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Os filmes que falam da violência contra a mulher deixaram de tratar exclusivamente de árabes e muçulmanos. Tampouco se limitam, quando tratam de brancos, a mostrar maridos espancadores

Para contrabalançar a enxurrada de denúncias e a revolta contra a brutalidade masculina, agora estão privilegiando as mulheres em alguns campos – o que é ótimo. É só ver a premiação Nobel de 2018. O Nobel da Paz agraciou ex aequo Denis Mukwege, conhecido ginecologista do Congo que defende a causa de mulheres e crianças abusadas, fundador de um hospital para tratamento de vítimas da violência sexual, usada como arma de guerra. A outra metade foi para Nadia Murad, iraquiana da minoria yazidi, estuprada e vendida como escrava pelo Estado Islâmico, que se tornaria ativista da causa das mulheres. Ela escreveu um livro autobiográfico, intitulado The Last Girl: My story of captivity and my fight against the Islamic State. Nele conta que foi sabaya, ou seja, escrava sexual, esclarecendo a ignomínia de haver um substantivo só para designar essa terrível condição.

Já o Nobel de Física coube a Donna Strickland, canadense especialista em tecnologia de laser, juntamente com dois homens. É até irônico lembrar que Marie Curie é a única pessoa – mulher ou homem – a ganhar o Nobel científico duas vezes, uma vez de Física (1903, partilhado) e outra vez de Química (1911). Linus Pauling também ganhou o Nobel duas vezes, mas apenas um deles foi científico, o outro foi o humanitário da Paz. Quer dizer, o campeonato é feminino... Ainda assim, fazia 55 anos que o Nobel de Física não era atribuído a uma mulher.

A pergunta é irresistível: elas não merecem ou são invisíveis? Questão levantada e respondida pelo filme Estrelas Além do Tempo, cujo título original dá melhor ideia daquilo de que trata (Hidden Figures). O filme mostra três cientistas – mulheres e negras – que fizeram todo o trabalho dos cálculos de base da corrida espacial da Nasa e que jamais foram reconhecidas, toda a glória ficondo para os astronautas americanos, todos homens. Sem lembrar que a segunda pessoa a circundar a Terra em voo solo foi uma mulher, a russa Valentina Tereshkova, em 1963, logo depois do pioneiro Gagarin.

De modo geral, os filmes feitos por mulheres ou, quando feitos por homens, tratando de mulheres, mostram estar tomando novos rumos. Elas passaram de coadjuvantes a protagonistas, numa longa trajetória. E tais filmes tornaram-se muito frequentes, numa verdadeira avalanche.

A primeira constatação é a de que desistiram do herói perpetrando todas as proezas e até salvando a mocinha no último minuto. Agora são elas que se salvam a si próprias e salvam o herói também, importante inovação em padrão de enredo que é secular no cinema e até milenar nas narrativas.

Também é interessante que imbriquem com outras causas, já que se trata de uma causa libertária: abuso, assédio, homossexualidade e transgênero, minorias étnicas, migrações e refugiados. É só ver a lista de diretoras e roteiristas, cujos nomes não são os clássicos de brancos norte-americanos e europeus. Uma boa amostra encontra-se entre as candidatas ao Oscar de melhor filme estrangeiro, entre os quais figuram obras de mulheres diretoras provenientes da Áustria e do Reino Unido, mas também da Argélia, Belarus, Bósnia, Colômbia, Estônia, Kosovo, Líbano e Indonésia. Vamos ver se desse afluxo resulta alguma coisa, porque, desde 1957, quando esse prêmio especial foi instituído, portanto há 61 anos, só três mulheres o levaram.

Outro ponto a ressaltar: os filmes que falam da violência contra a mulher deixaram de tratar exclusivamente, o que era comum até agora, de árabes e muçulmanos, como se os povos que não são nem árabes nem muçulmanos fossem inocentes.

Tampouco se limitam, quando tratando de brancos, a mostrar maridos espancadores, como foi o caso de três filmes que já despertaram a atenção: ou seja, num casamento padrão, de classe média, sem nada de interétnico, nem personagens excluídos ou marginais. Já chamava a atenção o fato de suas protagonistas serem grandes estrelas: Julia Roberts (Dormindo com o Inimigo, 1990) e Jennifer Lopez (Nunca Mais, 2002). Nessa linha, outro bem mais importante foi o espanhol Te Doy mis Ojos (2003), dirigido por uma mulher, Icíar Bollaín, que arrebatou nada menos que sete prêmios Goya, o Oscar da Espanha. E que levou mais a fundo a perquirição dos porquês desse tipo de situação – mostrando os motivos de ser tão difícil às vítimas a denúncia e a salvação, que em geral significa abrir mão do amor, da família e do casamento em que acreditavam.

