou outro candidato para a Presidência da Casa. O segundo, de orientação neoliberal, prefere que a situação se deteriore, com a redução da receita, porque isso facilita sua política de ajuste fiscal, de um lado para justificar redução da máquina pública e oscortes dos programas e dos direitos sociais, e, de outro, favorecer a política de transferência de atividades do setor para exploração em bases mercantis pelo setor privado e a voucherização dos programas sociais.

Deste modo, ou as forças progressistas colocam a reforma tributária como uma prioridade, a ser enfrentada tão logo se conclua a luta pela vacina e pelo auxílio emergencial de R$ 600, ou as fontes de receitas indispensáveis à capacidade financeira do Estado de cumprir sua missão institucional entrará em colapso, ampliando ainda mais a pobreza, a miséria e a desigualdade no Brasil. É consenso que o pós-pandemia será de reconstrução e se o país não recompuser suas finanças, não terá como acelerar a recuperação econômica nem como proteger os milhões de brasileiros que ficarão desempregados ou subempregados, considerando a reestruturação produtiva e comportamental que resultará da experiência do período de isolamento social.

A priorização da reforma tributária, como forma de recompor as receitas do Estado brasileiro, deve ainda ser acompanhada da denúncia e da defesa de revogação da política de desmonte dos serviços públicos, que passou a ser prioridade do governo brasileiro a partir do golpe de 2016. Desde o governo Temer que está em curso essa agenda de demolição dos serviços públicos e dos direitos sociais, inicialmente por meio da chamada “Ponte para o futuro”, que deixou como legado negativo o teto de gasto, a reforma trabalhista e a terceirização generalizada. Essa agenda, no governo Bolsonaro, foi aprofundada com o “Plano Mais Brasil”, que já aprovou retrocessos inomináveis, como a reforma da Previdência, a Lei Complementar 173 e a PEC emergencial, que criaram gatilhos automáticos de suspensão de gastos, sempre que a relação entre a despesa primária obrigatória e a despesa primária geral atingir 95%. Veja-se que nenhuma das medidas tratou de melhorar a receita, atacando sempre o lado da despesa, sob o falso fundamento de má alocação e excesso de gasto na área social.

Felizmente, as centrais sindicais de trabalhadores, mostrando-se à altura dos desafios que a conjuntura impõe, propuseram uma agenda legislativa com os eixos “em defesa da vida, do emprego e da democracia”, pontos que refletem a preocupação com o durante e com o pós-pandemia. De fato, os eixos da agenda são autoexplicativos e oportunos, porque denunciam o descompromisso do governo federal com a vida, frente as omissões e ao negacionismo na pandemia; chamam a atenção para a destruição e a precarização dos empregos; e alertam para os riscos à democracia, representados pelas ameaças e as atitudes autoritárias e antidemocráticas do governo Bolsonaro.

Os partidos políticos progressistas, suas fundações e as demais entidades dos movimentos sociais com compromisso com o interesse coletivo têm pela frente grandes desafios, a começar pela denúncia da disfuncionalidade e inapetência do governo federal para conduzir os destinos do país, passando pela cobrança de imunização da população e por um auxílio emergencial decente, até a revogação da legislação de desmonte do Estado de bem-estar social e a exigência de uma reforma tributária que recupere a receita do Estado de atender às demandas da população por trabalho, emprego, renda, serviços públicos de qualidade e programas de assistência aos mais necessitados. Reforma tributária solidária e inclusiva já!

Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, consultor e analista político, mestrando em Políticas Públicas e Governo na FGV-DF, diretor de Documentação licenciado do Diap e sócio-diretor das empresas Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais e Dialógico Institucional Assessoria e Análise de Políticas Púbicas