Tais filmes fazem lembrar o que conta em suas memórias D. H. Lawrence, autor de O Amante de Lady Chatterley, filho de mineiro inglês cujo divertimento semanal era empanturrar-se de bebida com os colegas no sábado à noite e depois ir para casa espancar a esposa – sábado após sábado, sem falhar um.

O que surpreende agora, após essa fase em que não predominava a perspectiva profissional, é que o abuso sexual faça parte da profissão. O que se nota nas denúncias, uma por uma, é que os homens figurem invariavelmente em posição de poder e assumam que os favores sexuais fazem parte do cargo, como está sendo tristemente descoberto em nossos dias.

As mulheres de Hollywood desempenharam papel preponderante nessa onda, sabendo utilizar sua visibilidade e o alcance mundial de sua imagem para tal missão. No Golden Globe 2018 fizeram campanha para irem todas de preto, no que foram acolitadas pelos homens. E as premiadas aproveitaram para fazer candentes declarações. A feminista histórica Oprah Winfrey, homenageada pela carreira, aproveitou a oportunidade para soltar o verbo. As iniciativas Me Too e Time’s Up atacam diretamente a questão. Me Too, ou seja, Eu Também, encoraja a revelação. Time’s Up, que poderia ser traduzido por Agora Chega, capta recursos, cuida do aspecto jurídico com processos penais e auxilia materialmente no que pode – é só ver em seu site.

Também integra essa nova onda feminista o recorde das maiores bilheterias do ano passado. Os três primeiros lugares são encabeçados por mulheres: Star Wars: Os Últimos Jedi (Daisy Ridley), A Bela e a Fera (Emma Watson) e Mulher-Maravilha (Gal Gadot).

Quanto ao que está acontecendo por aqui, os avanços ainda são tímidos. Mas temos agora algo de novo, a Lei da Importunação Sexual (2018), que vem complementar duas outras fundamentais, a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio.

Exame dos filmes

Dois filmes em que Charlize Theron brilhou tratam de assuntos correlatos, e, como Hollywood gosta de informar, ambos ficcionalizam histórias reais. Em Terra Fria (direção: Niki Caro, EUA, 2005), uma operária das minas, discriminada pelos companheiros de trabalho e estuprada, consegue obter justiça depois de longa luta. Ao que consta, foi o primeiro caso desse tipo a sair vitorioso nos Estados Unidos. Em Monster (direção: Petty Jenkins, EUA, 2004), uma rara serial killer mulher, brutalizada pelos homens desde sempre, torna-se prostituta, lésbica e assassina em série, até ser executada por sentença de pena de morte.

Aborto: Histórias Contadas por Mulheres – excelente documentário da HBO –, dirigido por uma mulher, Tracy Droz Agros, e lançado em 2016, mostra as complicações que cercam a decisão de abortar. E isso mesmo num país como os Estados Unidos, onde o aborto é legal desde 1973, quando a Suprema Corte legislou no célebre pleito Roe vs. Wade. Ainda assim, todo tipo de dificuldade é posto no caminho do exercício de um direito de todas as cidadãs pela sociedade, pelos políticos com objetivo eleitoreiro e pelos religiosos. É sempre, por isso, uma causa em risco.

Half the Sky é um documentário de quatro horas, apresentado pelo Canal Home & Health, sobre a violência contra a mulher, em vários países do mundo. Cada país recebe uma estrela de Hollywood para discorrer sobre os problemas locais, entre elas Meg Ryan, Gabrielle Union, Diane Lane, America Ferrera, Eva Mendes, Olivia Wilde. Os países vão do Camboja à Índia, passando por Paquistão, Somália, Vietnã, Nigéria. São horrores sobre horrores, desde a mutilação genital até o tráfico sexual de crianças.

Alguns filmes de ficção podem dar ao tema tratamento extraordinariamente original, muito além das estatísticas ou dos lugares-comuns. É o que se passa com o filme Albert Nobbs (Irlanda/UK, 2011), dirigido por Rodrigo García, filho de Gabriel García Márquez e bom representante da paixão cinematográfica a que o grande escritor foi fiel a vida toda. Dirige um filme de uma delicadeza excepcional, tratando de um assunto que beira o grotesco a cada minuto, sem cair nas armadilhas. O enredo, que se desenrola aos poucos, mostra um garçom e camareiro de hotel em Dublin, no século passado, que, vem-se a descobrir, era uma mulher disfarçada de homem. Aos 14 anos, pobre e desamparada bastarda, após ser estuprada por uma corja de cinco homens, essa é sua opção de autodefesa. Faz carreira e está há vários anos nesse emprego. O que lhe custa em repressão dão uma ideia seu corpo e seu rosto, rígidos, imobilizados e contidos, onde só os olhos expressam alguma coisa: grande desempenho de Glen Close. Ao ser descoberta vestida de homem por outra mulher, seu mundo se transforma, porque essa companheira de destino vivia com uma mulher e tinha até casado com ela. Albert começa a fantasiar que vai fazer o mesmo, com o dinheirinho suado de gorjetas que guarda debaixo de uma tábua no assoalho: sonha comprar uma pequena tabacaria e viver com sua esposa no andar de cima, tal como o outro casal. Mas sua pretendida recusa a proposta e está apaixonada por outro empregado, outro pobre coitado que só pensa em emigrar para a América e fugir ao destino de seu pai, que bebia e descontava na mulher e nos filhos, espancando-os a vida inteira. Quando ela aparece grávida, o rapaz decide ir embora sozinho. Mas antes de ir agride a moça, e quando Albert vai defendê-la é atacado, recebendo ferimentos mortais. Albert recolhe-se a seu quartinho e morre deitadinho, sem fazer alarde nem na morte: é de cortar o coração. Mais tarde, o casal modelar se desfaz por morte de uma delas, mas a viúva encontra a moça abandonada com o bebê ao colo, pede para carregá-lo e pergunta seu nome: é Albert. Já se vê que novo arranjo simpático está a caminho, com o casal se refazendo e dando um destino melhor aos três, inclusive ao bebê. O que não falta ao filme é originalidade e uma abordagem inusitada do tema da violência contra a mulher.

Elle (direção: Paul Verhoeven, França, 2016), com Isabelle Huppert. Mais um filme de estupro, mas com infinitas nuances, dificílimo de entender, quase hermético apesar das inúmeras peripécias, aliás desconcertantes. Trata do estupro de uma empresária, mulher autônoma e dona do seu nariz, que vive sozinha, por um mascarado em sua casa, mas ela não procura a polícia. Mais um filme de um polêmico diretor: muito premiado o filme, muito premiada a protagonista. O filme é complexo e desnorteante, parece que todo mundo é criminoso, ou quase...

O Conto (Estados Unidos, 2018), da diretora e roteirista Jennifer Fox, nome igualmente da protagonista nesse filme autobiográfico. O papel principal cabe à excelente Laura Dern, que sempre procura atuar em filmes e séries independentes ou que têm alguma coisa a dizer. Fala do ponto de vista da menina agora adulta vítima de abuso sexual, que busca reconstituir a história, encontrar outras vítimas e depois confrontar o abusador. Ele era treinador esportivo em escolas, e a essa altura é respeitável e está sendo homenageado – tendo abusado de dezenas, senão centenas, de meninas ao longo da vida. Casos de treinadores abusivos ultimamente apareceram muitos nos Estados Unidos, alguns dentre eles profissionais célebres. É interessante que o filme se faça do ponto de vista da vítima e de sua demanda por justiça.

A Guerra Invisível (direção: Kirby Dick, EUA, 2012) é um tremendo documentário sobre a “tradição” do estupro de colegas mulheres nas forças armadas norte-americanas, recebida com impunidade apesar de todos os recentes esforços para trazer os culpados a julgamento. As forças armadas têm sistema judiciário próprio e não se submetem à Justiça civil geral do país. Em muitos casos, como o estuprador é frequentemente um superior, este se assenta entre os juízes, e os casos sempre seguem os canais hierárquicos, sendo o comandante o único a decidir se a ação é válida ou não. A última notícia do filme é que o ministro da Defesa determinou finalmente, ante o acúmulo das evidências, que o comandante não mais seria a única instância de apelação.

Que não se perca por falta de originalidade Breves Diálogos com Homens Horríveis (direção: John Krasinski, EUA, 2006). O filme procura reproduzir, em ficção, o livro de David Foster Wallace de mesmo título. Uma moça sai pedindo depoimentos (fictícios) a alguns homens, registrando-os no que será esse filme. Inteligente, irreverente e divertido. E os homens que entrevista são mesmo horríveis!

Entre os filmes que abordam o tema com originalidade, procurando ângulos que escapem ao clichê, alguns podem ir até à sátira. É o caso de Proibido Homens (direção: Mark Sawers, Canadá, 2015), divertidíssimo filme canadense que apresenta uma utopia sem homens, na qual o sexo masculino se extinguiu naturalmente: isto é, a própria natureza se encarregou de obsoletizar os homens, sem qualquer violência. As hipóteses apresentadas são instigantes: nascem cada vez mais mulheres, as mulheres têm só filhas e por partenogênese, e assim por diante. Finge ser um documentário, e os depoimentos dos homens consternados são de morrer de rir. Assim, por exemplo, à pergunta sobre o que obtiveram as mulheres com a tomada do poder, respondem: paz mundial e bem-estar para todos, objetivos desprezíveis porque bom mesmo é guerra etc. Mas o último homem a subsistir, que trabalha como empregada doméstica, se apaixona por uma mulher e ela por ele, e acabam casando. Aqui entra uma astúcia: ele nem é bonito e é meio gordinho; ela também. Ela engravida e, na última cena, ele diz que espera que seja um menino – ao que ela se volta e o encara acusadoramente... E cai o pano.

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH da USP e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate